O HOMEM DO CÉREBRO DE OURO - Conto Clássico Fantástico - Alphonse Daudet
O HOMEM DO CÉREBRO DE OURO
Alphonse Daudet
(1840-1897)
Era
uma vez um homem que tinha um cérebro de ouro. Sim, um cérebro todo de ouro.
Quando ele veio ao mundo, os médicos acharam que a criança não sobreviveria,
pois o sua cabeça era pesada e o crânio desproporcional ao corpo. No entanto,
ele sobreviveu e cresceu sob o sol como uma bela oliveira. Mas a sua cabeçorra
sempre o desequilibrava e dava pena vê-lo cochar-se com os móveis quando
caminhava. Muitas vezes caiu. Certo dia, rolou do alto de uma escada, bateu com
a testa num degrau de mármore e o seu crânio soou como um lingote. Pensaram que
ele estivesse morto, mas, quando o levantaram, encontraram apenas um pequeno
ferimento, com duas ou três gotinhas de ouro coagulado em seu cabelo louro. Foi
assim que os pais descobriram que a criança tinha um cérebro de ouro.
A
coisa foi mantida em segredo e o pobre menino de nada desconfiava. De vez em
quando, ele perguntava por que não mais o permitiam correr com os meninos na
rua.
— Porque poderiam
roubá-lo, meu lindo tesouro — respondia-lhe a mãe.
Então
o menino teve muito medo de ser roubado. Assim, tornava ele a brincar sozinho,
sem dizer nada, arrastando-se pesadamente de um cômodo para o outro.
Somente
aos dezoito anos os seus pais lhe revelaram o seu dom monstruoso, o presente do
destino. E como ele os haviam criado e alimentado até então, pediram-lhe em
recompensa um pouco de seu ouro. O rapaz não vacilou. No mesmo instante — como?
De que forma? A lenda não diz —, extraiu do crânio um pedaço de ouro maciço, do
tamanho de uma noz, e o jogou, orgulhosamente, ao regaço de sua mãe.
Depois,
ofuscado pelas riquezas que levava na própria cabeça, louco de desejos e
embriagado de poder, abandonou a casa paterna e se foi pelo mundo, dissipando o
seu tesouro. Pelo modo de vida que levava, sempre semeando ouro, dir-se-ia que,
realmente, o seu cérebro era inesgotável... No entanto, ele ia-se esgotando, e
bem se via que seus olhos aos poucos se apagavam e a sua face se encovava. Finalmente,
certo dia, na manhã seguinte a uma orgia louca, o infeliz, que ficara sozinho
entre o que sobrara do festim e as lâmpadas que empalideciam, assustou-se com o
enorme fosso que ele já cavara em seu lingote. Era a hora de parar.
A
partir de então, foi uma nova existência. O homem do cérebro de ouro foi viver
isolado, com o trabalho das próprias mãos, desconfiado e temeroso como um
avarento, fugindo das tentações e procurando esquecer aquelas fatais riquezas
que já não mais queria tocar... Infelizmente, um amigo o havia seguido em sua
solidão e este amigo sabia de seu segredo.
Certa
noite, o homem foi despertado, aos sobressaltos, por uma dor na cabeça. Uma
terrível dor de cabeça. Acordou confuso e viu, ao raio do luar, o amigo que
fugia, ocultando alguma coisa sob o casaco.
Outro punhado de
cérebro que lhe era roubado!
Algum
tempo depois, o homem se apaixonou e, desta vez, tudo se acabou... Ele amava
com todas as forças de sua alma uma jovenzinha loura que também o amava, mas
que preferia os pompons, as plumas brancas e as lindas borlas douradas a
bater-lhe nas botinas. Entre as mãos desta criaturinha — meio pássaro, meio
boneca —, as partículas de ouro se derretiam prazerosamente. Ela tinha todos os
caprichos e ele nunca soube dizer não. Da mesma forma, com medo de desgostá-la,
ele escondeu até o final os segredos de sua fortuna.
— Então, somos muito
ricos? — perguntava ela.
— E o pobre homem
respondia:
— Oh, sim. Muito...
muito ricos!
E
sorria amorosamente para o pequeno pássaro azul que inocentemente lhe comia o
crânio. Algumas vezes, todavia, o medo se apoderava dele, e ele tinha a vontade
de tornar-se sovina. Mas, então, a mulher vinha, saltitante, ao seu encontro, e
lhe dizia:
—
Tu és, meu marido, tão rico! Compra-me alguma coisinha bem cara.
E
ele comprava para ela uma coisa bem cara. Isto durara dois anos. Certa manhã, a
pequena mulher morreu, sem que se soubesse por quê, como um passarinho... O
tesouro chegava ao fim. Com o que lhe restara, o viúvo mandou fazer um belo
enterro para a sua querida. Sinos que repicavam, pesadas carruagens forradas de
preto, penachos nos cavalos, lágrimas de prata nos veludos, nada lhe parecia
belo o bastante. O que lhe importava agora o seu tesouro? Ele o distribuiu à
igreja, aos carregadores e vendedores de flores. Espalhou-o por toda a parte,
sem regatear... E, ao sair do cemitério, quase nada mais lhe restava naquele
cérebro maravilho, salvo algumas partículas nas paredes do crânio.
Então
viram-no andar pelas ruas, com o ar absorto, os braços caídos, cambaleando como
um bêbado. De noitinha, à hora em que as lojas se iluminavam, parou à frente de
uma ampla vitrine, na qual reluziam tecidos e ornamentos, e ali ficou a
contemplar, demoradamente, duas botinas de cetim azul enfeitadas com penugem de
cisne.
—
Conheço alguém a quem essas botinas agradariam imensamente — disse a si mesmo,
sorrindo, sem se lembrar de que a sua pequena mulher havia morrido. E entrou
para compra-las.
Do
fundo do balcão, a vendedora ouviu um grito. Correu e recuou, assustada, ao ver
um homem que, de pé, apoiava-se ao balcão, a fitá-la com um olhar dolorosamente
estúpido. Com uma das mãos, segurava as botinas azuis com ornatos de cisne e estendia
a outra, toda ensanguentada, com fragmentos de ouro nas pontas das unhas.
Tal
é a lenda do homem do cérebro de ouro. Apesar de parecer um conto fantástico,
ela é verdadeira do princípio ao fim. Há por este mundo alguns desgraçados
condenados a viver de seu cérebro e pagam em finíssimo ouro, com seu miolo e
substância, as coisas mais insignificantes da vida. Para estas pessoas, todo
dia é uma dor, e depois, quando estão cansados de sofrer...
Versão em português de
Paulo Soriano.
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