A CAVEIRA DE D. LEONOR - Conto Clássico de Horror - Escritor anônimo do século XIX
A CAVEIRA DE D. LEONOR
Anônimo
do séc. XIX
Faz
alguns anos que fui convidado por um amigo a passar uns dias fora da cidade. Aproveitei
alguns dias santos e fui. No primeiro dia de guarda que tivemos, depois de
tomar logo ao nascer do Sol a mais bela e aromática xícara de café que jamais
foi feita por mãos de anéis, depois de ir admirar uma linda queda d'água que ficava
a algumas braças distante da casa, depois de dar algumas voltas no mais
frondoso e florido laranjal, depois, enfim, de muito vaguear, muito meditar,
muito conversar, almoçamos um desses almoços que não conhecem os nossos gastrônomos
da cidade, acostumados a pratinhos e guisadinhos, mas que conhecem os nossos
abastados fazendeiros: almoço que bastara para o jantar de um regular convento
de frades.
Estavam
os cavalos prontos, de modo que, acabado almoço, cavalgamos, e lá fomos diretos
à freguesia para ouvir missa. Na sacristia encontramos o vigário, homem de cinquenta
anos, com uma destas fisionomias austeras que indicam um espírito cheio de retidão,
uma prática constante da virtude; uma fisionomia tal qual em idade semelhante a
devia ter um S. Jerônimo, ou outro santo de igual quilate; fisionomia que, apesar
de tudo, não pode deixar de atrair a simpatia e o respeito de quem a vê. E,
todavia, impossível é achar maior afabilidade. Meu amigo foi recebido como
devia ser; eu, e mais companheiros, como amigos do meu amigo. Travou-se conversação
geral; mas nem por isso o bom vigário deixava de falar a todas as pessoas que
entravam para a igreja, e a todos como se com todos entretivesse muito
particular amizade.
Uma
mulher, porém, entrou toda vestida de rigoroso preto, e mostrando no rosto
todos os sinais de um violento padecer — não padecer físico, mas um padecer
moral. Não se poderia adivinhar se era a perda de um esposo ou de um filho, ou
se era algum pungente remorso; mas era alguma coisa que estava no fundo de seu
coração, alguma coisa que lhe amargurava em extremo a existência.
Ao
passar pelo vigário, abaixou os olhos; o vigário fitou nela os seus por modo
tão extraordinário que me espantou: era uma mistura de dor, de indignação, de
repreensão, de compaixão; era um olhar que significava mil emoções diferentes.
Minutos
depois, foi ele para o altar. E todos nós fomos assistir ao santo sacrifício.
E
a mulher não se retirava de meu pensamento e nem o olhar do vigário. Essa
mulher e esse olhar me conservavam em continuada distração.
Chegou
a ocasião em que o sacerdote, depois de proferidas as palavras da consagração,
eleva a divina hóstia, figurando assim a elevação da cruz em que foi pregado o
Redentor dos homens. Mal o símbolo sagrado foi depositado sobre o altar, ouvi
uma voz que dizia um Padre Nosso e uma Ave Maria pelas almas do purgatório.
Voltei-me: era ainda a mulher, a mulher que em pé acabava de pedir essa oração.
E em pé se conservou até que, proferidas as palavras sagradas sobre o cálix,
foi este elevado pelo sacerdote.
Acabou-se
o sacrifício. Voltamos para casa; mas a mulher e o olhar do vigário, e aquela
oração... nada me saía da lembrança. Segunda e terceira vez fui à missa, e
sempre a mesma coisa: sempre essa mulher, sempre esse olhar do vigário, sempre
esse Padre Nosso e essa Ave Maria entre o levantar das duas espécies sob cujas
aparências o Divino Mestre consentiu ficar entre nós, e que já são ele mesmo.
Se tivesse bastante familiaridade com o vigário, talvez a ele me tivesse dirigido
a pedir-lhe a explicação de tudo isto. Não me animei: supus mesmo que fosse
baldada a minha diligência. Contentei-me, pois, em pedi-la ao meu amigo. Eis
aqui o que me ele contou.
