DESEJOS DE NATAL - Conto de Terror - Lino França Jr.



DESEJOS DE NATAL
Lino França Jr.


O relógio parecia acelerar seu compasso minuto a minuto. Minha vista cansada começava a embaçar em frente ao computador. Eu era o único no escritório naquela véspera de Natal. Minha mulher já havia me ligado cinco vezes relatando a chegada de cada um dos familiares à nossa casa. Eu precisava terminar aquele relatório, caso contrário, minhas férias, pós-Natal, estariam comprometidas e nossa viagem para o litoral teria de ser adiada. Onze horas da noite, essa era minha meta. Teria tempo de chegar em casa, tomar um rápido banho e cear com a família e os amigos. Finalmente terminei o trabalho. Não teria tempo de revisá-lo, mas não poderia me dar a esse luxo também. Meu planejamento estava dentro da proposta inicial.

Saí do estacionamento do prédio e enquanto dirigia notava as ruas vazias. As avenidas enfeitadas e iluminadas contrastavam com alguns mendigos jogados pelas calçadas. A vantagem de dirigir àquela hora era contar com as ruas extremamente livres de carros. Tinha tempo de sobra. Não havia esquecido nada, finalmente. Ou havia?

 — Droga! — gritei, assim que me dei conta de não ter comprado o presente para meu filho, Lucas.

Dei uma guinada com o carro e segui em direção às ruas de comércio da cidade. Não podia cometer aquela falha. O garoto de oito anos havia tido um comportamento exemplar nos últimos meses, muito em razão da promessa de um belo presente de Natal.

Cheguei ao centro comercial e minhas esperanças se esvaíram quase de imediato. Apesar das vitrines festivas e iluminadas, todas as lojas estavam fechadas. Estacionei o veículo e parti a pé, como se isso me ajudasse em minha busca. No íntimo, talvez acreditasse que um dono de loja ou vendedor ainda estivesse atrasado como eu, dentro de algum estabelecimento. Desci a rua olhando para todos os lados, mas na última esquina percebi que minha procura era em vão. Nenhuma das lojas estava aberta. Cabisbaixo, segui em direção ao carro já pensando em uma boa desculpa para dar ao meu filho. Difícil seria ver a decepção no rosto do garoto, além de levar um belo puxão de orelhas da minha mulher. Ao chegar à porta do carro o milagre aconteceu. Como por encanto, do outro lado da rua, uma pequena loja de brinquedos mantinha sua porta aberta. Esfreguei os olhos para confirmar aquela visão, e atravessei a rua como um raio. Estranhamente não havia notado aquela pequena loja na rua bem em frente onde estacionara.

Aliviado, adentrei à pequena loja. Prateleiras por todos os lados exibiam belíssimos brinquedos feitos à mão. Marionetes, bonecas de cerâmicas, carrinhos de madeira, um sortimento imenso de jogos e brincadeiras de minha infância, me enchiam os olhos de nostalgia. Olhava tudo com atenção até ser surpreendido por uma voz vinda do fundo da loja:

— Alguma coisa lhe agradou, senhor?

Olhei para o homem que saía detrás de um balcão. O atarracado homem por muito pouco não seria considerado um anão. Usava um macacão jeans desbotado sobre uma camisa de gola branca. Uma barba rala cobria-lhe o queixo terminando num bigode mal aparado sob o nariz. Os olhos azuis eram protegidos por óculos redondos que pareciam de brinquedo. Se o pequeno homem não houvesse falado comigo, eu juraria que ele era mais um boneco entre tantos outros daquela misteriosa loja.

—Sim, na verdade muita coisa me agradou — respondi. — Principalmente o fato da sua loja ainda estar aberta a essa hora.

O homem ameaçou um sorriso antes de responder:

— Eu moro nos fundos da loja, por isso mantenho as portas abertas para os clientes atrasados e esquecidos — disse ele, me olhando por cima dos óculos. — E eles sempre aparecem atrás de algum brinquedo para seus filhos.

 Senti algo estranho naquele ambiente, e alguma coisa naquele homem me causava desconforto. Ainda assim, estava feliz. Corri os olhos pela loja mais uma vez, pois o relógio não parava de correr. Tudo era tão bem feito que eu tinha dificuldade em escolher o presente certo.

— Em dúvida? — perguntou o homem.

— Na verdade, sim. Seus brinquedos são maravilhosos, mas não tenho certeza se essas peças tradicionais agradarão ao meu filho. O senhor sabe como são as crianças de hoje, tão acostumadas com as modernidades eletrônicas.

— Acho que tenho o presente perfeito para um garoto de oito anos — disse o homem se dirigindo para o fundo da loja.

