OS CAMINHOS QUE TOMAMOS - Conto Fantástico - O. Henry
O. Henry
(1862 – 1910)
Tradução de Fernando Pessoa
(1888 – 1935)
O. Henry (1862 — 1910), nascido William Sydney Porter em
Greensboro, Carolina do Norte, Estados Unidos, é um dos maiores nomes do conto
universal. Muito popular em seu tempo, deixou contos antológicos, ainda hoje
muito apreciados, como “O Presente dos Magos” e “A Última Folha”. A tradução,
ora apresentada, de “O Caminho que Tomamos” (“The Roads We Take”), conto fantástico, é de autoria do poeta
português Fernando Pessoa (1888 — 1935) e foi publicada na revista Athena, vol.
I, entre os anos de 1924 e 1925.
Vinte
milhas para oeste de Tucson o rápido[1]
parou ao pé de um depósito para tomar água. Além deste líquido, porém, a
máquina daquele comboio adquiriu também outras coisas que lhe não convinham.
Enquanto o fogueiro estava baixando
a mangueira de alimentação, o Bob Tidball, o Dodson “Tubarão” e um índio de
raça cruzada chamado João Cão Grande treparam para a máquina e apresentaram ao
maquinista os orifícios de três canos de revólver. As possibilidades desses
orifícios a tal ponto impressionaram o maquinista que ergueu logo ambas as mãos
num gesto do gênero do que acompanha a exclamação: "Conta lá!”.
À ordem brusca do Dodson Tubarão,
que era o comandante da força, o maquinista desceu ao chão e desligou a máquina
e o tênder. Então o João Cão Grande, empoleirado no carvão, sorriu por trás de
dois revólveres apontados ao ajudante e ao fogueiro, lembrando que corressem a
máquina cinquenta metros pela linha abaixo e ali aguardassem novas ordens.
O Dodson Tubarão e o Bob Tidball,
desdenhando proceder à limpeza de minério tão baixo como os passageiros,
dedicaram-se ao veio magnífico que era o vagão de valores. Encontraram o guarda
envolto na crença firme de que a máquina não estava tomando nada mais forte que
água pura. Enquanto o Bob lhe tirava esta ideia da cabeça por meio de uma
coronha de revólver, o Dodson Tubarão ocupava-se em ministrar uma dose de dinamite
ao cofre do vagão.
O cofre explodiu no sentido de
trinta mil dólares, ouro e notas. Os passageiros espreitaram vagamente pelas
janelas a ver de onde vinha a trovoada. O condutor puxou a correia que lhe
ficou lassa e caída na mão. O Dodson Tubarão e o Bob Tidball, com o espólio
numa saca de lona forte, saíram do vagão e correram pesadamente, com suas botas
altas, até a máquina.
O maquinista, amuado mas prudente,
correu velozmente a máquina, obedecendo às ordens, para longe do comboio
parado. Mas antes que isto estivesse feito, o guarda do rápido, tendo
despertado do argumento com que o Bob Tidball lhe tinha imposto a neutralidade,
saltou do vagão com uma Winchester e entrou no jogo. O sr. João Cão Grande,
empoleirado no carvão, perdeu a vasa pelo processo involuntário de imitar
perfeitamente um alvo. O guarda caçou-o. Com uma bala exatamente entre as
espáduas, o cavalheiro de cor e indústria caiu para o chão, aumentando assim
automaticamente em um sexto o quinhão de cada um dos camaradas.
A duas milhas do depósito deu-se
ordem ao maquinista que parasse.
Os ladrões gritaram um adeus de
desafio e enfiaram pelo declive abaixo para os bosques que marginavam a linha
férrea. Cinco minutos de caminho difícil através de uma mata de chaparral
trouxe-os a um bosque mais aberto, onde estavam três cavalos, presos a ramos
baixos. Um esperava o João Cão Grande, que nunca mais andaria a cavalo de dia
ou de noite. A este animal tiraram os ladrões a sela e o freio, e puseram-no em
liberdade. Montaram nos outros dois, estendendo o saco sobre a maçã da sela de
um deles, e seguiram depressa, mas discretamente, através da floresta e por uma
garganta primitiva e solitária acima. Aqui o animal que levava Bob Tidball
escorregou num pedregulho musgoso e partiu uma das pernas dianteiras.
