LUIZ RAIMUNDO RESENHA AS “NARRATIVAS FANTÁSTICAS DO MALLEUS MALEFICARUM”
RESENHA: “NARRATIVAS FANTÁSTICAS DO
MALLEUS MALEFICARUM”
Luiz Raimundo de Oliveira
SORIANO,
Paulo. Narrativas Fantásticas do Malleus Maleficarum, Organização,
Tradução e Notas, Editora Mondrongo, Itabuna/BA, 2019. 75 p.
O livro, como indicado claramente no título, traduz histórias
espetaculares contidas na obra Malleus Maleficarum, de Heinrich Kramer e Jakob Sprenger. Aquele Malleus Meleficarum foi
lançado em 1487 e, embora autorizado pelo Papa Inocêncio VIII, tornou-se um
livro proibido, constando no Index Librorum Prohibitorum, da Igreja
Católica. No entanto, contraditoriamente, foi tido como um manual da
inquisição.
Paulo Soriano é um contista, tradutor e editor de Free Books EditoraVirtual, traz à luz este precioso trabalho de tradução e edição.
Com uma tradução exímia, recolhe 16 histórias entre tantas contadas
pelos inquisidores Kramer e Sprenger, dando-nos a percepção do papel maligno
das bruxas na ótica dos inquisidores, sempre religiosos, masculinos, católicos. Estamos
em pleno século XV, e qualquer prática que escape à compreensão da Igreja tem a
reação violenta, como se a doutrina de Cristo fosse tão frágil, que pudesse ser
abalada por qualquer manifestação diferente. Era o pensamento da época. O certo
é que há um público específico claramente identificado na perseguição
inquisitória que matou ou torturou mais de cem mil pessoas: eram mulheres
pobres e ignorantes.
Soriano recolhe algumas histórias narradas pelos inquisidores
dominicanos, Kramer e Sprenger. A primeira história é a de um marinheiro
transformado em asno, que fica mudo graças ao encontro com uma mulher
feiticeira, ou bruxa. Enfeitiçado, passa a servi-la como asno mudo. Muda sua
situação quando esse agora asno se vê numa celebração da missa e se ajoelha
diante da hóstia consagrada, chamando a atenção dos populares.
O segundo episódio narrado se passa em Ratisbona, quando um homem tem os
“Membros viris arrebatados”. Há ainda o Conde enfeitiçado, o Padre
endemoninhado, que não podia entrar em lugares sagrados, a Serpente enterrada,
cuja feiticeira teria causado a morte de 7 crianças no útero, impedindo a um
casal ter filhos. Aliás, as crianças são objeto constante das maldições, pagam
pecados não cometidos.
Chama a atenção a sexta narrativa, referente às bruxas transformadas em
imensos gatos, que atacam um lenhador. Na sétima narrativa escolhida por
Soriano, a mulher grávida. As bruxas feiticeiras estão sempre atacando de
parteiras, pois as crianças podem ser mortas ao nascer, ou abortadas,
fornecendo matéria prima para uma sopa de carne infantil. Uma parte dos fetos
ou corpos infantis serve para a formação de um unguento, também consumível e
transformador no ritual de iniciação à bruxaria.
Muitas seriam as bruxarias praticadas na Suíça, onde há conclaves da
categoria, quando se exige negação da fé cristã e o compromisso com o maligno.
Há ainda a Bruxa que causa lepra, as parteiras, a jovem que enfeitiçou o bispo
e o fez adoecer “com o fogo no peito” e se cura quando a bruxa velha enfrenta a
bruxa nova.
Em Constance, duas bruxas se unem para causar uma chuva de granizo, a
mando do demônio que a tudo assiste sobre uma árvore. Outra entra na fila da comunhão, enrola a hóstia
consagrada em um lenço e a enterra juntamente com um sapo. O bispo Fortunato
foi vítima de um hóspede demoníaco. Este, por vingança, mata com fogo o filho
de um senhor na aldeia. O padre enfeitiçado da Basileia teve a infelicidade de
passar por uma senhora, sem dar-lhe preferência para atravessar a ponte. Ficou
enfermo por três anos, até que a senhora bruxa retirou a maldição. E encerra
alista com a história de um recém-nascido, oferecido pela mãe e sua fila ao
maligno, mas são descobertas pelo pai, que corre para
batizar a criança.
O livro é uma ótima e provocativa introdução ao tema, desperta grande
interesse, dá um panorama inicial de como era a situação: a violenta
perseguição às mulheres, pois os homens raramente eram autores, sempre vítimas
das bruxarias e escapavam da punição. As mulheres estão sempre ligadas à falta
de discernimento, a razão limitada. Mesmo quando são elas as ofendidas.
Pode-se imaginar a brutalidade das torturas, uma vez que quase sempre há
a confissão depois de um longo tempo, e ainda assim, a pena capital é aplicada.
De nada adianta confessar o suposto crime.
Há uma associação à necessidade do batismo das crianças como autodefesa
do efeito das feitiçarias. Batizar criança é o antídoto. Os poderes da
feitiçaria têm relação direta com o demônio, o poder do mal. Todo fenômeno de
doença, morte, insucesso, até a impotência sexual, tem associação com esse
poder. As mulheres, consideradas fracas, são sempre as mediadoras, as
sacerdotisas do maligno, as bruxas. Isso não para por aí: há a consequência
trágica da tortura e a morte cruel, na fogueira de preferência.
Isso tudo não faz tanto tempo. Está no começo da modernidade, e há que
se pensar que o Brasil colonial presenciou tais condenações, assassinando
mulheres covardemente acusadas de feitiçaria.
Soriano traz à baila, nestes tempos de exorcismos televisados, de
empoderamento do mal, a falta de limite a que pode levar a cegueira. Uma fé
cega se torna faca amolada facilmente. Admitir a possessão diabólica, ou um
poder extraordinário a pessoas dispostas a fazer o mal, leva as pessoas a se
armarem. Até mesmo as instituições, que justificando defesa, atacam,
silenciam, eliminam, assassinam e torturam. É quando a religião, ou a
ideologia, ou o poder, se transformam em doença mental e espiritual, e
desconstroem o ser.
Trata-se de uma leitura agradável, que abre caminho para pesquisas
históricas, interpretações, revisões, tão necessárias nestes tempos sombrios de
homens que matam antes de qualquer coisa. Propicia interpretar as formas ainda
presentes de execrar os que pensam diferente, como a sociedade tivesse que ser
uniforme.
Luiz Raimundo de Oliveira,
cronista, produtor cultural e advogado, mantém coluna no jornal Líder Notícias, de Ponte Nova/MG. Do autor, publicamos o conto Gélidas Mãos.
(Para ler as duas primeiras narrativas, clique aqui)
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