Novamente aquela sensação estranha me incomodou. Não me lembrava de ter dito a idade de Lucas ao vendedor. Aquele ambiente começava a me amedrontar. Na parede, um relógio antigo permanecia com os ponteiros parados marcando exatas doze horas. Antes de me virar para sair da loja, o homem surgiu do nada:

— Aqui está, meu senhor — disse ele estendendo-me um estojo preto retangular.

Apanhei a caixa e coloquei-a sobre o balcão, curioso. Puxei a tampa de madeira para descobrir o que havia lá dentro. O conteúdo parecia ter uma luz própria, pois ao ser aberta, a pequena caixa iluminou o fundo da loja. Lá dentro, um boneco repousava sobre um fino papel de seda lilás. O boneco extremamente benfeito vestia um macacão verde musgo sobre uma camisa branca de cetim. Os olhos azuis eram cobertos por óculos redondos e dourados. Uma barba branca e impecável cobria-lhe boa parte do rosto rosado. Além disso, um gorro em forma de cone, no mesmo tom verde da roupa, protegia sua cabeça redonda. Com exceção de pequenas alterações, aquela era uma cópia perfeita do dono da loja que me atendia. Olhei do boneco para o homem, que mais uma vez exibia um sorriso sinistro nos lábios, e antes que eu pudesse dizer qualquer coisa ele falou:

— Eu sei, o boneco se assemelha a mim, mas essa é só uma feliz coincidência.

Percebendo minha desconfiança com aquilo tudo, ele continuou:

 Esse é Shovan, o gnomo dos desejos. A cada primeiro dia do ano, aquele que for seu proprietário deve colocar uma moeda no bolso de seu macacão e fazer um único pedido, que será realizado no decorrer daquele ano. No calendário seguinte, poderá ser feito um novo pedido.

— Que história interessante — disse eu.

Para mim a história era bem mais atraente que o próprio boneco, e talvez, aquela fosse uma boa saída para explicar um presente tão inusitado para o meu filho.

Acertei o pagamento com o homem, agradeci e saí da loja. Antes de entrar no carro, fiz um último aceno ao pequeno homem que aguardava sob o umbral da loja do outro lado da rua. Mesmo àquela distância pude notar o peculiar brilho de seus olhos azuis.

*****

Cheguei apressado em casa e entrei pelas portas dos fundos. Antes de chegar ao banheiro da suíte, dei de cara com minha mulher com expressão sisuda.

— Desculpe o atraso, amor — e antes que ela perguntasse, completei. — Mas não se preocupe que comprei o presente do Lucas.

Seu rosto pareceu suavizar-se um pouco ao notar o estojo em cima da cama, e assim, corri ao chuveiro para não perder mais tempo.

Ao sair do banho, levei um susto ao perceber que a caixa preta estava aberta sobre o colchão, e o boneco não estava mais lá. Apenas com a toalha enrolada no corpo, fiz menção de abaixar-me para procurá-lo em baixo da cama, mas fui surpreendido por uma risada infantil que invadiu o cômodo. Atrás da porta, Lucas brincava com o gnomo dos desejos, e nem pareceu notar minha presença.

— Ora, ora. O senhor não pode esperar até receber o presente? — indaguei.

O garoto correu ao meu encontro e me abraçou com força, sem deixar de soltar o boneco.

— Eu adorei, papai. Não esperava esse presente, mas eu adorei assim mesmo — disse ele realmente feliz.

— Que bom que gostou. É bom ganhar um presente diferente de vez em quando, não é, filhão?

O garoto já estava na porta do quarto, animado para mostrar o novo presente para os familiares, mas antes de descer as escadas, falou:

— Eu sempre quis ter um gnomo dos desejos.

Fui assaltado pela mesma sensação desconfortável que senti dentro da estranha loja. Apanhei a caixa de madeira sobre a cama apenas para constatar o que eu já sabia: não havia menção alguma que aquele boneco incomum era um gnomo dos desejos, logo, meu filho não tinha como ter aquela informação.

A ceia de Natal ocorreu normalmente. A casa estava cheia e a harmonia reinava naquela noite. Reparei que Lucas não largava do boneco em nenhum momento.

Depois das três da manhã, o silêncio dominava a casa. Todos os parentes e amigos passariam a noite por lá. Os quartos de hóspedes estavam lotados, e na sala de estar os colchões espalhados pelo chão já estavam devidamente ocupados. Quando confirmei que tudo estava na mais perfeita ordem, me recolhi ao meu quarto. Antes de me deitar, ouvi uma voz da qual não conhecia vinda do quarto de Lucas. Abri a porta com cuidado, a tempo de ouvir meu filho dizer a alguém:

— Não se preocupe, não vou deixar ninguém me separar de você...

