A MULHER DE BRANCO - Conto Clássico de Mistério - N. Marchal
A
MULHER DE BRANCO
N.
Marchal (séc. XIX)
Tradução
de autor desconhecido
Em
1364, no reinado do rei Carlos[1] V,
durante o rigor invernal que se prolongou por quase dois meses, numa choupana
meio enterrada sob a colina da aldeia de Ville, ao clarão vacilante de uma lamparina
enfunada e pálida, numerosa reunião de camponeses — e camponesas que faziam redopiar
seus fusos — tagarelava acerca das aventuras da véspera; e havia vasto campo
para isso, pois a véspera fora um domingo.
—
Está fazendo um frio terrível! — murmurou uma velha desdentada, cuja cara, ao
mesmo tempo castanha e colorida, revelava as rugas sob a maquiagem. — E dizer —
acrescentou ela — que o senhor e dono de Mauconseil nos deu licença para cortar
lenhas nos domínios do castelo.
—
Por Santa Ana, minha boa e venerada padroeira — respondeu uma moça de semblante
rosado e jovial —, você faria muito melhor, comadre prima, se empregasse na
compra de alguns feixinhos o dinheiro que gasta com cosméticos.
—
Tola insolente! — resmungou a velha com a ponta dos beiços.
—
E, além disso — tornou a rapariga —, há mais em que cuidar no castelo de Mauconseil.
Se se deve dar crédito ao balio, nosso magistrado, a senhora Elise está possuída
pelo demônio e singularmente doente... Oh — acrescentou ela, benzendo-se —,
vivemos num tempo bem mau!
—
Como? — disse um dos circunstantes.
—
Sim, num tempo bem mau. Pois já se esqueceram da mulher de branco, que vem,
todas as noites, à meia-noite, rezar sobre o túmulo do infeliz que acharam
desfigurado, assassinado junto à cruz velha, no caminho desolado que conduz Chiry?
Decerto, é a alma penada desse desventurado que pede uma penitência... E isso
não é um conto, pois o balio jurou por seus grandes deuses que já tinha visto várias
vezes a mulher de branco: é uma coisa bem estranha!.... Isso pressagia alguma
grande desgraça!
Nesse
momento, abriu-se a porta repentinamente, e o balio, com o rosto pálido, olhos aterrorizados,
gorro e lenço na mão, entrou, sentou-se todo trêmulo, e proferiu apenas essas
palavras:
—
A mulher de branco!
Depois
recaiu num terror pânico e não articulou mais uma sílaba.
Toda
a assembleia estava passada de indizível susto: durou isso alguns minutos; depois,
tomando a palavra o mais afoito, assim se exprimiu:
—
Sou de parecer que este mistério precisa ser investigado a fundo. Mas quem se encarregará
da missão?.... É o que deve ser decidido pela sorte.
—
Sim, tiremos a sorte — responderam os camponeses. — Tiremos a sorte, e aquele
que for designado irá seguir, amanhã de noite, a mulher de branco, e ele
perguntará quem ela é e o que faz.
O
magistrado, que havia recobrado sua valentia com seu sangue frio, foi também
deste parecer.
Procedeu-se,
pois, ao sorteio, metendo-se no gorro do balio tantos feijões brancos quantos eram
os indivíduos, à exceção de um único feijão vermelho, que deveria designar o
herói da aventura noturna. Ora, o magistrado tirou primeiro. E como sacou o
vermelho, foi logo decidido que seria ele quem ia dar caça ao terrível
fantasma, objeto de conjecturas sinistras.
Foi-lhe
também ordenado que, no terceiro dia, viesse contar o que linha visto, caso o espectro
o não levasse...
No
outro dia, o balio, envolvido num capote, foi postar-se não junto ao cemitério,
mas à pedra levantada no alto da colina que domina a aldeia, porque lá havia
uma choça de eremita onde ele tinha visto penetrar a mulher de branco.
