UM ESQUELETO - Conto Clássico de Horror - Machado de Assis
UM
ESQUELETO
I
Eram
dez ou doze rapazes. Falavam de artes, letras e política. Alguma anedota vinha
de quando em quando temperar a seriedade da conversa. Deus me perdoe! parece
que até se fizeram alguns trocadilhos.
O
mar batia perto na praia solitária... estilo de meditação em prosa. Mas nenhum
dos doze convivas fazia caso do mar. Da noite também não, que era feia e
ameaçava chuva. É provável que se a chuva caísse ninguém desse por ela, tão
entretidos estavam todos em discutir os diferentes sistemas políticos, os
méritos de um artista ou de um escritor, ou simplesmente em rir de uma pilhéria
intercalada a tempo.
Aconteceu
no meio da noite que um dos convivas falou na beleza da língua alemã. Outro
conviva concordou com o primeiro a respeito das vantagens dela, dizendo que a
aprendera com o Dr. Belém.
–
Não conheceram o Dr. Belém? perguntou ele.
–
Não, responderam todos.
–
Era um homem extremamente singular. No tempo em que me ensinou alemão usava
duma grande casaca que lhe chegava quase aos tornozelos e trazia na cabeça um
chapéu-de-chile de abas extremamente largas.
–
Devia ser pitoresco, observou um dos rapazes. Tinha instrução?
–
Variadíssima. Compusera um romance, e um livro de teologia e descobrira um
planeta...
–
Mas esse homem?
–
Esse homem vivia em Minas. Veio à corte para imprimir os dois livros, mas não
achou editor e preferiu rasgar os manuscritos. Quanto ao planeta comunicou a
notícia à Academia das Ciências de Paris; lançou a carta no correio e esperou a
resposta; a resposta não veio porque a carta foi parar a Goiás.
Um
dos convivas sorriu maliciosamente para os outros, com ar de quem dizia que era
muita desgraça junta. A atitude porém do narrador tirou-lhe o gosto do riso.
Alberto (era o nome do narrador) tinha os olhos no chão, olhos melancólicos de
quem se rememora com saudade de uma felicidade extinta. Efetivamente suspirou
depois de algum tempo de muda e vaga contemplação, e continuou:
–
Desculpem-me este silêncio, não me posso lembrar daquele homem sem que uma
lágrima teime em rebentar-me dos olhos. Era um excêntrico, talvez não fosse,
não era decerto um homem completamente bom; mas era meu amigo; não direi o
único mas o maior que jamais tive na minha vida.
Como
era natural, estas palavras de Alberto alteraram a disposição de espírito do
auditório. O narrador ainda esteve silencioso alguns minutos. De repente
sacudiu a cabeça como se expelisse lembranças importunas do passado, e disse:
–
Para lhes mostrar a excentricidade do Dr. Belém basta contar-lhes a história do
esqueleto.
A
palavra esqueleto aguçou a curiosidade dos convivas; um romancista aplicou o
ouvido para não perder nada da narração; todos esperaram ansiosamente o
esqueleto do Dr. Belém. Batia justamente meia-noite; a noite, como disse, era
escura; o mar batia funebremente na praia. Estava-se em pleno Hoffmann.
Alberto começou a narração.
II
O
Dr. Belém era um homem alto e magro; tinha os cabelos grisalhos e caídos sobre
os ombros; em repouso era reto como uma espingarda; quando andava curvava-se um
pouco. Conquanto o seu olhar fosse muitas vezes meigo e bom, tinha lampejos
sinistros, e às vezes, quando ele meditava, ficava com olhos como de defunto.
Representava
ter sessenta anos, mas não tinha efetivamente mais de cinquenta. O estudo o
abatera muito, e os desgostos também, segundo ele dizia, nas poucas vezes em
que me falara do passado, e era eu a única pessoa com quem ele se comunicava a
esse respeito. Podiam contar-se-lhe três ou quatro rugas pronunciadas na cara,
cuja pele era fria como o mármore e branca como a de um morto.
Um
dia, justamente no fim da minha lição, perguntei-lhe se nunca fora casado. O
doutor sorriu sem olhar para mim. Não insisti na pergunta; arrependi-me até de
lha ter feito.
–
Fui casado, disse ele, depois de algum tempo, e daqui a três meses posso dizer
outra vez: sou casado.
–
Vai casar?
