O MAÇO DE PAPEL DA BIBLIOTECA - Conto Fantástico - Ricardo Goes



O MAÇO DE PAPEL DA BIBLIOTECA
Ricardo Goes
(São Paulo/BR)
(Conto finalista do I Concurso Literário “Contos Grotescos” – Prêmio Edgar Allan Pöe)




 Tome cuidado. Tome muito cuidado. Saia dessa biblioteca. Agora e o mais rápido possível. Se você correr, talvez ainda consiga escapar.

Mas quem seguirá esse recado? Um recado escrito com uma caneta que menos escreve do que falha em folhas de almaço, em letras feias. Se você estiver lendo isso, você já está condenado. Ria. Gargalhe. Mas, neste caso, o sorriso não te libertará.

Então, leia minha história, assistente. Você terá muito tempo para ler aqui, mas comece pela minha história, por favor. Seja o primeiro, o último, o único. Você gosta de exclusividade? Espero que sim. Ela costuma elevar o valor das coisas. Este meu escrito, que provavelmente não será o último (Deus queira que não, pela salvaguarda de minha sanidade), deverá valer muito em breve. Para alguma associação de pesquisa paranormal, sem dúvida.

Comecei a trabalhar aqui assim como você: assistente de bibliotecário.

Oh! Que arrepio! Alguém está me pregando uma peça! Não. Não tenho mais humor para pregar peças. Não tenho mais humor para nada.


A primeira vez que entrei aqui foi numa sexta-feira, para fazer a entrevista pro emprego. O salário era uma merreca, mas eu precisava. Meu pai está internado no Hospital das Clínicas, um caso grave de câncer no intestino.

A propósito, se você conseguir sair, assistente novo, e se você tiver a idéia de voltar aqui, poderia passar lá no HC e procurar por meu pai no quarto 245! O nome dele é Milton! Aí você escreve sobre como ele está num pedaço de papel qualquer e deixa numa dessas prateleiras! Dentro de algum livro da área de ciências exatas. Algum livro de química, por favor. Qualquer um. Eu encontro.

Mas, se você sair mesmo, não volte. Não volte nunca. Mesmo assim, eu vou ficar procurando. Livro por livro, página por página. Se preferir, esconda em outra sessão. Na verdade, não vamos combinar nada! Eu quero ter algo pra fazer aqui! Se eu encontrar as notícias de meu pai em algum lugar, o que mais eu terei para fazer aqui?

Você deve ter entendido a mensagem. Meu pai doente (muito doente), nada de dinheiro pra família. Minha mãe viu essa merda maldita oferta de emprego. Não vou escrever palavrões aqui. Certo. Minha mãe sempre dizia que palavrões tiram toda a elegância de um texto. Eu queria tanto ver a minha mãe de novo. Maldita, me mandou pra cá. Mas se eu pudesse vê-la...

Ei! Se você realmente escapar, e realmente for lá fora, poderia trazer uma foto da minha mãe? Diga que é pra mim, e ela te entrega. As pessoas ainda fazem isso, não é? Nós moramos na Rua Alemanha, Bairro das Nações, lá em Guarulhos. O número da casa eu deixo você descobrir, pra você também ter algo assim. E se você voltar, você pode esconder em algum livro, qualquer um, só pra eu ter alguma coisa pra continuar procurando! Mas esconda no final do livro. Aí eu vou ler o título, saborear cada página, sentir o gosto do papel da capa... Ler cada ausência de textos das guardas lentamente, para que o tempo passe.

Tempo é a única coisa que eu tenho aqui. E livros. Muitos livros.

Quando eu cheguei, a atendente me disse que a assistente anterior havia abandonado o emprego. Achei estranho, isso. Quem abandona um emprego?

Ah! Você poderia trazer também bastante papel, pra eu poder escrever? Antes que eu comece a falar sozinho de novo. E esconda em algum livro de literatura. Ou melhor! Vamos combinar de você esconder isso em algum livro de literatura, e aí você esconde em algum livro de outra coisa! Aí eu vou ter que ler todos os livros de literatura.

Eu ainda estou nos livros de matemática. Terminei quinze já. A maioria repete a mesma coisa de uma maneira diferente, sabe... Mas eu gostei. Os exercícios dão trabalho pra resolver. Eu tenho medo dos exercícios que vem com resposta, mas sem a resolução. Uma vez eu errei um deles. Umas cinqüenta vezes. Não tenho ninguém pra perguntar como se faz. Foi aí que comecei a falar com o Maurício. Ele não existe, sabe. É só o nome de um dos autores do livro. Mas ele me ajudava a fazer aquele exercício. Mas ele errou tanto que eu acabei comendo aquela página do livro. Queria lembrar do exercício, pra ver se você consegue resolver. Você é bom de matemática?

Enfim, fui falar com a atendente, a Thaís. Ela disse que a última assistente tinha abandonado o cargo. Isso não acontece todos os dias. Achei que era sorte.

Depois, comecei a organizar os livros, a decorar onde ficava cada autor. Não só a seção ou o primeiro nome, mas exatamente onde cada autor estava.

Mas eu estou pulando a minha entrevista, oras.

- Qual o seu nome, garoto? – perguntou aquele diretor, o sr. Alberto.

- Diego, senhor.

- Muito bem, Diego. Por que você quer esse emprego, Diego?

- Eu preciso, senhor. Meu pai está doente.

