ENGANANDO A MORTE - Conto de Terror - João Rogaciano
ENGANANDO A MORTE
João
Rogaciano
Alverca
do Ribatejo (PT)
Sentado no terraço de sua casa de campo, o
multimilionário Silva olhava para o rio. A calmaria das águas contrastava com a
agitação que sentia no seu âmago. Aos seus ouvidos soava ainda a voz do médico,
seu amigo de há longos anos.
—
Lamento informá-lo, Silva, mas você tem cancro – dissera-lhe o médico,
pesaroso. Acrescentara: — No pâncreas. Incurável.
— Mas, doutor… mande-me
para um dos seus colegas. Como sabe, dinheiro não é problema – argumentara
Silva, chocado com a notícia.
- Lamento, mas não há
cura. Com esse tipo de cancro e a sua idade…
O médico tinha razão,
cancro no pâncreas e os seus 80 anos eram incompatíveis com uma recuperação e
com a sobrevivência. O médico dissera-lhe que só teria uns seis meses de vida.
Ora, essa conversa acontecera há cerca de quatro meses, pelo que só lhe
restariam uns dois meses de vida. Apesar de possuir uma idade bastante
avançada, Silva não se sentia nada velho. Na verdade, até lhe ser diagnosticado
o cancro, Silva escalara montanhas, praticara desportos radicais, mergulhara
nas zonas mais profundas dos oceanos, pilotara o seu avião ultra-leve. Enfim,
fazia uma vida activa, capaz de fazer de inveja a qualquer aventureiro. Para
Silva, idade não era sinónimo de velhice. Quando o médico lhe lera a sentença
de morte, Silva correu todos os milagreiros, cientistas e médicos na procura de
uma solução. Agora, jazia sentado numa cadeira, com o doseador automático de morfina,
que lhe aliviava as dores e que lhe distorcia a noção da realidade. E
aguardava. Não a morte que o amigo médico lhe vaticinara, mas a vida que um
outro “amigo” lhe prometera a troco de grande parte da sua fortuna.
No mês anterior, durante a
sua procura pela cura, um dos médicos consultados dissera-lhe que havia uma
solução, nova e radical: a troca de corpo. Deveria ser escolhida uma pessoa com
um corpo jovem e saudável. Depois, bastaria efectuar um transplante cerebral e
implantar o cérebro de Silva no novo corpo. Assim, enganaria a morte e
simultaneamente rejuvenescia. Inicialmente, Silva achara a ideia ficcional e
macabra. Até porque implicaria a morte de um inocente. Depois, com o surgimento
das dores, com a utilização continuada da morfina, começou a ver tudo de outra
perspectiva. Entrou em contacto com o médico e disse-lhe que aceitava.
Olhava ainda o rio, quando
o médico chegou junto de si. Trazia-lhe notícias sobre os potenciais dadores de
corpos.
— Agora vamos ver as fotos
dos potenciais dadores. O primeiro é um indivíduo negro. Desportista, robusto, praticante
de artes marciais, de 20 anos. – Passou-lhe a foto correspondente. – O seguinte
é um caucasiano de 19 anos, praticante de desportos radicais, com uma excelente
constituição física.
Fez uma pausa, para o
milionário analisar as duas fotos.
— O seguinte é um indiano,
de 22 anos, praticante de ioga, com uma flexibilidade impressionante. – Fez
mais uma pequena pausa para o doente ver a terceira foto. – Sr. Silva, qual
destes três escolhe para seu futuro corpo?
Silva olhou para as fotos
com atenção e efectuou a sua escolha. Decidiu-se pelo caucasiano. Não por uma
questão de raça, mas pelo facto de ser o mais novo dos três e por, tal como
ele, ser praticante de desportos radicais.
Silva transferiu parte do
pagamento acordado para o médico e marcaram a operação para dali a três dias. O
outro saiu e Silva ficou novamente sozinho. Anoitecera. Inspirou fundo e olhou
de novo para o rio e depois para o zénite. As estrelas e a lua - em quarto
crescente - brilhavam, como que sorrindo para Silva.