–
Vou.
–
Com quem?
–
Com a D. Marcelina.
D.
Marcelina era uma viúva de Ouro Preto, senhora de vinte e seis anos, não
formosa, mas assaz simpática, possuía alguma coisa, mas não tanto como o
doutor, cujos bens orçavam por uns sessenta contos.
Não
me constava até então que ele fosse casar; ninguém falara nem suspeitara tal
coisa.
–
Vou casar, continuou o Doutor, unicamente porque o senhor me falou nisso. Até
cinco minutos antes nenhuma intenção tinha de semelhante ato. Mas a sua
pergunta faz-me lembrar que eu efetivamente preciso de uma companheira; lancei
os olhos da memória a todas as noivas possíveis, e nenhuma me parece mais
possível do que essa. Daqui a três meses assistirá ao nosso casamento. Promete?
–
Prometo, respondi eu com um riso incrédulo.
–
Não será uma formosura.
–
Mas é muito simpática, decerto, acudi eu.
–
Simpática, educada e viúva. Minha ideia é que todos os homens deviam casar com
senhoras viúvas.
–
Quem casaria então com as donzelas?
–
Os que não fossem homens, respondeu o velho, como o senhor e a maioria do
gênero humano; mas os homens, as criaturas da minha têmpera, mas...
O
doutor estacou, como se receasse entrar em maiores confidências, e tornou a
falar da viúva Marcelina cujas boas qualidades louvou com entusiasmo.
–
Não é tão bonita como a minha primeira esposa, disse ele. Ah! essa... Nunca a
viu?
–
Nunca.
–
É impossível.
–
É a verdade. Já o conheci viúvo, creio eu.
–
Bem; mas eu nunca lha mostrei. Ande vê-la...
Levantou-se;
levantei-me também. Estávamos assentados à porta; ele levou-me a um gabinete
interior. Confesso que ia ao mesmo tempo curioso e aterrado. Conquanto eu fosse
amigo dele e tivesse provas de que ele era meu amigo, tanto medo inspirava ele
ao povo, e era efetivamente tão singular, que eu não podia esquivar-me a um tal
ou qual sentimento de medo.
No
fundo do gabinete havia um móvel coberto com um pano verde; o doutor tirou o
pano e eu dei um grito.
Era
um armário de vidro, tendo dentro um esqueleto. Ainda hoje, apesar dos anos que
lá vão, e da mudança que fez o meu espírito, não posso lembrar-me daquela cena
sem terror.
–
É minha mulher, disse o Dr. Belém sorrindo. É bonita, não lhe parece? Está na
espinha, como vê. De tanta beleza, de tanta graça, de tanta maravilha que me
encantaram outrora, que a tantos mais encantaram, que lhe resta hoje? Veja, meu
jovem amigo; tal é última expressão do gênero humano.
Dizendo
isto, o Dr. Belém cobriu o armário com o pano e saímos do gabinete. Eu não
sabia o que havia de dizer, tão impressionado me deixara aquele espetáculo.
Viemos
outra vez para as nossas cadeiras ao pé da porta, e algum tempo estivemos sem
dizer palavra um ao outro. O doutor olhava para o chão; eu olhava para ele.
Tremiam-lhe os lábios, e a face de quando em quando se lhe contraía. Um escravo
veio falar-lhe; o doutor saiu daquela espécie de letargo.
Quando
ficamos sós parecia outro; falou-me risonho e jovial, com uma volubilidade que
não estava nos seus usos.
–
Ora bem, se eu for feliz no casamento, disse ele, ao senhor o deverei. Foi o
senhor quem me deu esta ideia! E fez bem, porque até já me sinto mais rapaz.
Que lhe parece este noivo?
Dizendo
isto, o Dr. Belém levantou-se e fez uma pirueta, segurando nas abas da casaca,
que nunca deixava, salvo quando se recolhia de noite.
Parece-lhe
capaz o noivo? disse ele.
–
Sem dúvida, respondi.
–
Também ela há de pensar assim. Verá, meu amigo, que eu meterei tudo num
chinelo, e mais de um invejará a minha sorte. É pouco; mais de uma invejará a
sorte dela. Pudera não? Não há muitos noivos como eu.
