A TORTURA POR ESPERANÇA - Conto de Horror - Villiers de L’Isle Adam
A
TORTURA POR ESPERANÇA
Villiers
de L’Isle Adam
(1838
– 1889)
Tradução
de Paulo Soriano
Oh!
Uma voz, uma voz para gritar!…
Edgar A. Pöe. “O
Poço e o Pêndulo”
Há
muitos anos, ao cair da noite, sob as abóbadas do Tribunal de Saragoça, o
venerável Pedro Arbués de Espila[1],
sexto prior dos dominicanos de Segóvia e Grande Inquisidor da Espanha, seguido
de um frade redentor (mestre torturador), e precedido de dois familiares do
Santo Ofício[2],
que levavam os lampiões, desceu a um calabouço recôndito. A fechadura de uma
pesada porta rangeu. Entraram num mefítico in pace[3], onde
a luz proveniente de alto de uma janela gradeada deixava entrever, entre as
argolas engastadas nas paredes, um cavalete enegrecido pelo sangue, uma
fornalha e um cântaro. Sobre um leito de palhas, preso por grilhões, com uma
golilha de ferro a cingir-lhe pescoço, permanecia sentado, desfigurado, aos
farrapos, um homem de idade incerta.
O
prisioneiro não era outro senão o rabino Aser Abarbanel, judeu aragonês que,
acusado de usura e desumano desprezo aos pobres, havia sido submetido, há mais
de um ano, a torturas. Entretanto, com uma “cegueira tão dura quanto o seu
couro”, negara-se ele a abjurar.
Envaidecido
por uma ascendência mais que milenar, orgulhoso por seus antigos ancestrais —
pois todos judeus dignos desse nome são ciosos de seu sangue —, o rabino
descendia, talmudicamente, de Otoniel e, por conseguinte, de Ipsiboë, mulher do
último juiz de Israel, circunstância que também sustentara a sua coragem em
meio a suplício incessantes.
Foi
com lágrimas nos olhos que o venerando Pedro Arbués de Espila, pensando nesta
alma que, tão obstinadamente, se esquivava da salvação, aproximou-se do trêmulo
rabino e lhe disse as seguintes palavras:
—
Meu filho, regozija-te. Os teus sofrimentos neste mundo estão prestes a acabar.
Se, diante de tanta obstinação, tive de permitir, com pesar, que usassem de
extrema severidade para contigo, o meu dever de fraterna correção tem os seus
limites. És a recalcitrante figueira[4] que,
passado tanto tempo sem render frutos, termina por mirrar… Mas só Deus pode
decidir sobre a tua alma. Talvez a infinita Misericórdia brilhe para ti no
instante supremo! Devemos esperar! Exemplos têm ocorrido… Amém! Descansa, pois,
em paz esta noite. Amanhã, integrarás o auto de fé. Isto significa que tu serás
exposto à fogueira, braseiro premonitório da Chama Eterna. Bem sabes, meu
filho, que ela queima à distância e a Morte leva ao menos duas horas (às vezes
três) para advir, por causa dos panos molhados e gelados com os quais
procuramos proteger a fronte e os corações dos holocaustos. Apenas quarenta e
três serão os supliciados. Considera que, sendo o último da fila, tereis
suficiente tempo para invocar Deus, para que te oferte esse batismo de fogo,
que é o do Espírito Santo. Tem, pois, esperança na Luz e dorme.
Terminando
este discurso, dom Arbués, havendo feito um sinal para que desacorrentassem o
desgraçado, abraçou-o com ternura. Depois, foi a vez do frade redentor que, em
voz muito baixa, pediu ao judeu perdão pelo que lhe havia feito sofrer em prol
de sua redenção. Em seguida, achegaram-se os dois agentes do Santo Ofício,
cujos beijos, dados através dos capuzes, foram silenciosos. Acabada a cerimônia,
o prisioneiro ficou — sozinho e atônito — entre as trevas.
O
rabino Aser Abarbanel, de boca seca e rosto aturdido pelo sofrimento, passou a
fitar, primeiro sem grandes atenções, a porta cerrada. “Cerrada?” Esta palavra
despertou, no fundo de seu ser, entre confusos pensamentos, um devaneio. Por um
instante, entrevira a luz débil dos lampiões entre porta e os umbrais. Uma
mórbida ideia de esperança, devido à debilidade de seu cérebro,
convulsionou-lhe todo o ser. Arrastou-se para a insólita coisa que
vira! E, muito suavemente, deslizando um dedo, com meticulosa precaução, pela
nesga, puxou a porta para si. Oh, que assombro! Por um acaso extraordinário, o
agente, que a havia fechado, girara a pesada chave um pouco antes da hora,
chocando-a contra a coluna de pedra. Por isto, a lingueta enferrujada não
penetrara o engate, e a porta resvalou para dentro.
