A REZA - Conto de Terror - Vicente da Silva Junior
A REZA
Vicente da
Silva Junior
(Araraquara/BR)
(Conto finalista
do I Concurso Literário “Contos Grotescos” – Prêmio Edgar Allan Pöe)
Todos os homens pensam ser bons. A tarefa de
sempre inocentar a si mesmo é simples. Todos os homens pensam ser bons. Até
descobrirem, da pior forma, que não são... O Mal habita naturalmente as almas
dos seres humanos como uma doença silenciosa e mortal. E, em constante
espreita, aguarda pacientemente o momento certo de mostrar literalmente
"as garras" em assustadores casos específicos em que é
propositalmente invocado.
Roma,
Itália, 1287 dC, ao nascer do sol, um velho padre foi ao chão, morto e com o
corpo aos pedaços após uma árdua e obrigatória batalha contra o que sabia não
poder vencer. O grande rosário ensanguentado enrolado nas mãos dilaceradas, os
pedidos de piedade e a fé fragilizada não foram armas suficientes para conceder
a vitória sobre a gigante sombra negra de aparência medonha e indefinidas.
Abundantes lágrimas decorrentes de dor intensa haviam escorrido e tornado o
rosto um ponto de encontro entre o bem inexistente e o mal presente,
representado pelo sangue claro na face. Sangue de tom rosa em virtude da
mistura com o líquido proveniente dos olhos. "A rosa maligna e
fatal". Os altíssimos gritos agudos da criatura durante a guerra de
somente uma noite haviam ecoado por toda a abadia, como um ensurdecedor hino
maldito, mas nenhum dos vários outros missionários ali presentes tivera coragem
de ir em seu socorro. Principalmente por saberem que o ser saíra por sua
própria vontade, de dentro de si mesmo, do fundo da sua alma apodrecida pelos
enganos cometidos através do tempo. Após a barbárie o demônio alado desapareceu
por entre os corredores escuros e frios do imenso templo, como uma horrível e
sombria nuvem movida por um furacão, carregando consigo uma espécie de carta
arrancada do cadáver...
Tudo
começou quando ele, o velho pároco, encontrou um antigo pergaminho de origem
desconhecida. A descoberta dera-se numa tumba repleta de esqueletos humanos e
de animais de vários tipos e gravuras horríveis em todas as paredes, há muito
lacrada pelos seus superiores religiosos póstumos em virtude dos cultos
proibidos ali praticados por seguidores de bruxaria negra, sempre perseguidos
com fúria e intolerância pelo Vaticano. Isso tudo estava explicado no próprio
sombrio documento escrito em sangue e em dialeto pagão extinto. Mesmo sob
rígidos conselhos dos próximos para que não desse continuidade ao mau
explícito, o velho prosseguiu convicto. Tomado pela natural necessidade que os
homens têm em tentar desvendar os mistérios do além "antes da hora",
prosseguiu. Trabalhou arduamente durante dias e longas noites insones na
difícil tradução e, após a compreensão, seguiu à risca todos os tenebrosos
passos.
Tratava-se
os dizeres de uma espécie de "reza negra". Um tipo de autoexorcismo
que prometia livrar o cultuador de todos os "maus interiores", se por
acaso o mesmo os possuísse. Algo como um remédio preventivo que expurgaria por
completo qualquer vestígio da passagem ou presença maligna e conduziria uma
alma pura rumo à eternidade. Só não estavam mencionados no assustador documento
quais seriam as consequências inimagináveis no caso da existência real do mau
na alma, por menor que fosse, e de como seria a "expulsão"... E,
infelizmente, todos os seres humanos são alvos fáceis "dele". Todos
têm, constantemente, suas chances de se tornarem discípulos das sombras. Mesmo
que somente em rápidos pensamentos ruins, pequenos atos momentâneos egoístas e
deslizes negativos diários. Todos são imperceptivelmente tentados minuto a
minuto. A diferença é que o bem se dissolve rapidamente na jornada da vida,
como uma simples colher de açúcar derramada no oceano na inútil tentativa de
adoçá-lo. Mas o mau é forte e deixa suas raízes. Ele vai se acumulando com o
rodar dos ponteiros e torna-se forte, como uma fera diariamente bem alimentada
que vem se desenvolvendo junto aos rodar desses mesmos ponteiros e que, num
certo momento de acúmulo completo, liberta-se para iniciar a vingança sobre seu
próprio criador.
