A LENDA DO CASAL CHATERVEELL - Conto de Terror - Max Miranda
A LENDA DO CASAL CHATERVEELL
Max Miranda
(Conto finalista
do I Concurso Literário “Contos Grotescos” – Prêmio Edgar Allan Pöe)
Estranhos envolvidos numa alma insone. Manhã fria: quem não acordou ali,
morto permanece. O silêncio escorre entre as primeiras listras luminosas,
inacabadas luzes. A casa cabia poucas frestas. Úmida. Amanhece, e um fio de
palavras distantes ocupa o vento, rasteja até aos ouvidos de hóspedes e
humildes. O casal acorda. Não anuncia o despertar. O lugar, sempre aos pés do
medo, se encarrega de abrir os olhos de todos. Os dois descem a escadaria. “Sorrir
é uma desgraça”. Ele concorda com um sinal forçoso nos lábios. No último
degrau, pronuncia: “Seres de Chaterveell, não morram por amor. Saibam, atiro a
morte aos amantes dos maus desejos”. Terminou a fala e sentaram num sofá vinho
de respingos vermelhos. Vozes aumentam. Agitação e desequilíbrio na sala. Ninguém
imagina o fim da manhã ou o começo da noite. Um barulho deixa a atmosfera
indecisa. Não podem correr os convidados. Não há saída. Há agonia.
O som parece um bicho acuado, invadido na mata escura, e as árvores gritam
de dor. Muito barulho. Todos querem correr, mas as pernas obedecem somente ao
medo. “Não sabemos das respostas”, comenta uma humilde, desgraçada entorpecida,
cheia de manchas de sangue, numa na cadeira de cinco pernas, ao lado do casal.
A fúria velada deles escuta corações, e quer saber dos desesperos ainda mais de
perto.
“A miserável demais morre queimada, furada por chifres, esmagada por
bichos alados. E facões de aço dão fim à cabeça. Esse é meu terror salivado aqui
na casa de chamas brutas”, perturba a bela Chaterveel. “Cansei de ver, quero
participar. Sejamos”, e aponta aos coitados. “A maldade aplicada descarna. Maltrato
com prazer. Homens e mulheres rolam no fel dia após dia. Seremos os doentios
adoradores do corpo”, ele completa a loucura.
“A Alma do prazer está em
nós. Vamos aliviar nossas penas, seres de carne! Não amem
nada agora, comam!”. A leitura sempre pela manhã fresca, na casa dos
Chaterveell. O mausoléu é abraçado por enormes trepadeiras. Janelas e grandes
portas rangidas – gritam para abrir. A matança acontece nas sacadas principais.
O quarto do casal Chaterveell é um infinito mistério. Quem passa pela casa dos
Chaterveell, jamais sobrevive sem as ordens da morte. Os amantes são os fiéis
protetores e serviçais. “Trabalha, ser. Assim sustentamos a vida que lhe és digna”,
mais um trecho marcado no Livro do Fogo. Suas letras saltam selvagens como
labaredas. Ninguém desafia a inteligência do casal. Sabedoria é a seta em brasa
que fura o coração dos amantes. Tinham a chance de convidar o gado para cear no
Salão dos Ecos do Prazer.
Ali gemem os mais suculentos corpos da região. Taças medievais são cálices
sagrados de sangue. As gotas que escorrem são aparadas. Como bebiam! Os
convidados permanecem de olhos arregalados, encantados pelo caldeirão de prazer-morte
que é o mausoléu. Um lugar de almas desoladas, barrigas furadas e vermes vorazes.
Mais uma vez se abre o Livro do Fogo, e nojos: “Podemos até procurá-los, mas
nada encontraremos nestes cérebros. Uma vírgula no contrato está errada! Procurem
as falhas, contem uns aos outros e depois subam. Uma escada espera no final do
Corredor dos Quadros Negros”. Um caminho que abriga uma coleção de imagens.
Molduras escuras aparam um rosto que sorri maldosamente. Um olho chora nuvens de
chuvas. Um corrimão de espinhos entalhado em prata. Um rio e dois
peixes sendo devorados pelo prazer da água. A vida no corredor ensina a andar.
Era uma louca passagem passar por ali.
Os Chaterveell se recolhem. E recolhem para escrever as palavras em cada
corpo: matavam, esmagavam lentamente. O beijo flutua em aspirais no lustre
cristalino do quarto. Amam como se a vida lhes tivesse dado um prêmio: são deuses
raros! Acordam e logo era acesa a chama da casa. Aquela noite jura uma
madrugada de peles frescas e sangues puros. Os cálices eram polidos à fina seda.
Os chamados para a ocasião chegam. Sempre com olhos nos cantos.
“E nós, rei e rainha, catamos olhares que se parecem bolhas
desorientadas”. Começaram a leitura, e quem abre a primeira página era o escolhido.
Ele leu: “Eu – a voz parece ter engolido um fonema desconhecido – assino o
pacto que nossas presas abrirão caminho para o sangue percorrer o cálice.
Brindamos!”.
O gole inicial é da inquietante Veell. O seguinte é dele, o detentor do
ódio e medo, Chater, que inunda a boca de vontade.
Bebem e se animam dançar “A Pena dos Vivos”: uma música que lhes foi
oferecida por um amigo. Dançam como se uma única pena tivesse se deslocado do voo
leve do pássaro negro. Uma valsa da eternidade. Os corpos parecem sumir no ar e
o cheiro da força da carne foi espalhado. Todos. Amanhece, viram as costas,
fecham as portas maiores e tudo que restou foram sobras de sussurros que
invadem as paredes. Mais uma vez o casal Chaterveell vence a batalha do ser.
“Querido amor, quando não seremos os últimos?”. Esta é a raridade, querida.
Jamais outros! Somos o entendimento mais próximo dos fracos. “Morreremos? Não,
comecemos a cavar”. Fecharam o Livro, apagam a lareira, cobrem-se com sangue.
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