Mataram-no com um tiro na cabeça, e sentaram-se para realizar um conselho de
fuga. Seguros por enquanto, em virtude do caminho tortuoso que haviam tomado,
já a questão de tempo os não apoquentava tanto. Havia já muitas horas e léguas
entre eles e a mais rápida perseguição que se pudesse organizar. O cavalo do
Dodson Tubarão, de corda arrastada e freio caído, resfolegava e comia com
agrado da erva à margem do riacho da garganta. Bob Tidball abriu o saco, tirou
às mãos ambos maços de notas e um saco único de ouro, e riu com uma alegria de
criança.
— Olha lá, meu grande pirata —
disse ele rindo para Dodson —, bem dizias tu que a coisa se conseguia. Tens uma
cabeça de financeiro que deixa atrás tudo no Arizona.
— O que é que a gente vai fazer a
respeito de um cavalo para ti, Bob? A gente não pode esperar aqui muito tempo.
Logo de madrugada, com a primeira luz, os tipos estão na nossa pista.
— Oh, aquele teu bicho tem que
levar dois um bocado — respondeu Bob com otimismo. Deitamos a mão ao primeiro
bicho que encontrarmos por aí. Caramba, que fizemos bom negócio, hein? Aqui
pelos sinais nas cintas e no saco temos trinta mil dólares — quinze mil a cada
bico!
— É menos do que eu esperava —
disse o Dodson Tubarão, dando pontapés leves nos pacotes. Depois olhou
meditativamente para os flancos suados da sua montada.
— O Bolívar, coitado, está quase
que não pode mais disse ele devagar. — Que pena que o teu bicho se estropiasse!
— Ninguém tem mais pena do que eu —
disse o Bob sem abatimento —, mas o que é que se há de fazer? O Bolívar é rijo,
e pode bem com nós dois até arranjarmos outras montadas. Raios me partam, ó
Tubarão, mas não me passa da ideia a piada que tem um tipo do Leste como tu vir
para aqui ensinar-nos a nós do Oeste a dar cartas no negócio de salteador! De
que parte do Leste é que és?
— Estado de Nova York — disse o
Dodson Tubarão, sentando-se num toro e mastigando um fio de erva. — Nasci numa
herdade do distrito de Ulster. Fugi de casa quando tinha dezessete anos. Foi um
acaso eu vir pra Oeste. Eu ia pela estrada fora com a roupa numa trouxa a
caminho de Nova York, da cidade. A minha ideia era ir pra lá e ganhar muito
dinheiro. Uma tarde cheguei a um ponto onde a estrada fazia garfo, e eu não
sabia por que caminho havia de tomar, estive pra aí meia hora a estudar o caso,
e depois tomei pelo da esquerda. Nessa noite mesmo fui dar ao acampamento de um
circo do Oeste que andava dando espetáculos nas várias terras, e segui para
Oeste com eles. Muitas vezes tenho pensado se não teria dado em qualquer coisa
muito diferente se tivesse tomado o outro caminho.
— Hum, a minha ideia é que davas
mais ou menos no mesmo — disse Bob Tidball, com uma filosofia alegre. — Não são
os caminhos que a gente toma, é o que está dentro de nós, que faz que a gente
dê no que vem a dar.
O Dodson Tubarão levantou-se e
encostou-se a uma árvore.
— Tomara eu que aquela tua montada
se não tivesse estropiado, Bob — tornou a dizer, com uma certa tristeza.
— E dois! — concordou o Bob. — Era
um belo bicho. Mas o Bolívar tira-nos aos dois da alhada. Olha lá, e o melhor é
a gente ir-se pondo a mexer, hein? Vou meter isto tudo outra vez no saco, e ala
para outra terra!