Agachou-se
defronte da ermida, numa touça de aveleiras, tiritando de frio e medo,
esperando com impaciência que ao duende aprouvesse entrar na choça ou
sair dela.
Havia
cerca de quinze minutos de espera quando lhe chegou aos ouvidos o ruído de
folhas pisadas, e logo ele avistou a mulher de branco, que passava ligeiramente
e quase despercebida pelo entre os arbustos despidos de folhas.
O
balio empalideceu a esta visão. A sua viva imaginação já lhe inspirava a história
que contaria aos camponeses quando, depois do desaparecimento do fantasma,
um som de voz lhe feriu o ouvido.
—
Oh, oh! — disse ele. — A minha falecida mãe sempre me disse que os trasgos, as
larvas[2] e
as almas do outro mundo não falavam. É preciso ânimo. Avancemos, pois —
acrescentou, brandindo uma picareta de que tinha julgado prudente munir-se.
Avançou
de repente e penetrou na choça, cujo aspecto lhe pareceu anunciar não um ente
sobrenatural, mas sim um habitante deste mundo, porque os restos duma ceia postos
sobre uma mesa atestavam que o habitante, qualquer que fosse, não se sustentava
com as especiarias do outro mundo.
O
balio examinava tudo isso, fazendo reflexões análogas às circunstâncias, quando
uma voz aguda e fraca lhe gritou:
—
Alma do diabo, quem é você para vir perturbar uma pobre desterrada em suas meditações?
Não fala, espírito danado?
“Satanás
te leve a alma”, pensou o balio, no auge do terror.
Depois,
voltando a cabeça, viu a aparência da mulher magra e acabrunhada, encolhida no
canto de uma lareira, que apenas lançava um clarão incerto e vacilante.
—
Perdão — disse ele em voz alta. — Perdão. Não hei de esconder-lhe nada. E não
venho aqui para perturbar as suas piedosas meditações, e sim para saber quem é
a mulher de branco que acabo de ver penetrar no seu retiro e que é vista todas
as noites em orações sobre o túmulo do infeliz assassinado há algum tempo. É um
anjo do céu ou um demônio do inferno?
—
Balio — disse a velha —, outros talvez punissem a sua curiosidade. Porém, não
há de ser assim e daqui a pouco vou contar-lhe a história da mulher de branco.
Mas, antes de tudo, devo certificar-me de que o envoltório de um magistrado não
cobre um espírito maligno vindo aqui para tentar a minha alma.
A
velha fez o sinal da cruz. Depois, começou a falar.
—
Escute. É uma história muito simples, malgrado muito terrível, que você há de
ouvir. Há dezesseis anos, o cuco gritador anunciava a volta do verão. O nobre
senhor de Mauconseil não tinha filhos e, apesar da idade um pouco avançada de
sua esposa, desesperava de tê-los. Movido por nobre sentimento, adotou o jovem
Léon, um dos filhos de Chiry, arrendatário seu. Praticava uma bela ação, era
uma terna existência que ele fazia feliz, era uma consolação que tomava para os
seus velhos dias.
“Mas,
como dizem na aldeia, sobre a terra se propõe e no céu se dispõe, estava
o nobre senhor fadado a apartar-se de seu protegido, pois que, pouco depois, a
senhora de Mauconseil concebeu. Então, sobre a fronte do castelão brilhou um
raio de esperança. Podia ser um menino. Ele sorvia-se a esta ideia. Mas logo se
insinuou em sua alma outro pensamento: podia ser uma menina... Suspirava,
então. Todos viam que esta reflexão o oprimia, mas ele a reprimia, cogitando
prometer a menina em casamento a algum barão. Depois era feliz, porque, tanto
de um como de um outro modo, seu orgulho estava satisfeito.
“Enfim,
a senhora do castelo deu à luz uma filha, que lhe custou a vida. Foi, portanto,
acolhida por seu pai com sombria tristeza, a qual se dissipou para ser
substituída por uma indiferença sem limites.
