O SOLDADO JACOB - Conto Clássico de Horror - Medeiros e Albuquerque
O
SOLDADO JACOB
Medeiros
e Albuquerque
(1867
– 1934)
Paris, 3 de dezembro
de...
Não
lhes farei uma crônica de Paris, porque, enfastiado de rumor e movimento,
tranquei-me no meu simples aposento de estudante e lá fiquei durante duas
semanas. É verdade que esse tempo foi bastante para cair um ministério e subir
outro. Mas, quer a queda, quer a subida, nada têm de interessante. Assim,
limito-me a contar-lhes uma visita que fiz ao Hospital da "Charité",
da qual me ficou pungente recordação.
O
Hospital da "Charité" é dirigido pelo célebre psiquiatra Dr. Luys,
cujos estudos recentes sobre o magnetismo tanta discussão têm provocado. De
fato, o ilustre médico tem ressuscitado, com o patrocínio do seu alto valor
científico, teorias que pareciam definitivamente sepultadas. Não é delas,
porém, que lhes quero falar.
Havia
no hospital, há vinte e três anos, um velho soldado maníaco, que eu, como todos
os médicos que frequentam o estabelecimento, conhecia bastante. Era um tipo
alto, moreno, anguloso, de longos cabelos brancos. O que tornava extraordinária
a sua fisionomia era o contraste entre a tez carregada, os dentes e os cabelos
alvíssimos, de um branco de neve imaculada, e os indescritíveis olhos em fogo,
ardentes e profundos. A neve daqueles fios alvos derramados sobre os ombros e o
calor daqueles olhos que porejavam brasas atraíam, invencíveis, a atenção para
o rosto do velho.
Havia,
porém, outra cousa para prendê-la mais. Constantemente, um gesto brusco e
mecânico, andando ou parado, os seus braços encolhiam-se e estendiam-se,
nervosos, repetindo alguma coisa que parecia constantemente querer cair para
cima dele. Era um movimento de máquina, um solavanco rítmico de pistão,
contraindo-se e distendendo-se, regular e automaticamente. Sentia-se bem, à
mais simples inspeção, que o velho tinha diante de si um fantasma qualquer,
qualquer, alucinação do seu cérebro demente — e forcejava por afastá-la. Às
vezes quando os seus gestos eram mais bruscos, o rosto assumia um paroxismo tal
de pavor, que ninguém se furtava à impressão terrificante de tal cena. Os
cabelos ouriçavam-se sobre a sua cabeça (era um fenômeno tão francamente
visível, que nós o seguíamos com os olhos) e de todas as rugas daquele rosto
amorenado desprendia-se um tal influxo de pavor e a face lhe tremia de tal
sorte, que, na sua passagem, bruscamente, fazia-se um silêncio de morte.
Os
que entram pela primeira vez em uma clínica de moléstias mentais têm a pergunta
fácil. Vendo fisionomias estranhas e curiosas, tiques e manias que julgam
raras, multiplicam as interrogações, querendo tudo saber, tudo indagar.
Geralmente as explicações são simples e parecem desarrazoadas. Uma mulher que
se expande em longas frases de paixão e arrulha e geme soluços de amor, com
grandes atitudes dramáticas — todos calculam, ao vê-la, que houve talvez, como
causa de sua loucura, algum drama pungentíssimo.
Indagado,
vem-se a saber que o motivo da sua demência foi alguma queda que interessou o
cérebro. E esse simples traumatismo teve a faculdade de desarranjar de um modo
tão estranho a máquina intelectual, imprimindo-lhe a mais bizarra das direções.
Assim,
os que frequentam clínicas psiquiátricas por simples necessidade de ofício
esquecem frequentemente este lado pitoresco das cenas a que assistem e, desde
que o doente não lhes toca em estudo, desinteressam-se de multiplicar
interrogações a seu respeito. Era isto o que me tinha sucedido acerca do velho
maníaco.
Ele
tinha livre trânsito em todo o edifício; era visto a todo instante, ora aqui,
ora ali, e ninguém lhe prestava grande atenção. Da sua história nunca me
ocorrera indagar coisa alguma.
Uma
vez, porém, eu vim a sabê-la involuntariamente.
Nós
estávamos no curso. O professor Luys dissertava sobre a conveniência das
intervenções cirúrgicas na idiotia e na epilepsia. Na sala estavam três
idiotas: dois homens e uma mulher e cinco casos femininos de epilepsia. O
ilustre médico discorria com a sua clareza e elevação habituais, prendendo-nos
todos à sua palavra.
Nisto,
entretanto, o velho maníaco, conseguindo iludir a atenção do porteiro, entrou.
No seu gesto habitual de repulsa, cruzou a aula, afastando sempre o imaginário
vulto do espectro, que a cada passo lhe parecia embargar o caminho. Houve,
porém, um momento em que a sua fisionomia revelou um horror tão profundo, tão
medonho, tão pavoroso que, de um arranco, as cinco epiléticas ergueram-se do
banco, uivando de terror, uivando lugubremente como cães, e logo após
atiraram-se por terra, babando, escabujando, entremordendo-se com as bocas
brancas de espuma, enquanto os membros, em espasmos, agitavam-se furiosamente.