Os três dias passaram a
correr. A operação foi preparada. O dador foi raptado e anestesiado. Depois,
foi a vez do milionário. A operação demorou cerca de 20 horas. No final,
restava um corpo de oitenta anos descerebrado e morto, um cérebro de dezanove
anos sem actividade cerebral e um corpo de dezanove anos, no qual se
restabeleciam as sinapses cerebrais com um cérebro de 80 anos.
Conforme planeado, com
pompa e circunstância, foi anunciada, à sociedade, a morte do milionário Silva.
Foi ainda apregoado que um seu descendente, de dezanove anos, desportista
radical, até então desconhecido da sociedade, era o seu único e universal herdeiro.
A notícia saiu em todos os jornais e tablóides e nas revistas “cor-de-rosa”.
Entretanto, Silva
recuperava da operação. Sentia-se rejuvenescido. Não que alguma vez, mesmo no
corpo original, se tivesse sentido velho, mas neste corpo, sem doença, na flor
da juventude, sentia os músculos corresponderem aos seus desejos, às suas
ordens. Era maravilhoso! O médico que lhe propusera e efectuara o transplante
estava fascinado com a facilidade com que o milionário convalescia. Parecia que
o corpo do dador tinha uma magia, uma mística, uma extrema capacidade de
recuperação.
Silva também estava fascinado. Com esse novo vigor,
deram-lhe alta ao fim de poucos dias. E, como tal, deslocou-se até à sua casa
de campo. Ficaria ali naquela noite. No dia seguinte, iria praticar desportos
radicais. Deslocou-se até ao terraço. A noite caia. A lua cheia começava por
dominar o céu estrelado. E parecia exercer sobre si uma estranha atracção.
Primeiro uma espécie de corrente eléctrica percorreu-lhe o corpo. Depois,
sentiu os seus sentidos apurarem-se muitíssimo. Em seguida, sentiu-se tomado
por um desejo insaciável de sangue. Sentiu o corpo alongar-se, encurvar-se e
encher-se de pelos. Cresceram-lhe as unhas. Sentia-se forte e invencível. Uivou
à lua e debruçou-se sobre o rio. A figura de um ser mitológico, algo entre um
homem e um lobo, reflectiu-se nas águas cristalinas. Soltou um estridente urro.
Horrorizado, e entre os poucos laivos de humanidade que ainda possuía, Silva
compreendeu que se tinha metamorfoseado num lobisomem. O rapaz com quem trocara
de corpo era um lobisomem! A bestialidade apoderou-se de Silva. O desejo de
sangue intensificou-se. Soltava um novo urro e preparava-se para formar um
salto e desaparecer no bosque, quando soou um forte estampido e sentiu uma dor
aguda que lhe atravessava o peito. Caiu redondo no chão. Enquanto se voltava a
transformar em ser humano, sentiu-se ferido de morte e reparou que lhe escorria
um fio de sangue do seu peito. Quase sem forças, olhou em volta e viu um
estranho que lhe sorria, ironicamente.
— Há mais de dois anos que
te seguia, meu jovem lobisomem! – disse-lhe o estranho. – E, finalmente, hoje
apanhei-te.
— Mas, … — tentou Silva
argumentar, enquanto sentia o vazio apoderar-se de si.
— Pois, tinha-te perdido o
rasto, conseguiste fugir de mim. Até que vi a notícia que o velho Silva tinha
falecido e que um jovem bisneto era o seu herdeiro. Nem sabes o quanto fiquei
admirado ao ver a tua foto no jornal e descobrir que eras tu o herdeiro. Bastou-me
vigiar a casa e aguardar a lua cheia. Depois, foi só esperar a tua transformação
em lobisomem e disparar contra ti uma bala de prata… Já falta pouco para
passares à história…
Silva, num último rasgo de
lucidez, antes que o vazio do abismo e do esquecimento eterno se apoderasse de
si, balbuciou, perante um atónito caçador de lobisomens:
- Tentei enganar a morte… mas a morte trocou-me as
voltas…
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