Esse
foi o grave erro do padre. Foi traído exatamente pelo "auto-julgamento
bom" e pelo "esquecimento" de certos detalhes. A participação
direta e conivência absoluta com a absurda Inquisição que tantos inocentes
vitimou, a arrogante e desnecessária superioridade em inúmeros casos diante de
humildes, o constante uso indevido do poder e da autoridade suprema e assim por
diante. Mas, reconhecer falhas e assumir erros é uma virtude que poucos
possuem... E, certo da bondade total que pensava possuir e em busca da
purificação total, libertou o seu verdadeiro ser do fundo das suas entranhas.
Certo da inocência e da provação a qual não temia, abriu as portas do seu
inferno pessoal e deparou-se com o mesmo ser que o trucidou após uma longa e
sangrenta noite de tortura como forma de acerto de contas com o passado.
Uma
das "cláusulas" do pergaminho ordenava que uma cópia exata dos
dizeres fosse feita pelo usuário do momento, em seu próprio idioma e em
vermelho, e que tal deveria ser escondida num lugar secreto antes do início do
ritual com a original. O obediente religioso equivocado havia cumprido à risca
também tal determinação, sem medir consequências.
Araraquara/SP,
Brasil, 2009 dC, um riquíssimo empresário de origem Italiana, enfurecido por
algumas perdas inesperadas no mercado financeiro, arrebentou com as próprias
mãos numa noite uma linda escrivaninha de madeira nobre, onde traçava constantemente
seus rumos comerciais. O móvel era uma relíquia e fazia parte do acervo da
tradicional família há várias gerações. E, para o seu espanto, entre as lascas
restantes percebeu uma espécie de fundo falso muito bem planejado. Desse espaço
oculto retirou um estranho papel antigo, escrito em Latim com letras
"vermelhas". Tomado por curiosidade máxima mandou que especialistas o
traduzissem. Mais uma vez conselhos para não "caminhar por entre o
desconhecido" se fizeram presentes, dados pelos mesmos estudiosos
tradutores, assim como fora com o padre em Roma, e mais uma vez as advertências
foram ignoradas pela certeza da "bondade máxima presente na alma"...
Tratava-se
o homem um poderoso empresário, como já dito, porém, "um
empresário"... Dono de fortuna construída de forma estranha em certos
aspectos, centenas de empregados nem sempre tão bem tratados e demais tristes
atributos presentes nas vidas dos donos do poder. Algumas míseras
"esmolas" dadas casualmente e a presença constante nas missas
dominicais para uma boa imagem pública deram a nova convicção errônea de
"pureza" para aquele que igualmente nada conhecia de si mesmo.
Madrugada
de 31 de outubro, sozinho na sua mansão o poderoso homem, na tentativa de
"limpar o que de certo não existia", blasfemou e vociferou as tais
mesmas assustadoras palavras. E, assim como fora na outra situação, rapidamente
tenebrosos gritos indefinidos de altíssimo timbre ecoaram por todo o quarteirão
e o sangue novamente arrancado verteu abundante. Como um voraz predador
devorando sua presa. Mais uma vítima da própria consciência inexistente. Assim
como também fora determinada na outra situação, uma nova cópia exata do tal
pergaminho ficara segura em seu cofre particular. Muito bem escondida para, um
dia, ser novamente posta em prova por qualquer que tenha a facilidade de se
julgar "bom". Pois esse era o real poder e intenção do maligno
documento, juntar todos os cacos do mal guardados nas lembranças através da
"reza", como um horrível quebra-cabeças, potencializar e
personificá-los na forma uma grotesca criatura assassina, com sede de sangue de
proporção exata a quantidade de cicatrizes na alma suja do seu criador e
libertador.
Com
raríssimas exceções infelizmente só existem dois tipos de pessoas nesse há
muito nojento mundo: as que conhecem realmente seus podres internos e nada
temem posteriormente em virtude dos seus erros, quaisquer que sejam as
proporções; e as de memória propositalmente fraca... As tentações fazem parte
da vida das pessoas assim como o oxigênio, invisível mas presente em todos os
lugares. Até o Cristo em pessoa foi tentado quando esteve aqui... E em
incontáveis casos ceder a tais tentações passa a ser tão corriqueiro quanto o
próprio respirar. Fraco é aquele que permite seus pensamentos controlarem suas
ações, e forte é o que faz suas ações dominarem seus pensamentos. Por tal,
muitos serão ainda os dilacerados pelos seus demônios pessoais em meio a
mistura "rosa" de lágrimas e sangue, após cumprirem convictos as
determinações citadas no encontrado pergaminho da... "reza", pois o
mal existe e não teme o tempo.
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