- Mas você tem alguma experiência? Costuma ler? Você... gosta de livros?

- Não, senhor. Eu só... preciso do emprego. Minha família está passando algumas dificuldades financeiras.

Ele fez cara de desgosto, e depois de aprovação. Ficou olhando para a quina das salas por algum tempo. Não entendi.

- Você gostou dessa biblioteca, Diego?

- Sim, senhor. É muito bonita.

- É Diego. E ela também gostou de você.

E então fiquei sabendo que fui contratado. Comecei então a aprender o trabalho: catalogar, autorizar e registrar as entradas e saídas, cobrar os empréstimos atrasados, cuidar dos exemplares mais raros (embora essa tarefa o sr. Alberto fizesse sozinho na maior parte das vezes).

A Thaís disse que a Luana, a minha antecessora, sumiu havia já uns dois meses. Mas que sentia falta dela. Disse que ela parecia uma pessoa muito centrada, muito correta para desaparecer assim.

E ela disse que “é muito engraçado como as pessoas não são o que parecem”.

Mas as pessoas são o que parecem. E Luana era o que parecia. Ela não abandonou o emprego.

Um mês depois comecei a ouvir lamentos e choros nos corredores mais ao fundo da biblioteca, mas sempre que eu chegava lá, não tinha ninguém. Era uma voz feminina e triste chorando.

Muito triste.

Thaís disse que também ouvia aquilo, e achava que era algum fantasma da biblioteca. Acho que estava certa. De certo modo, Thaís estava certa.

Ela também disse que a biblioteca parecia um pouco mais escura, um pouco mais “profunda”, depois que o acervo de livros raros ganhou um livro de ocultismo que o sr. Alberto trouxe com muita alegria cerca de uns dois meses antes de Luana sumir. Necrono alguma coisa. Nome assustador, isso eu lembro.

Alguns dias depois dessa conversa, achei o bilhete num papel amarelo, tipo anote e cole, ou post-it ou qualquer nome que você queira. Dizia, simples e docemente, numa letra muito bonita: Fuja dessa biblioteca.

Não dei atenção. No outro dia, achei: “Novo assistente, fuja da biblioteca!”.

Achei que fosse piada da Thaís. No terceiro dia, entrei na biblioteca, cumprimentei a Thaís e fui até a última prateleira, onde ficavam os livros jurídicos. Andei naquele labirinto de madeira e papel, trançando entre as estantes de mogno velho cheirando a verniz e pó.

Encontrei mais um aviso. Resolvi esfregá-lo na cara da Thaís e cobrar explicações e fui voltando pelos corredores entre as estantes. Mas eles não tinham mais fim. Nunca mais saí da biblioteca.

Se eu entro no corredor de literatura estrangeira, ele termina no corredor de livros de literatura nacional, que termina no corredor de livros infantis, que termina no corredor de análises de literatura, que termina no corredor de livros didáticos e para-didáticos de língua portuguesa, que termina nos livros jurídicos, que termina no corredor de literatura estrangeira. Se eu ando perpendicularmente entre os corredores, eu saio do corredor literatura/jurídico, entro no corredor de livros didáticos de ciências exatas, depois pro corredor de livros de informática e hobbies, depois pro corredor de biografias, e assim até voltar ao corredor das literaturas.

Não tenho muita fome aqui e essa é outra coisa que nunca entendi. De vez em quando ela aparece, avassaladora. Eu como livros, traças e qualquer coisa. E então ela se vai. E estranhamente, a porta do banheiro aparece alguns minutos depois, logo ali entre duas estantes de livros infantis, em vez de ficar atrás da bancada de trabalho da Thaís.

Entro lá, fico horas esperando que mais alguém entre, mas isso nunca acontece. Uso o toalete, mas só saem letras. Não vou explicar isso pra você.

Já tentei destruir todos os livros pra ver se alguém me encontra, mas é só eu correr de um corredor pra outro e tudo volta ao normal. Já tentei destruir o espelho do banheiro também, mas só consegui um corte fundo e doloroso que eu acabei cobrindo com papel.

Eu escuto a Luana. Muitas vezes por dia eu a vejo. Na primeira vez que eu a vi ela era apenas um vulto entre os livros. Entre mim e ela havia três estantes vazadas, repletas de livros. Corri para o final das estantes, para o corredor perpendicular a elas e corri para o corredor onde ela deveria estar. Não havia ninguém.

Da segunda vez ela me viu também, e gritou por mim, mas ela estava muito longe para conseguirmos conversar por gritos. Fiquei eufórico e feliz como nunca. Ambos saímos correndo, um na direção do outro, mas nunca nos encontramos. Jamais nos encontramos. Não sei nem como é seu rosto.

Parece que o elo entre nossos mundos é tênue demais para nos cruzarmos.

Hoje, quando nos vemos, sentimos dor e pesar, e nos escondemos, esperando que o outro não nos tenha visto. Já tínhamos tentado de tudo. Passar entre as estantes, por cima delas, derrubá-las. Nunca dá certo. É só correr alguns corredores e tudo voltar ao normal. Tudo sempre volta ao normal.

Já tentei me matar três vezes. Nenhuma delas funcionou. Já escutei Luana gritando e tive certeza que ela estava tentando se matar.

Coloque fogo nessa biblioteca, assistente.

Ou fuja dela, fuja dela e nunca mais volte.

Mas você também não vai dar ouvidos a um pedaço de papel, não é?

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