— Com quem você está falando, Lucas? — perguntei ao constatar que não havia mais ninguém no quarto.

— Com ele, pai — respondeu ele, levantando as cobertas e me mostrando o pequeno gnomo deitado ao seu lado.

*****

Mesmo me sentindo estranho com a presença daquele boneco na casa, adormeci quase que instantaneamente. Em pouco tempo, fui desperto por um grito pavoroso vindo do andar de baixo da casa. Saltei da cama e logo notei que minha mulher não estava ao meu lado. Segui abrindo as portas dos outros quartos, e não havia ninguém nos cômodos. Nem mesmo Lucas estava em seu quarto. Um novo grito gutural irrompeu pela casa fazendo os pelos do meu corpo arrepiarem-se. Voei pelas escadas imaginando o pior. Dessa vez fui surpreendido por uma gargalhada infantil. Vasculhei os corredores, cozinha, banheiros até chegar na sala de estar. Minhas pernas fraquejaram diante daquela visão. Todos os amigos e familiares estavam inertes pelo chão. O sangue que cobria seus corpos derramava-se pelos móveis e paredes, formando enormes poças sobre o tapete. Não conseguia entender o que os havia assassinado, nem como e nem porquê. Uma nova risada encheu o ambiente. Dessa vez reconheci a voz de Lucas vinda do lado da porta de entrada onde estava uma poltrona alta de costas pra mim. Pé ante pé, me aproximei chamando seu nome quase num sussurro. Com cuidado e temendo o que encontraria, cheguei até a poltrona onde Lucas estava sentado. Ao lado do gnomo, que permanecia com um sorriso estampado na cara e que não existia quando eu o comprei, meu filho, Lucas, contava dezenas de moedas douradas com as mãos cobertas de sangue. Antes que eu pudesse lhe perguntar qualquer coisa, ele me perguntou:

— Quer fazer um desejo, papai?

Acordei do pesadelo num salto. Minha esposa saía do banheiro com a escova de dentes na boca, e me olhou com espanto.

— O que foi? — perguntou ela, notando o meu estado.

O suor colava meu pijama no corpo. Pela janela já era possível observar que o sol surgira no céu. As primeiras vozes já eram ouvidas no andar de baixo da casa. Respirei fundo ao averiguar que tudo estava bem. Fora apenas um sonho ruim. Deitei na cama, aliviado, até perceber que algo me observava no quarto. No criado-mudo, o sinistro boneco de Lucas me fitava com seus assustadores olhos azuis. Não esperei mais. Peguei o gnomo dos desejos e o enfiei numa mochila. Nem mesmo troquei de roupa, e desci as escadas em direção à garagem, sem nem mesmo responder as perguntas daqueles que já estavam em pé e me viam correr como um louco segurando uma mochila. Saí em disparada com o carro, cortando até mesmo os faróis vermelhos das avenidas. A cidade ainda não havia acordado completamente naquela manhã de Natal, o que me ajudou a chegar mais rapidamente ao centro comercial. Parei o carro e desci do veículo deixando sua porta aberta. Não conseguia entender, pois apesar de ter certeza da exata localização da loja, ela não estava mais lá. Em vez da vitrine de vidro com diversos brinquedos antiquados em seu interior, um tapume escuro cercava todo o espaço onde há menos de dez horas eu havia estado. Não havia mais dúvida. Algo de muito estranho acontecera a mim naquele lugar, e a única prova do que ocorrera era o maldito boneco que agora estava trancado dentro da mochila. Corri para meu carro e parti para um novo destino. No limite da cidade, onde um precipício tinha como fundo as águas turvas e traiçoeiras de um rio, arremessei a mochila com o boneco, assistindo sua queda e seu desaparecimento na correnteza violenta. Esperei por mais alguns minutos para que nada de sobrenatural acontecesse. E nada aconteceu. Com um suspiro de alívio, voltei ao carro.

O sol forte deixava o dia claro e agradável. Me recompus e parti em direção de casa. Tudo havia sido resolvido. A mim só restava encontrar uma boa desculpa para o sumiço do presente recém-ganho por meu filho, mas, nada que um video game de última geração não o fizesse esquecê-lo. Baixei o vidro do carro deixando a brisa fresca da manhã me fazer companhia, pois em nenhum momento, notei que era observado por Shovan, o gnomo dos desejos, que permanecia sentado no banco de trás do carro me fitando com seus terríveis olhos azuis.


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