O
rabino arriscou-se a olhar para fora.
Graças
a uma espécie de lívida escuridão, distinguiu primeiramente um semicírculo de
muros terrosos, em que se abria uma escada em espiral; e, à sua frente,
sobrepondo-se a cinco ou seis degraus de pedra, uma espécie de pórtico negro,
que se abria a um amplo corredor, do qual somente se podia enxergar, no fundo,
as primeiras arcadas.
Então,
estirando-se, rastejou ao rés desse limiar. Sim, era realmente um corredor, mas
de um cumprimento desmesurado! Uma pálida claridade, um fulgor de sonho o
iluminava: lamparinas, penduradas nas abóbadas, azulavam, a intervalos, a turva
cor do ar. O fundo distante era somente treva. Em toda aquela extensão não
havia sequer uma porta lateral! Em apenas um dos lados, à sua esquerda, abertas
nas paredes, as seteiras de grelhas cruzadas permitiam o escoar de um
crepúsculo — que devia ser o da tarde, já que raios vermelhos, de trecho em trecho,
riscavam o lajeado. E que silêncio aterrador! No entanto, adiante, nas
profundezas dessas brumas, uma saída podia franquear a liberdade. A vacilante
esperança do judeu era tenaz, pois era a última.
Assim,
pois, sem hesitar, avançou sobre o lajeado, bordeando a parede das seteiras e
tentando confundir-se com as sombras sinistras dos longos muros. Avançou
lentamente, rastejando sobre o peito, reprimindo os gritos quando uma chaga,
reaberta recentemente, lancinava.
De
súbito, da galeria de pedra, chegou-lhe o eco de sandálias que se aproximavam.
Um estremecimento sacudiu-o. A ansiedade sufocava-o. A visão escureceu. Vamos!
Sem dúvida, era o fim! Agachou-se numa depressão da laje e, quase morto,
esperou.
Era
um familiar que caminhava pressuroso. Passou rapidamente com alicates na mão.
De capuz rebaixado, com seu terrível aspecto, desapareceu. A terrível sensação
que, num átimo, o oprimiu, deixou-o como se privado das funções vitais, razão
por que passou quase uma hora incapaz de realizar um mínimo movimento. Ante o
temor de redobrarem-se os tormentos caso fosse capturado, veio-lhe a ideia de
retornar ao calabouço. Mas a velha esperança lhe sussurrava na alma esse divino
“talvez”, que consola nos momentos da mais profunda angústia. Um milagre
acontecera! Não havia dúvida! Continuou, pois, rastejando para a possível fuga.
Esgotado pela dor e pela fome, avançou. E esse corredor sepulcral parecia
alongar-se misteriosamente! E ele, avançando sem parar, olhava constantemente a
sombra distante, onde haveria de estar a saída para a salvação.
Oh!
Oh! Eis que os passos voltaram a soar, mas desta vez mais lentos e
inquietantes. Assomando no ar, surgiram as figuras brancas e negras dos
inquisidores, com seus compridos chapéus de abas arredondadas. Falavam em voz
baixa e pareciam, pelos gestos que faziam, discutir algo importante.
Ante
aquela visão, o rabino fechou os olhos. Seu coração batia intensamente a ponto
de sufocá-lo. Seus andrajos se empaparam de um frio suor de agonia. Permaneceu
boquiaberto, imóvel, estendido ao longo da parede sob a luz de uma lamparina,
rogando ao Deus de Davi.
Quando
chegaram diante dele, os inquisidores detiveram-se, por acaso, em meio à
discussão, sob a luz da lamparina. Um deles, ouvindo o seu interlocutor, ficou
a olhar para o rabino. E, sob este olhar, cuja expressão distraída não podia
perscrutar, julgou sentir ainda os incandescentes alicates mordendo a sua carne
lacerada. Voltaria a ser novamente um lamento e uma chaga! Desfalecendo, sem
poder respirar, as pálpebras trêmulas, estremecia sob o roçar da roupa. Mas —
coisa estranha, conquanto natural —, os olhos do inquisidor, que eram, sem
dúvida, os de um homem imensamente preocupado na resposta que iria dar, absorto
naquilo que ouvia, fixavam-se no judeu, mas pareciam não o enxergar.
Efetivamente,
depois de alguns minutos, os dois sinistros debatedores, falando constantemente
em voz baixa, seguiram o seu caminho, a passo lento, até o cômpito de onde
havia saído o preso. Não o haviam visto!… De sorte que, em meio ao terrível
tumulto de suas sensações, perpassou-lhe o cérebro a seguinte ideia: “Será que
não me veem porque já estou morto?”
Uma
impressão terrível o arrancou da letargia: ao fixar o olhar no muro, colado ao
seu rosto, julgou ver, bem próximos aos seus, dois olhos cruéis, que o observavam…
Jogou para trás a cabeça, num movimento atirado e brusco, os cabelos eriçados.