Eu
não dizia nada, e o doutor continuou a falar assim durante vinte minutos. A
tarde caíra de todo; e a ideia da noite e do esqueleto que ali estava a poucos
passos de nós, e mais ainda as maneiras singulares que nesse dia, mais do que
nos outros, mostrava o meu bom mestre, tudo isso me levou a despedir-me dele e
a retirar-me para casa.
O
doutor sorriu-se com o sorriso sinistro que às vezes tinha, mas não insistiu
para que ficasse. Fui para casa aturdido e triste; aturdido com o que vira;
triste com a responsabilidade que o doutor atirava sobre mim relativamente ao
seu casamento.
Entretanto,
refleti que a palavra do doutor podia não ter pronta nem remota realização.
Talvez não se case nunca, nem até pense nisso. Que certeza teria ele de
desposar a viúva Marcelina daí a três meses? Quem sabe até, pensei eu, se não
disse aquilo para zombar comigo?
Esta
ideia enterrou-se-me no espírito. No dia seguinte levantei-me convencido de que
efetivamente o doutor quisera matar o tempo e juntamente aproveitar a ocasião
de me mostrar o esqueleto da mulher.
Naturalmente,
disse eu comigo, amou-a muito, e por esse motivo ainda a conserva. É claro que
não se casará com outra; nem achará quem case com ele, tão aceita anda a
superstição popular que o tem por lobisomem ou quando menos amigo íntimo do
diabo... ele! o meu bom e compassivo mestre!
Com
estas ideias fui logo de manhã à casa do Dr. Belém. Achei-o a almoçar sozinho,
como sempre, servido por um escravo da mesma idade.
–
Entre, Alberto, disse o doutor apenas me viu à porta. Quer almoçar?
–
Aceito.
–
João, um prato.
Almoçamos
alegremente; o doutor estava como me parecia na maior parte das vezes,
conversando de coisas sérias ou frívolas, misturando uma reflexão filosófica
com uma pilhéria, uma anedota de rapaz com uma citação de Virgílio.
No
fim do almoço tornou a falar do seu casamento.
–
Mas então pensa nisso deveras?... perguntei eu.
–
Por que não? Não depende senão dela; mas eu estou quase certo de que ela não
recusa. Apresenta-me lá?
–
Às suas ordens.
No
dia seguinte era apresentado o Dr. Belém em casa da viúva Marcelina e recebido
com muita afabilidade.
“Casar-se-á
deveras com ela?” dizia eu a mim mesmo espantado do que via, porque, além da
diferença da idade entre ele e ela, e das maneiras excêntricas dele, havia um
pretendente à mão da bela viúva, o Tenente Soares.
Nem
a viúva nem o tenente imaginavam as intenções do Dr. Belém; daqui podem já
imaginar o pasmo de D. Marcelina quando ao cabo de oito dias, perguntou-lhe o
meu mestre, se ela queria casar com ele.
–
Nem com o senhor nem com outro, disse a viúva; fiz voto de não casar mais.
–
Por quê? perguntou friamente o doutor.
–
Porque amava muito a meu marido.
–
Não tolhe isso que ame o segundo, observou o candidato sorrindo.
E depois de algum tempo de silêncio:
–
Não insisto, disse ele, nem faço aqui uma cena dramática. Eu amo-a deveras, mas
é um amor de filósofo, um amor como eu entendo que deviam ser todos. Entretanto
deixe-me ter esperança; pedir-lhe-ei mais duas vezes a sua mão. Se da última
nada alcançar consinta-me que fique sendo seu amigo.
III
O
Dr. Belém foi fiel a este programa. Dali a mês pediu outra vez a mão da viúva,
e teve a mesma recusa, mas talvez menos peremptória do que a primeira. Deixou
passar seis semanas, e repetiu o pedido.
–
Aceitou? disse eu apenas o vi vir da casa de D. Marcelina.
–
Por que havia de recusar? Eu não lhe disse que me casava dentro de três meses?
–
Mas então o senhor é um adivinho, um mágico?...
O doutor deu uma gargalhada, das que ele
guardava para quando queria motejar de alguém ou de alguma coisa. Naquela
ocasião o motejado era eu. Parece que não fiz boa cara porque o douto
imediatamente ficou sério e abraçou-me dizendo:
–
Oh! meu amigo, não desconfie! Conhece-me de hoje?