“Fernando
de Miranda era um mediano fazendeiro destes lugares. Foi casado com Leonor de
Macedo, de quem teve uma filha, e com quem viveu na mais perfeita harmonia por
mais de doze anos, no fim dos quais ficou viúvo, maior de quarenta e cinco anos,
e sua filha com dez. Fernando de Miranda sentiu por extremo a morte de sua
mulher.
“Nas
terras de Fernando vivia Gaspar Álvares, homem casado, pai de duas filhas de
cerca de vinte anos cada uma. A mais velha era Juliana Álvares. As duas famílias
viviam na maior intimidade: Leonor de Macedo não passava um só dia que não tivesse
em sua companhia alguma das filhas de Álvares, mas de preferência a mais velha,
cujos carinhos para com a filha de Fernando não tinham iguais.
“Por
morte de Leonor viu-se Fernando só com uma filha a de dez anos. Pensou e pensou
o que faria para não arredar de si esse penhor de sua passada felicidade. Pensou
e pensou muito, até que, por fim, decidiu-se a pedir a mão de Juliana Álvares,
que facilmente lhe foi dada. Ainda não eram passados quinze dias de seu segundo
casamento, uma terrível e perniciosa enfermidade lhe roubou sua filha. Foi para
Fernando uma segunda viuvez: não que não estimasse ele sua mulher; mas essa
filha lhe recordava os seus primeiros amores, era a representação desse ente,
que havia tanto amado, que tantos anos lhe dera de ventura. Era, enfim, a carne
de sua carne, o osso de seus ossos.
“Para
lhe mais agravar sua dor, Juliana começou a desenvolver um péssimo gênio: a
cada momento e por tudo achava motivo para uma desavença com seu marido.
Debalde procurou ele vencê-la pela brandura e paciência; debalde procurava
fazer-lhe todos os mimos. Tudo era inútil: o caráter de Juliana cada vez se
azedava mais.
“Fernando
tinha um amigo, amigo íntimo. Sendo por ele visitado um dia em que seu coração
trasbordava de pesar, deixou correr esse rio de amargura, e ao mesmo tempo
recordou com saudade a ventura de que gozara em seu primeiro matrimônio. Sem
que Fernando o soubesse, Juliana tudo ouvira.
“No
dia seguinte, à noite, foi Fernando deitar-se, mas sentiu na alcova um mau cheiro.
Juliana estava de lado, sentada em uma cadeira. Queixou-se ele. Ela lhe
respondeu que era impossível, que em vez de mau cheiro antes ele devia sentir
um perfume. Ao deitar-se, achou Fernando alguma coisa na cama...
“Era a caveira de Leonor...
“Era
a caveira de Leonor, que Juliana linha comprado ao coveiro.
“Era
a caveira de Leonor, que Juliana, irritada pelo que ouvira a seu marido, lhe pusera
na cama, para dele vingar-se.
“Fernando
estreitou nos braços essa caveira: nunca mais a quis deixar de si.
“Fatal
melancolia se apoderou dele. Pouco e pouco foi perecendo, até que, dentro de
alguns meses, deixou de existir.
“Juliana
Álvares é essa mulher que vistes. Há cinco anos que é viúva; há cinco anos que
todos os dias assiste ao santo sacrifício da missa e, todos os dias, entre o
levantar da hóstia e do cálix, faz o que lhe vistes fazer: acusa-se assim publicamente
do seu crime, e deixa conhecer a todos o seu remorso. Foi penitência que a si
mesmo se impôs, ou foi-lhe imposta no segredo da confissão? Eis o que só ela e
o vigário, seu confessor, sabem. Quer seja uma, quer outra coisa, é o mais
temível dos castigos. Estou certo que nenhum legislador poderia achar pena mais
forte para tal delito”.
Algum
tempo depois, Juliana Álvares enfermou. O vigário procurou o bispo e teve com ele
larga conferência. Voltando, foi à casa de Juliana que, daí a alguns dias,
recebeu os Sacramentos da Igreja e morreu em paz.
Fonte: “Novo Correio
das Modas” (RJ), edição nº 1, 1853.
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