Mas não! Sua mão, apalpando as pedras, descobriu que aquilo era o reflexo dos
olhos do inquisidor que ainda tinha impresso em suas pupilas, e que ele havia
projetado sobre duas manchas do muro.
Adiante!
Era preciso apressar-se para a meta que ele, sem dúvida absurdamente, imaginava
ser a liberdade; correr em direção às sombras que estavam a apenas, mais ou
menos, trinta passos de distância. Assim, retomou mais rapidamente a sua via
dolorosa, arrastando-se sobre os joelhos, as mãos e o ventre.
Pouco
depois, entrou no trecho tenebroso do pavoroso corredor.
De
repente, o miserável sentiu um frio nas mãos que apoiava sobre as lousas. Era
uma violenta lufada que passava por sob a porta na qual terminavam as duas
paredes. Oh, meu Deus! Se esta porta se abrisse para o lado de fora! O pobre
fugitivo sentiu a vertigem da esperança dominar todo o seu ser. Examinou a
porta de cima a baixo, sem poder distingui-la bem, porque estava mergulhada nas
trevas. Tateando, constatou que não havia ferrolho ou fechadura. Uma maçaneta!
Ergueu-se. A fechadura obedeceu aos movimentos de seu polegar e a porta girou,
silenciosa, abrindo-se à sua frente.
—
Aleluia! — murmurou, com um imenso suspiro de ação de graças, o rabino, agora
de pé sob os umbrais, contemplando o que adiante se lhe revelava.
A
porta se abria para os jardins, sob uma noite de estrelas! Para a primavera, a
liberdade e a vida! O jardim dava para um campo, que se estendia em direção às
montanhas, cujos ondulantes contornos azuis pairavam no horizonte. Ali estava a
salvação! Oh! Fugir! Correria a noite toda sob esses limoeiros, cujos aromas
chegavam até ele. Uma vez nas montanhas, ele estaria salvo! Respirou ar salubre
e bendito. O vento o reanimava e seus pulmões ressuscitavam! Escutava, em seu
coração dilatado, o veni fora de Lázaro![5] E,
para bendizer o Deus que lhe concedera essa misericórdia, estendeu os braços
diante dele, abrindo os olhos para o firmamento. Foi um êxtase.
Julgou,
então, que a sombra de seus braços se voltava sobre si mesma — imaginou que
esses braços de sombra o cercavam e o enlaçavam — e que era ternamente apertado
contra um peito. Uma alta figura estava, de fato, junto a ele. Confiante, ele
abaixou o olhar para esse vulto — e ficou ofegante, perturbado, com os olhos
aterrorizados, vacilantes, inflando as bochechas e salivando de terror.
Horror!
Ele estava nos braços do próprio Grande Inquisidor, do venerável Pedro Arbuez
d’Espila, que o olhava com grandes lágrimas nos olhos e o ar de um bom pastor
que encontra sua ovelha perdida!
O
tenebroso sacerdote pressionou, contra o seu coração, com tão fervoroso impulso
de caridade, o infeliz judeu, que as pontas do cilício monacal, traspassando as
vestes do dominicano, espetaram-lhe o peito.
E,
enquanto Rabi Aser Abarbanel, com os olhos revirados sob as pálpebras,
convulsionava de angústia entre os braços do ascético dom Arbuez, e
compreendia, confusamente, que todas as etapas da noite fatal eram apenas fases
de uma tortura planejada — o da esperança! —, o Grande Inquisidor, com um
pungente tom de recriminação e o olhar consternado, murmurava-lhe ao ouvido,
com o hálito abrasador, afetado pelos jejuns:
—
Mas o que é isto, meu filho?! Na véspera, talvez, da salvação… tu querias,
então, nos deixar?
[1] Pedro
Arbués (c. 1441 – 1485) foi um oficial da Inquisição Espanhola canonizado, como
mártir de uma alegada conspiração judia, em 1867.
[2] Auxiliares
dos inquisidores, os familiares eram oficiais que desempenhavam diversas
funções de apoio aos prelados do Santo Ofício, como a prisão dos suspeitos de
heresias e o sequestro de bens dos condenados, além de outras diligências
executórias.
[3] Cela
inquisitorial.
[4] Referência
ao incidente da figueira, narrada pelos Evangelhos de Marcos (11:12-14; 20-21)
e Mateus (21:18-22). Sentindo fome, Jesus viu ao longe uma figueira. Mas,
chegando a ela, não encontrou frutos. Jesus, então, amaldiçoou a árvore:
“Ninguém jamais coma fruto algum de ti”. A figueira mirrou desde as raízes.
[5] Alusão
à célebre passagem do Evangelho de João (11: 43), na qual Jesus de Nazaré
ressuscita o amigo Lázaro, morto há quatro dias, com estas palavras: “Lázaro,
vem para fora!”.
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