A
ternura com que ele me disse estas palavras tornava-o outro homem. Já não tinha
os tons sinistros do olhar nem a fala saccadée
(vá o termo francês, não me ocorre agora o nosso) que era a sua fala
característica. Abracei-o também, e falamos do casamento e da noiva.
O
doutor estava alegre; apertava-me muitas vezes as mãos agradecendo-me a ideia
que lhe dera; fazia seus planos de futuro. Tinha ideias de vir à corte, logo
depois do casamento; aventurou a ideia de seguir para a Europa; mas apenas
parecia assentado nisto, já pensava em não sair de Minas, e morrer ali, dizia
ele, entre as suas montanhas.
–
Já vejo que está perfeitamente noivo, disse eu; tem todos os traços
característicos de um homem nas vésperas de casar.
–
Parece-lhe?
–
E é.
–
De fato, gosto da noiva, disse ele com ar sério; é possível que eu morra antes
dela; mas o mais provável é que ela morra primeiro. Nesse caso, juro desde já
que irá o seu esqueleto fazer companhia ao outro.
A
ideia do esqueleto fez-me estremecer. O doutor, ao dizer estas palavras,
cravara os olhos no chão, profundamente absorto. Daí em diante a conversa foi
menos alegre do que a princípio. Saí de lá desagradavelmente impressionado.
O
casamento dentro de pouco tempo foi realidade. Ninguém queria acreditar nos
seus olhos. Todos admiraram a coragem (era a palavra que diziam) da viúva
Marcelina, que não recuava àquele grande sacrifício.
Sacrifício
não era. A moça parecia contente e feliz. Os parabéns que lhe davam eram
irônicos, mas ela os recebia com muito gosto e seriedade. O Tenente Soares não
lhe deu os parabéns; estava furioso; escreveu-lhe um bilhete em que lhe dizia
todas as coisas que em tais circunstâncias se podem dizer.
O
casamento foi celebrado pouco depois do prazo que o Dr. Belém marcara na
conversa que tivera comigo e que eu já referi. Foi um verdadeiro acontecimento
na capital de Minas. Durante oito dias não se falava senão no caso impossível;
afinal, passou a novidade, como todas as coisas deste mundo, e ninguém mais
tratou dos noivos.
Fui
jantar com eles no fim de uma semana; D. Marcelina parecia mais que nunca
feliz; o Dr. Belém não o estava menos. Até parecia outro. A mulher começava a
influir nele, sendo já uma das primeiras consequências a supressão da singular
casaca. O doutor consentiu em vestir-se menos excentricamente.
–
Veste-me como quiseres, dizia ele à mulher; o que não poderás fazer nunca é
mudar-me a alma. Isso nunca.
–
Nem quero.
–
Nem podes.
Parecia
que os dois estavam destinados a gozar uma eterna felicidade. No fim de um mês
fui lá, e achei-a triste.
“Oh!
disse eu comigo, cedo começam os arrufos.”
O
doutor estava como sempre. Líamos então e comentávamos à nossa maneira o
Fausto. Nesse dia pareceu-me o Dr. Belém mais perspicaz e engenhoso que nunca.
Notei, entretanto, uma singular pretensão: um desejo de se parecer com
Mefistófeles.
Aqui
confesso que não pude deixar de rir.
–
Doutor, disse eu, creio que o senhor abusa da amizade que lhe tenho para zombar
comigo.
–
Sim?
–
Aproveita-se da opinião de excêntrico para me fazer crer que é o diabo...
Ouvindo
esta última palavra, o doutor persignou-se todo, e foi a melhor afirmativa que
me poderia fazer de que não ambicionava confundir-se com o personagem aludido.
Sorriu-se depois benevolamente, tomou uma pitada e disse:
–
Ilude-se meu amigo, quando me atribui semelhante ideia, do mesmo modo que se
engana quando supõe que Mefistófeles é isso que diz.
–
Essa agora!...
–
Noutra ocasião lhe direi as minhas razões. Por agora vamos jantar.
–
Obrigado. Devo ir jantar com meu cunhado. Mas, se me permite ficarei ainda
algum tempo aqui lendo o seu Fausto.
O
doutor não pôs objeção; eu era íntimo da casa. Saiu dali para a sala do jantar.
Li ainda durante vinte minutos, findos os quais fechei o livro e fui
despedir-me do Dr. Belém e sua senhora.
Caminhei
por um corredor fora que ia ter à sala do jantar. Ouvia mover os pratos, mas
nenhuma palavra soltavam os dois casados.