Foi
de uma dificuldade extrema separar aquele grupo demoníaco, de que, sem tê-lo
visto, ninguém poderá fazer uma ideia exata.
Só,
entretanto, os idiotas, de olhos serenos, acompanhavam tudo, fitando sem
expressão o que se passava diante deles.
Um
companheiro, ao sairmos nesse dia do curso, contou-me a história do maníaco,
chamado em todo o hospital o "soldado Jacob". A história era
simplíssima.
Em
1870, por ocasião da guerra franco-prussiana, sucedera-lhe, em uma das pelejas
em que entrara, rolar, gravemente ferido, no fundo de um barranco. Caiu sem
sentidos, com as pernas dilaceradas e todo o corpo chagado da queda. Caiu,
deitado de costas, de frente para o alto, sem poder mover-se. Ao voltar a si,
viu, porém, que tinha sobre si um cadáver, que, pela pior das circunstâncias,
estava deitado justamente sobre seu corpo, rosto a rosto, frente a frente.
Era
a vinte metros ou mais abaixo do nível da estrada. O barranco constituía um
extremo afunilado, do qual não havia meio de fugir. Não se podia afastar o
defunto. Por força, ele havia de descansar ali. Demais, o soldado Jacob,
semimorto, não conservava senão o movimento dos braços e esse mesmo muito fraco.
O corpo — uma chaga imensa — não lhe obedecia à vontade: jazia inerte.
Como
deve ter sido medonha aquela irremissível situação!
Ao
princípio, cobrando um pouco de esperança, ele procurou ver se o outro não
estaria apenas desmaiado; e sacudiu-o vigorosamente — com o fraco vigor dos
seus pobres braços tão feridos. Depois, cansado, não os podendo mais mover,
tentou ainda novo esforço, mordendo o soldado caído em plena face. Sentiu, com
uma repugnância de nojo sem nome, a carne fria e viscosa do morto — e ficou com
a boca cheia de fios grossos da barba do defunto, que se haviam desprendido. Um
pânico enorme gelou-lhe então o corpo, ao passo que uma náusea terrível
revolvia-lhe o estômago...
Desde
esse instante, foi um suplício que não se escreve — nem mesmo, seja qual for a
capacidade da imaginação — se chega a compreender bem! O morto parecia
enlaçar-se a ele; parecia abafá-lo com o peso, esmagá-lo debaixo de si, com uma
crueldade deliberada. Os olhos vítreos abriam-se sobre os seus olhos,
arregalados em uma expressão sem nome. A boca assentava-se sobre a sua boca,
num beijo fétido, asqueroso...
Para
lutar, ele só tinha um recurso: estender os braços, suspendendo a alguma
distância o defunto. Mas os membros cediam ao cansaço e vinham, aos poucos,
descendo, descendo, até que de novo as duas caras se tocavam. E o horrível era
a duração dessa descida, o tempo que os braços vinham vergando de manso, sem
que ele, cada vez sentindo mais a aproximação, pudesse evitá-la! Os olhos do
cadáver pareciam ter uma expressão de mofa. Na boca, via-se a língua empastada,
entre coalhos negros de sangue, e a boca parecia ter um sorriso hediondo de
ironia...
*
Quanto
durou esta peleja? Poucas horas talvez, para quem as pudesse contar friamente,
longe dali. Para ele, foram eternidades.
O
cadáver teve, entretanto, tempo de começar a sua decomposição. Da boca,
primeiro às gotas e depois em fio, começou a escorrer uma baba esquálida, um
líquido infecto e sufocante que molhava a barba, a face e os olhos do soldado,
deitado sempre, e cada vez mais forçosamente imóvel, não só pelas feridas, como
também pelo terror, de instante em instante mais profundo.
Como
o salvaram? Por acaso. A cova em que ele estava era sombria e profunda.
Soldados que passavam, suspeitosos de que houvesse ao fundo algum rio, atiraram
uma vasilha amarrada a uma corda. Ele sentiu o objeto, puxou-o repetidas vezes,
dando sinal da sua presença, e foi salvo.
Nos
primeiros dias, durante o tratamento das feridas, pôde contar o suplício
horroroso por que passara. Depois, a lembrança persistente da cena encheu-lhe
todo o cérebro. Vivia a afastar diante de si o cadáver recalcitrante, que
procurava sempre abafá-lo de novo sob o seu peso asqueroso..
*
Anteontem,
porém, ao entrar no hospital, achei o soldado Jacob preso num leito, com a
camisola de força, procurando em vão agitar-se, mas com os olhos mais acesos do
que nunca — e mais que nunca com a fisionomia contorcida por um terror inominado
e louco.
Acabava
de estrangular um velho guarda, apertando-o contra uma parede, com o seu gesto
habitual de repulsa. Arrancaram-lhe a vítima das mãos assassinas, inteiramente
inerte — morta — sem que tivesse podido
proferir uma só palavra.
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