OS CINCO PRESENTINHOS - Conto de Horror Natalino - Paulo Soriano
OS
CINCO PRESENTINHOS
Paulo
Soriano
Talvez
a minha natureza melancólica, por si só, já fosse suficiente a me fazer sentir,
com intensidade maior que a vossa, a angústia subjacente às mais alegres noites
de Natal. Todavia, não há dúvida que essa exacerbação sensível se deve, em
grande parte, ao fúnebre acontecimento da noite de 24 de dezembro de 1879.
Eu
tinha então apenas nove anos de idade e era o primogênito de uma família pobre
e numerosa.
Meu
pai era mineiro de carvão da região de Mons e a minha mãe falecera ao dar à luz
à pequena Louise. Por esta época, eu já era empregado na mina de Pâturages e
passava o dia todo me esforçando sobre os trilhos, a empurrar os vagonetes
carregados de hulha. Mas, quando minha mãe morreu, tive de abandonar o serviço
para cuidar da recém-nascida e de outros quatro irmãos menores. Um salário
miserável a menos, uma boca esfomeada no lugar de outra.
Porque
éramos muito pobres, jamais havíamos recebido um presente de Natal. Mas,
naquele ano, o meu pai, ao retornar da mina, mais limpo do que nunca, trazia
nas mãos cinco presentinhos, embrulhados em papel colorido e atados em cordões
dourados, salpicados de neve. Acompanhava o meu pai um pregador holandês, um
jovem homem de cabelos ruivos e olhar tempestuoso.
Sem
tirarmos os olhos dos presentes, ouvimos, impacientemente, o missionário ler,
com sincera devoção, um trecho da Bíblia.
Durante
a leitura, o meu pai mantivera fechados os olhos tristes. Supus que ele ouvia
mais os próprios pensamentos que as palavras de Deus, porque foi preciso que o
pregador holandês o tocasse nos ombros para que ele despertasse do profundo
devaneio. Mas eu estava enganado. Hoje tenho toda a razão para crer que ele
escutara atentamente esta passagem:
"Tendes
ouvido o que foi dito: ‘Amarás ao teu próximo e aborrecerás ao teu inimigo’.
Mas eu vos digo: Amai os vossos inimigos, fazei bem ao que vos odeia, e orai
pelos que vos perseguem e caluniam...".
—
Coragem, homem — disse o missionário. — Deus não te deixará desamparado. Não
penses assim. Apesar da grave crise, teus filhos não morrerão de fome. Nem de
frio.
Somente
depois soube a razão daquele gesto consolador: engrossando a espessa legião de
mineiros desempregados, e sem a mínima possibilidade de obter um novo serviço,
meu pai havia sido sumariamente despedido.
O
pregador holandês tirou os sapatos e os entregou a meu pai.
—É
um sapato novo. É a primeira vez que eu o uso. Mas agora é teu. É um presente
de Natal.
Meu
pai não conteve as lágrimas. Abraçou-se ao Sr. Vincent van Gogh e chorou
convulsivamente. O missionário holandês o consolou como podia e depois partiu,
mergulhando os pés nus na neve gelada, que se acumulava nos caminhos.
Certamente, doara as meias novas a outro necessitado. Para nós, um nobre ritual
de um batavo ensandecido.
Então
meu pai distribuiu os presentes. Eram todos iguais: fatias de um bolo mofado e
delicioso, que comemos com muita fome e maior gula. Aquela noite, para mim e
para os meus irmãos menores, parecia a mais feliz de nossas existências
miseráveis. Era a primeira vez que ganhávamos presentes. Era a primeira vez que
comíamos um bolo. Era a primeira vez que o Natal fazia algum sentido para nós.
Havia
em meu pai, que nos via comer com tanta alegria e prazer, uma satisfação
honesta. Ele estava feliz e orgulhoso por nos proporcionar este momento de
sublime felicidade. É por isso que eu não sabia decifrar o motivo daquelas
lágrimas pesadas e silenciosas que ele, serenamente, evitava reprimir, como se
elas fossem, as lágrimas mesmo, naquele momento, a sua única fortuna e sua
única necessidade.
Fazia
frio. Meu pai nos pôs a deitar. Beijou-nos um a um. Abençoou- nos. Abraçou-se a
cada um de nós demoradamente. “Nem fome, nem frio” — disse-nos, um a cada vez,
enquanto engolia um derradeiro olhar de ternura e compaixão.
Acordei
em plena madrugada. Suava. Asfixiava. Tentei erguer-me do leito de feno, mas eu
me sentia pesado demais para qualquer esforço. A minha garganta ardia horrores
e o meu ventre dolorido contorcia-se involuntariamente. Quase sufoquei no
vômito, que era uma torrente de chumbo derretido. Depois, aliviado, sucumbi ao
sono e à lassidão. E, sobretudo, à quentura reconfortante que meu próprio corpo
produzia.
Quando
o calor me abandonou, deparei-me com a tragédia. Meus irmãos jaziam, sem vida,
abraçados uns aos outros, como costumavam dormir, porque sempre ávidos de
calor. Tinham os lábios roxos e os ventres inchados. No berço de palha
trançada, estava Louise. Manchas escarlates distribuíam-se uniformemente em seu
rostinho de criancinha morta. Fora ali que o meu pai afundara os dedos, para
estancar-lhe o fluxo de vida. Depois, enforcou-se o meu pobre pai numa trave
pendente do teto, próximo à lareira, que, nesta noite de Natal, sem hulha
alguma, permanecera vazia e silenciosa.
Com
letras típicas de um homem quase analfabeto, escrevera ele um curto testamento,
a lápis, sobre o invólucro de um de nossos presentes. Deixava um sapato novo —
único bem que possuía — ao capataz que o demitira.
Imagens: Frank Holl e Vincent van Gogh
Muito bom! :D
ResponderExcluirObrigado, Maycon!
ResponderExcluirMaravilhoso, posso contar essa história no meu tiktok? Darei os devidos créditos.
ResponderExcluirPode sim, Léo. Anraços. Paulo.
ExcluirQue conto bom, meu amigos!
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