“O
arrufo continua”, pensei eu.
Fui
andando... Mas qual não foi a minha surpresa ao chegar à porta? O doutor estava
de costas, não me podia ver. A mulher tinha os olhos no prato. Entre ele e ela,
sentado numa cadeira vi o esqueleto. Estaquei aterrado e trêmulo. Que queria
dizer aquilo? Perdia-me em conjeturas; cheguei a dar um passo para falar ao
doutor, mas não me atrevi; voltei pelo mesmo caminho, peguei no chapéu, e
deitei a correr pela rua fora.
Em
casa de meu cunhado todos notaram os sinais de temor que eu ainda levava no
rosto. Perguntaram-me se havia visto alguma alma do outro mundo. Respondi
sorrindo que sim; mas nada contei do que acabava de presenciar.
Durante
três dias não fui à casa do doutor. Era medo, não do esqueleto, mas do dono da
casa, que se me afigurava ser um homem mau ou um homem doido. Todavia, ardia
por saber a razão da presença do esqueleto na mesa do jantar. D. Marcelina
podia dizer-me tudo; mas como indagaria isso dela, se o doutor estava quase
sempre em casa?
No
terceiro dia apareceu-me em casa o Doutor Belém.
–
Três dias! disse ele, há já três dias que eu não tenho a fortuna de o ver. Onde
anda? Está mal conosco?
–
Tenho andado doente, respondi eu, sem saber o que dizia.
–
E não me mandou dizer nada, ingrato! Já não é meu amigo.
A
doçura destas palavras dissipou os meus escrúpulos. Era singular como aquele
homem, que por certos hábitos, maneiras e ideias, e até pela expressão física,
assustava a muita gente e dava azo às fantasias da superstição popular, era
singular, repito, como me falava às vezes com uma meiguice incomparável e um
tom patriarcalmente benévolo.
Conversamos
um pouco e fui obrigado a acompanhá-lo à casa. A mulher ainda me pareceu
triste, mas um pouco menos que da outra vez. Ele tratava-a com muita ternura e consideração,
e ela se não respondia alegre, ao menos falava com igual meiguice.
IV
No
meio da conversa vieram dizer que o jantar estava na mesa.
–
Agora há de jantar conosco, disse ele.
–
Não posso, balbuciei eu, devo ir...
–
Não deve ir a nenhuma parte, atalhou o doutor; parece-me que quer fugir de mim.
Marcelina, pede ao Dr. Alberto que jante conosco.
D.
Marcelina repetiu o pedido do marido, mas com um ar de constrangimento visível.
Ia recusar de novo, mas o doutor teve a precaução de me agarrar no braço e foi
impossível recusar.
–
Deixe-me ao menos dar o braço a sua senhora, disse eu.
–
Pois não.
Dei
o braço a D. Marcelina que estremeceu. O doutor passou adiante. Eu inclinei a
boca ao ouvido da pobre senhora e disse baixinho:
–
Que mistério há?
D.
Marcelina estremeceu outra vez e com um sinal impôs-me silêncio.
Chegamos
à sala de jantar.
Apesar
de já ter presenciado a cena do outro dia não pude resistir à impressão que me
causou a vista do esqueleto que lá estava na cadeira em que o vira com os braços
sobre a mesa.
Era
horrível.
–
Já lhe apresentei minha primeira mulher, disse o doutor para mim; são
conhecidos antigos.
Sentamo-nos
à mesa; o esqueleto ficou entre ele e D. Marcelina; eu fiquei ao lado desta.
Até então não pude dizer palavra; era porém natural que exprimisse o meu
espanto.
–
Doutor, disse eu, respeito os seus hábitos; mas não me dará a explicação deste?
–
Este qual? disse ele.
Com
um gesto indiquei-lhe o esqueleto.
–
Ah!... respondeu o doutor; um hábito natural; janto com minhas duas mulheres.
–
Confesse ao menos que é um uso original.
–
Queria que eu copiasse os outros?
–
Não, mas a piedade com os mortos...
Atrevi-me
a falar assim porque, além de me parecer aquilo uma profanação, a melancolia da
mulher parecia pedir que alguém falasse duramente ao marido e procurasse
trazê-lo a melhor caminho.