O Bob Tidball repôs o espólio no
saco, e apertou a boca deste, com força, com uma corda. Quando levantou a
cabeça a coisa mais notável que viu foi o cano da pistola do Tubarão
visando-lhe sem tremer o centro da testa.
— Deixa-te de piadas, rapaz — disse
o Bob sorrindo. — A gente tem é que se pôr a mexer.
—
Está quieto — disse o Tubarão. — Tu não te vais pôr a mexer para parte nenhuma,
Bob. Tenho pena de to dizer, mas não há saída senão para um de nós. O Bolívar,
coitado, está muito cansado, e não pode levar dois.
— Temos sido camaradas, eu e tu,
Tubarão, há uns três anos — disse o Bob com sossego. — Muita e muita vez
arriscou a gente a vida juntos. Sempre te tenho tratado às direitas, e julgava
que eras um homem. Já ouvi coisas que contavam de ti, de como tinhas matado um
ou dois homens de uma maneira esquisita, mas nunca acreditei. Ora agora, se
estás a brincar comigo, desvia lá a pistola e vamo-nos embora. Mas se queres
atirar, atira, filho de um lacrau!
A cara de Dodson Tubarão tinha uma
expressão de profunda mágoa.
— Não imaginas que pena eu tenho —
suspirou ele — a respeito daquele desastre que aconteceu ao teu cavalo,
Bob.
A expressão no rosto do Dodson
mudou de repente para uma de ferocidade fria mista de inexorável cupidez. A
alma do homem mostrouse de repente uma cara sinistra à janela de uma casa
honrada.
E, na verdade, nunca Bob Tidball se
poria mais a mexer para parte nenhuma. Falou a pistola do amigo falso, enchendo
a garganta de um estrondo que os seus muros devolveram indignadamente. E o
Bolívar, cúmplice inconsciente, levou depressa para longe o último dos
salteadores do rápido sem ter que "levar dois".
Mas à medida que o Dodson Tubarão
galopava parecia que os bosques se esfumavam e desapareciam; o revólver na mão
direita converteu-se no braço curvo de uma cadeira de mogno; a sela estava extremamente
estofada, e ele abriu os olhos e viu seus pés, não em estribos, mas pousados
alto na ponta de uma secretária rica.
Estou contando aos senhores que o
Dodson, da Dodson & Decker, corretores de Wall Street, abriu os olhos.
Peabody, o empregado de confiança, estava de pé a seu lado, hesitando em falar.
Lá embaixo havia um ruído confuso de rodas, e ao pé o sussurro acariciador de
uma ventoinha elétrica.
— Hum, Peabody — disse o Dodson,
piscando os olhos. — Eu devo ter adormecido! Tive um sonho muito curioso. O que
é que há?
— É o sr. Williams, sr. Dodson, de
Tracy & Williams, que está ali fora. Vem liquidar aquilo daquelas ações. A
alta caiu-lhe em cima, lembra-se o sr. Dodson?
— Sim, lembro-me. Como está isso
cotado hoje, Peabody?
— Cento e oitenta e cinco, Sr.
Dodson.
— Então é isso que ele paga.
— O sr. Dodson dá licença... —
disse Peabody, com uma certa hesitação. — Desculpe-me falar nisso, mas estive a
falar com o Williams. Ele é um velho amigo seu, e o Sr. Dodson podese dizer que
tem na mão todo este papel. Pensei se o Sr...., isto é, pensei que o Sr. talvez
se não lembrasse que ele lhe vendeu o papel a noventa e oito. Se ele liquida ao
preço do mercado, vai-se-lhe tudo quanto tem e ainda por cima, coitado, tem que
vender a casa, e a mobília e tudo, para lhe poder entregar as ações.
A expressão no rosto do Dodson
mudou de repente para uma de ferocidade fria mista de inexorável cupidez. A
alma do homem mostrou-se de repente como uma cara sinistra à janela de uma casa
honrada.
—
Cento e oitenta e cinco é que ele paga — disse o Dodson. — O Bolívar não pode
levar dois.
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