AMIGOS - Conto Fantástico - João Mário Algarvio Dias Henriques
AMIGOS
João Mário
Algarvio Dias Henriques
(Conto
finalista do I Concurso Literário “Contos Grotescos” – Prêmio Edgar Allan Pöe)
— Sim?
—
Podes falar.
—
Sobre o quê?
— Não
evites.
— Não
evito o quê?
—
Fala, sabes que te faz sentir melhor.
— Nada
me faz sentir melhor.
—
Vamos passar o resto do tempo a andar em círculos? Mais tarde ou mais cedo tens
de enfrentar os teus problemas.
— ...
— Vá
lá...
—
Merda.
— É um
principio. Podes continuar.
— Não
levanta.
—
Como?
— Não
o consigo levantar.
—
Mas... Tás parvo?
—
Primeiro pedes para falar, agora gozas?
— Que
idade tens tu?
— Um
ano.
— E
esperas já conseguir alguma coisa?
— Não
é de esperar?
— Eu
demorei oito a nove anos a conseguir.
— Mas
tu também demoraste não sei quanto tempo a conseguir falar como eu.
— Tens
razão...
— Sim,
eu sei que tenho.
— E
isso é possível a alguém como tu?
— Alguém
como tu? Que queres dizer com isso?
— Não
estejas com merdas.
—
Merdas, eu?
— Vá
lá, tu não passas de uma girafa de peluche.
— E os
peluches falam?
— Na
minha cabeça parece que sim.
— Não
é suposto ouvires os meus problemas?
— É
suposto ouvir os teus verdadeiros problemas.
— És
tu quem decide quais são os meus problemas?
— Ok,
desculpa. Tens razão.
— ...
—
Fala.
— O
gato incomoda-me.
—
Estou a ouvir-te.
— Ele
está sempre de volta de mim. Quando me aproximo da boneca no quarto da tua mãe.
— Tu
queres comer a boneca!?
— Mas
vais ouvir, ou vais opinar sobre tudo o que tenho para dizer.
—
Desculpa, não costumo ter conversas com peluches.
—
Espero que não passes o tempo a pedir desculpas.
—
Sim... Continua, estavas a falar do gato.
— O
gato incomoda-me. Cada vez que tento alguma coisa, basta roçar o meu pescoço na
face dela e zás! Lá está ele ali.
—
Tenho que perguntar... Tu não és articulado, como consegues ir até lá?
— Acho
que não vou ter de te explicar o que tu fazes comigo.
— Não
sou eu que te levo lá.
— Por
favor... achas que consigo ir até lá sozinho?
—
Não... esquece isso. Afinal que faz o gato?
—
Nada.
—
Nada?
— Sim,
fica ali a olhar para nós.
— Só
isso?
— Só
isso!? O cabrão fica ali à espera do mais pequeno movimento, tenho a sensação
que mal o levante ele ataca-me. Não sei o que me pode acontecer.
— Ele
não terá ciúmes?
— Mas
que raio iria fazer um gato com uma boneca?
—
Pois...
— O
gato fode gatas! Ok?
—
Pronto, pronto. Achas que te pode fazer mal?
— Já
olhaste bem para as unhas dele?
— Sim,
mas por que raio iria ele atacar uma girafa de peluche, que não sei po rque
razão acha que é um macho.
— Toca-me.
— Hã?
— Toca-me.
—
Onde?
— Vê
se tenho mamas.
—
Basta olhar. Não, não tens.
— Se
não tenho mamas é porque sou macho.
— Mas
onde está o resto?
— O
resto?
— Sim,
o resto do material? Para ser macho precisas de mais qualquer coisa.
— Pois
esse é o problema. O resto aparecia se não fosse o gato a incomodar-me quando
estou prestes a entrar em acção.
— Vou
respirar fundo e perguntar-me por que raio estou a ter uma conversa com um
peluche.
—
Isso, agora ignora-me. Lá porque tenho problemas deixo de ser teu amigo. É
sempre a mesma merda, quando chega à altura tu desamparas a loja.
— ...
—
Continuo aqui e não vou sair daqui.
—
Tenho mesmo que falar contigo, não é?
— Ou
então ficas a ouvir-me o resto do tempo.
—
Merda... Enfim. Que queres de mim?
— Que
fiques a vigiar o gato, para que possa descontrair e fazer alguma coisa. Senão
não vou lá.
— Só
tenho que ficar a olhar para ele? É isso?
—
Basicamente, sim.
— Se é
para acabar com a conversa vamos a isso.
Mas na
minha cabeça eu sabia o que ia acontecer. Por isso levei-o até lá. Pu-lo junto
à boneca, o gato veio sentar—se junto a eles e ficou a observá-los. Eu fiz o
meu trabalho, sentei-me ali a olhar para o gato. A girafa realmente tinha um ar
mais descontraído. Qualquer coisa começou a surgir no seu abdómen. Ele confiou-me
a sua segurança. Foi o seu último erro. O gato olhou para mim e não reagi.
Atacou de imediato. Simplesmente virei a cara. Não quis ver o que estava a
acontecer. Quando acabou, o gato saiu do quarto deixando atrás de si um rasto
de espuma de enchimento, onde era impossível reconhecer a girafa. Não podia
continuar a ter conversas parvas com gente que não existe. Não podia deixar que
me empatassem a vida. Agora falo apenas com o gato, mas ao menos esse move-se e
já deixou de se queixar das traições constantes da boneca de porcelana.
Estranhamente o microondas começou a escrever-me bilhetes acerca do vazio que
sente no seu interior.
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