O
doutor deu uma das suas singulares gargalhadas, e estendendo-me o prato de
sopa, replicou:
–
O senhor fala de uma piedade de convenção; eu sou pio à minha maneira. Não é
respeitar uma criatura que amamos em vida, o trazê-la assim conosco, depois de
morta?
Não
respondi coisa nenhuma a estas palavras do doutor. Comi silenciosamente a sopa,
e o mesmo fez a mulher, enquanto ele continuou a desenvolver as suas ideias a
respeito dos mortos.
–
O medo dos mortos, disse ele, não é só uma fraqueza, é um insulto, uma
perversidade do coração. Pela minha parte dou-me melhor com os defuntos do que
com os vivos.
E
depois de um silêncio:
–
Confesse, confesse que está com medo.
Fiz-lhe
um sinal negativo com a cabeça.
–
É medo, é, como esta senhora que está ali transida de susto, porque ambos são
dois maricas. Que há entretanto neste esqueleto, que possa meter medo? Não lhes
digo que seja bonito; não é bonito segundo a vida, mas é formosíssimo segundo a
morte. Lembrem-se que isto somos nós também; nós temos de mais um pouco de
carne.
–
Só? perguntei eu intencionalmente.
O
doutor sorriu-se e respondeu:
–
Só.
Parece
que fiz um gesto de aborrecimento, porque ele continuou logo:
–
Não tome ao pé da letra o que lhe disse. Eu também creio na alma; não creio só,
demonstro-a, o que não é para todos. Mas a alma foi-se embora; não podemos
retê-la; guardemos isto ao menos, que é uma parte da pessoa amada.
Ao
terminar estas palavras, o doutor beijou respeitosamente a mão do esqueleto.
Estremeci e olhei para D. Marcelina. Esta fechara os olhos. Eu estava ansioso
por terminar aquela cena que realmente me repugnava presenciar. O doutor não
parecia reparar em nada. Continuou a falar no mesmo assunto, e por mais
esforços que eu fizesse para o desviar dele era impossível.
Estávamos
à sobremesa quando o doutor, interrompendo um silêncio que durava já havia dez
minutos perguntou:
–
E segundo me parece, ainda lhe não contei a história deste esqueleto, quero
dizer a história de minha mulher?
–
Não me lembra, murmurei.
–
E a ti? disse ele voltando-se para a mulher.
–
Já.
–
Foi um crime, continuou ele.
–
Um crime?
–
Cometido por mim.
–
Pelo senhor?
–
É verdade.
O
doutor concluiu um pedaço de queijo, bebeu o resto do vinho que tinha no copo,
e repetiu:
–
É verdade, um crime de que fui autor. Minha mulher era muito amada de seu
marido; não admira, eu sou todo coração. Um dia, porém, suspeitei que me
houvesse traído; vieram dizer-me que um moço da vizinhança era seu amante.
Algumas aparências me enganaram. Um dia declarei-lhe que sabia tudo, e que ia
puni-la do que me havia feito. Luísa caiu-me aos pés banhada em lágrimas
protestando pela sua inocência. Eu estava cego; matei-a.
Imagina-se,
não se descreve a impressão de horror que estas palavras me causaram. Os
cabelos ficaram-me em pé. Olhei para aquele homem, para o esqueleto, para a
senhora, e passava a mão pela testa, para ver se efetivamente estava acordado,
ou se aquilo era apenas um sonho.
O
doutor tinha os olhos fitos no esqueleto e uma lágrima lhe caía lentamente pela
face. Estivemos todos calados durante cerca de dez minutos.
O
doutor rompeu o silêncio.
–
Tempos depois, quando o crime estava de há muito cometido, sem que a justiça o
soubesse, descobri que Luísa era inocente. A dor que então sofri foi
indescritível; eu tinha sido o algoz de um anjo.
Estas
palavras foram ditas com tal amargura que me comoveram profundamente. Era claro
que ainda então, após longos anos do terrível acontecimento, o doutor sentia o
remorso do que praticara e a mágoa de ter perdido a esposa.
A
própria Marcelina parecia comovida. Mas a comoção dela era também medo; segundo
vim a saber depois, ela receava que no marido não estivessem íntegras as faculdades
mentais.
Era
um engano.
O
doutor era, sim, um homem singular e excêntrico; doido lhe chamavam os que, por
se pretenderem mais espertos que o vulgo, repeliam os contos da superstição.
