A DAMA DA MORTALHA Paulo Soriano O bebê de tarlatana rosa emborcara no chão com a caveira voltada para mim, num choro que lhe arregaçava o beiço, mostrando singularmente abaixo do buraco do nariz os dentes alvos. João do Rio — Ah, meu jovem Saul! Você é advogado e sabe muito dessa coisa injusta à qual chamamos Direito — disse-me o velho Roberval, numa Terça-Feira de Carnaval. — Deve ter estudado História do Direito, não é mesmo? — Somente um pouco de Direito Romano, confesso. — Sim, sim! — prosseguiu Roberval. — Os jovens não estudam mais essas coisas enfadonhas e antiquadas. Mas estou certo de que você pouco sabe da real “prática jurídica” de outrora. — Isso é verdade. Mas o que tem isto a ver com o Carnaval? — indaguei. — Bem — prosseguiu o ancião, bebericando a cervejinha —, tudo aconteceu, justamente, numa Terça-Feira Gorda. O bloco descera a Federação e passava, agora, à frente do Campo Santo, o cemitério mais circunspecto de Salvador. Nessa ép
O CEMITÉRIO Lima Barreto (1881 – 1922) Pelas ruas de túmulos, fomos calados. Eu olhava vagamente aquela multidão de sepulturas, que trepavam, tocavam-se, lutavam por espaço, na estreiteza da vaga e nas encostas das colinas aos lados. Algumas pareciam se olhar com afeto, roçando-se amigavelmente; em outras, transparecia a repugnância de estarem juntas. Havia solicitações incompreensíveis e também repulsões e antipatias; havia túmulos arrogantes, imponentes, vaidosos e pobres e humildes; e, em todos, ressumava o esforço extraordinário para escapar ao nivelamento da morte, ao apagamento que ela traz às condições e às fortunas. Amontoavam-se esculturas de mármore, vasos, cruzes e inscrições; iam além; erguiam pirâmides de pedra tosca, faziam caramanchéis extravagantes, imaginavam complicações de matos e plantas – coisas brancas e delirantes, de um mau gosto que irritava. As inscrições exuberavam; longas, cheias de nomes, sobrenomes e datas, não nos traziam à lembrança nem um
O QUE A LUA TRAZ CONSIGO H. P. Lovecraft (1890 – 1937) Tradução de Paulo Soriano Eu odeio a Lua – e a temo – porque, quando ela ilumina certas cenas familiares e queridas, às vezes as converte em coisas estranhas e repugnantes. Foi no verão espectral que a Lua brilhou no velho jardim por onde eu vagava. Era o espectral verão de flores narcóticas e mares úmidos, de folhagens que evocam sonhos selvagens e multicoloridos. E, enquanto eu caminhava à beira do riacho raso e cristalino, vi estranhas ondulações pontilhadas de luz amarela, como se aquelas águas plácidas fossem arrastadas por correntes irresistíveis para estranhos oceanos que inexistentes neste mundo. Silenciosas e faiscantes, brilhantes e funestas, aquelas águas amaldiçoadas pela Lua corriam de encontro a um destino ignoto; e isto enquanto, nas margens onduladas, flores de lótus brancas flutuavam, uma a uma, ao vento opiáceo da noite, e caíam desesperadamente sobre o riacho, rodopiando, horrivelmente, sob o arco da ponte
A SERPENTE DA ILHA Pu Songling (1640 – 1715) No belo arquipélago de Chu-san há uma pequena ilha onde as flores jamais cessam de desabrochar e as árvores crescem densas e altaneiras. Não se conhece, desde a mais remota antiguidade, quem viva à sombra desta mata virgem. Samambaias e trepadeiras emaranham-se tão profundamente que a um homem é impossível atravessar este deserto sem abrir caminho com uma machadinha. Um jovem estudante, chamado Chang, que morava na Cidade-sobre-o-Mar, descansava de sua faina diária velejando sobre o mar; seguia num um pequeno barco de junco que ele mesmo conduzia. Tendo ouvido falar da misteriosa ilha, resolveu explorá-la. Assim, preparou vinho e comida e partiu numa bela manhã de verão. Por volta do meio-dia, Chang acercou-se do lugar onde deveria estar a ilha. Prontamente, da brisa quente chegou-lhe um delicioso perfume floral. Ele viu o verde-escuro das árvores sobre o verde-claro do mar e, achegando-se, contemplou a areia amarela da praia, onde resol
Curtinho e muito bom.👏👏
ResponderExcluirMuito obrigado!
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