Estivemos
calados algum tempo e dessa vez foi ainda ele que interrompeu o silêncio.
–
Não lhes direi como obtive o esqueleto de minha mulher. Aqui o tenho e o
conservarei até à minha morte. Agora naturalmente deseja saber por que motivo o
trago para a mesa depois que me casei.
Não
respondi com os lábios, mas os meus olhos disseram-lhe que efetivamente
desejava saber a explicação daquele mistério.
–
É simples, continuou ele; é para que minha segunda mulher esteja sempre ao pé
da minha vítima, a fim de que se não esqueça nunca dos seus deveres, porque,
então como sempre, é mui provável que eu não procure apurar a verdade; farei
justiça por minhas mãos.
Esta
última revelação do doutor pôs termo à minha paciência. Não sei o que lhe
disse, mas lembra-me que ele ouviu-me com o sorriso benévolo que tinha às
vezes, e respondeu-me com esta simples palavra:
–
Criança!
Saí pouco depois do jantar, resolvido a lá não
voltar nunca.
V
A
promessa não foi cumprida.
Mais
de uma vez o Doutor Belém mandou à casa chamar-me; não fui. Veio duas ou três
vezes instar comigo que lá fosse jantar com ele.
–
Ou, pelo menos, conversar, concluiu.
Pretextei
alguma coisa e não fui.
Um
dia, porém, recebi um bilhete da mulher. Dizia-me que era eu a única pessoa
estranha que lá ia; pedia-me que não a abandonasse.
Fui.
Eram
então passados quinze dias depois do célebre jantar em que o doutor me referiu
a história do esqueleto. A situação entre os dois era a mesma; aparente
afabilidade da parte dela, mas na realidade medo. O doutor mostrava-se afável e
terno, como sempre o vira com ela.
Justamente
nesse dia, anunciou-me ele que pretendia ir a uma jornada dali a algumas
léguas.
–
Mas vou só, disse ele, e desejo que o senhor me faça companhia a minha mulher
vindo aqui algumas vezes.
Recusei.
–
Por quê?
–
Doutor, por que razão, sem urgente necessidade, daremos pasto às más línguas?
Que se dirá...
–
Tem razão, atalhou ele; ao menos, faça-me uma coisa.
–
O quê?
–
Faça com que em casa de sua irmã possa Marcelina ir passar as poucas semanas de
minha ausência.
–
Isso com muito gosto.
Minha
irmã concordou em receber a mulher do Dr. Belém, que daí a pouco saía da
capital para o interior. Sua despedida foi terna e amigável para com ambos nós,
a mulher e eu; fomos os dois, e mais minha irmã e meu cunhado acompanhá-lo até
certa distância, e voltamos para casa.
Pude
então conversar com D. Marcelina, que me comunicou os seus receios a respeito
da razão o marido. Dissuadi-a disso; já disse qual era a minha opinião a
respeito do Dr. Belém.
Ela
referiu-me então que a narração da morte da mulher já ele lha havia feito,
prometendo-lhe igual sorte no caso de faltar aos seus deveres.
–
Nem as aparências te salvarão, acrescentou ele.
Disse-me
mais que era seu costume beijar repetidas vezes o esqueleto da primeira mulher
e dirigir-lhe muitas palavras de ternura e amor. Uma noite, estando a sonhar
com ela, levantou-se da cama e foi abraçar o esqueleto pedindo-lhe perdão.
Em
nossa casa todos eram de opinião que D. Marcelina não voltasse mais para a
companhia do Dr. Belém. Eu era de opinião oposta.
–
Ele é bom, dizia eu, apesar de tudo; tem extravagâncias, mas é um bom coração.
No
fim de um mês recebemos uma carta do doutor, em que dizia à mulher fosse ter ao
lugar onde ele se achava, e que eu fizesse o favor de a acompanhar.
Recusei ir só com ela.
Minha
irmã e meu cunhado ofereceram-se, porém, para acompanhá-la.
Fomos
todos.
Havia
entretanto uma recomendação na carta do doutor, recomendação essencial;
ordenava ele à mulher que levasse consigo o esqueleto.
–
Que esquisitice nova é essa? disse meu cunhado.
–
Há de ver, suspirou melancolicamente D. Marcelina, que o único motivo desta
minha viagem, são as saudades que ele tem do esqueleto.
Eu
nada disse, mas pensei que assim fosse.
Saímos
todos em demanda do lugar onde nos esperava o doutor.
Íamos
já perto, quando ele nos apareceu e veio alegremente cumprimentar-nos. Notei
que não tinha a ternura de costume com a mulher, antes me pareceu frio. Mas
isso foi obra de pouco tempo; daí a uma hora voltara a ser o que sempre fora.
Passamos
dois dias na pequena vila em que o doutor estava, dizia ele, para examinar umas
plantas, porque também era botânico. Ao fim de dois dias dispúnhamos a voltar
para a capital; ele porém pediu que nos demorássemos ainda vinte e quatro horas
e voltaríamos todos juntos.
Acedemos.
No
dia seguinte de manhã convidou a mulher a ir ver umas lindas parasitas no mato
que ficava perto. A mulher estremeceu, mas não ousou recusar.
–
Vem também? disse ele.
–
Vou, respondi.
A
mulher cobrou alma nova e deitou-me um olhar de agradecimento. O doutor sorriu
à socapa. Não compreendi logo o motivo do riso; mas daí a pouco tempo tinha a
explicação.
Fomos
ver as parasitas, ele adiante com a mulher, eu atrás de ambos, e todos três
silenciosos.
Não
tardou que um riacho aparecesse aos nossos olhos; mas eu mal pude ver o riacho;
o que eu vi, o que me fez recuar um passo, foi um esqueleto.
Dei
um grito.
–
Um esqueleto! exclamou D. Marcelina.
–
Descansem, disse o doutor, é o de minha primeira mulher.
–
Mas...
–
Trouxe-o esta madrugada para aqui.
Nenhum
de nós compreendia nada.
O
doutor sentou-se numa pedra.
–
Alberto, disse ele, e tu, Marcelina. Outro crime devia ser cometido nesta
ocasião; mas tanto te amo, Alberto, tanto te amei, Marcelina, que eu prefiro
deixar de cumprir a minha promessa...
Ia
interrompê-lo; mas ele não me deu ocasião.
–
Vocês amam-se, disse ele.
Marcelina
deu um grito; eu ia protestar.
–
Amam-se que eu sei, continuou friamente o doutor; não importa! É natural. Quem
amaria um velho estúrdio como eu? Paciência. Amem-se; eu só fui amado uma vez;
foi por esta.
Dizendo
isto abraçou-se ao esqueleto.
–
Doutor, pense no que está dizendo...
–
Já pensei...
–
Mas esta senhora é inocente. Não vê aquelas lágrimas?
–
Conheço essas lágrimas; lágrimas não são argumentos. Amam-se, que eu sei;
desejo que sejam felizes, porque eu fui e sou teu amigo, Alberto. Não merecia
certamente isso...
–
Oh! meu amigo, interrompi eu, veja bem o que está dizendo; já uma vez foi
levado a cometer um crime por suspeitas que depois soube serem infundadas.
Ainda hoje padece o remorso do que então fez. Reflita, veja bem se eu posso
tolerar semelhante calúnia.
Ele
encolheu os ombros, meteu a mão no bolso, e tirou um papel e deu-mo a ler. Era
uma carta anônima; soube depois que fora escrita pelo Soares.
–
Isto é indigno! clamei.
–
Talvez, murmurou ele.
E
depois de um silêncio:
–
Em todo o caso, minha resolução está assentada, disse o doutor. Quero fazê-los
felizes, e só tenho um meio: é deixá-los. Vou com a mulher que sempre me amou.
Adeus!
O
doutor abraçou o esqueleto e afastou-se de nós. Corri atrás dele; gritei; tudo
foi inútil; ele metera-se no mato rapidamente, e demais a mulher ficara
desmaiada no chão.
Vim
socorrê-la; chamei gente. Daí a uma hora, a pobre moça, viúva sem o ser,
lavava-se em lágrimas de aflição.
VI
Alberto
acabara a história.
–
Mas é um doido esse teu Dr. Belém! exclamou um dos convivas rompendo o silêncio
de terror em que ficara o auditório.
–
Ele doido? disse Alberto. Um doido seria efetivamente se porventura esse homem
tivesse existido. Mas o Dr. Belém não existiu nunca, eu quis apenas fazer
apetite para tomar chá. Mandem vir o chá.
É
inútil dizer o efeito desta declaração.
Excelente! Parabéns pela publicação!!
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