“Embora
ele não houvesse concebido grandes esperanças, seu orgulho estava, contudo,
contrariado; por isso, a filha era para ele um fardo insuportável. Confiou sua
educação a uma velha aia fanática, que criou a jovem castelã em todas as
crenças absurdas e supersticiosas de almas do outro mundo, que entretêm e
exaltam na alma o medo e os terrores desregrados.
“O
jovem Léon, que completava então seu quinto ano, não deixou logo o castelo e,
apesar da diferença de idade, foram as crianças criadas juntas. Prazer e trabalho,
alegria e pesar, ambos sentiam as mesmas emoções. Comungando dos mesmos
hábitos, tinham os mesmos gostos. Sempre juntos, entretiveram essa intimidade
infantil que faz o encanto e deleite da terna idade, mas que, com o andar do
tempo, se converte muitas vezes em amor. Sem consultarem a distância que os
separava, Elise só viu a complacência, a amabilidade de Léon, porque encontrava
nele a doce confiança que lhe recusava o amor paterno. Léon não viu em Elise senão
a moça que realizava seus sonhos.
“Ora,
no dia de Nossa Senhora de dezembro, há quinze dias, pouco mais ou menos, Elise
entrava nos dezesseis anos, quando o senhor de Mauconsceil, chegando de Paris,
anunciou à sua filha que a havia prometido em casamento a seu vizinho, o barão
de Cambronne. A estas palavras, a menina empalideceu e, não sabendo disfarçar seus
sentimentos, confessou, a seu pai, o seu amor por Léon.
“Este,
furioso, ficou transportado de incrível cólera e expulsou do castelo o jovem Léon,
proibindo-lhe de nunca mais se apresentar em sua casa.
“Elise
esteve inconsolável, e o senhor de Mauconseil, sem dó de sua infeliz filha, lhe
ordenou que se preparasse para desposar antes de oito dias o filho do barão de
Cambronne. A menina derramou uma torrente de lagrimas; mas era de mister
resignar-se, porque obedecer era um dever. A velha aia, todavia, guiada por
infernal gênio, burlou as resoluções de obediência que Elise tomara,
prometendo-lhe que, na noite seguinte, introduziria Léon no castelo e lhe daria,
assim, frequentes conferências com o rapaz. Elise sorriu-se a esta ideia, que
favorecia seu amor, e concebeu nova esperança.
“Com
efeito, pela meia noite, fiel à sua palavra, a velha introduziu Léon no quarto
de Elise. Depois de se terem abandonado à doce expansão de suas almas, depois
de se terem mil vezes jurado amarem-se sempre, chegou o momento da separação.
Foi quando a velha, levantando-se, lhes gritou:
“—
Elise, Léon, fujam juntos! Vocês serão felizes.
“—
Sim, vamos fugir juntos, cara Elise... — repetiu Léon.
“Estas
palavras fizeram empalidecer Elise, que logo exclamou :
“—
Fugir! Oh, por minha mãe, nunca, não, nunca! A desonra, a infâmia... Oh, antes
a morte, porque morta não me poderão infamar...
“Acabava
apenas de proferir estas palavras quando um mocho, pousando numa torrezinha, fez
ouvir sua voz de tal maneira que sua garganta articulou lugubremente a palavra morte;
depois a ave, batendo as asas, desapareceu nas sombras da noite.
“—
Ouvem? — disse Elise, assustada. —É uma predição.
Todos
três estremeceram e guardaram religioso silencio, que só foi interrompido pelo
ruído que fez a porta abrindo-se. E o senhor de Mauconseil apareceu no limiar...
“—
Meu pai! — exclamou Elise. — Meu pai!
“O
nobre senhor só pronunciou estas palavras:
“—
Léon, desgraçado seja!
“E
saiu, fechando bem todas as portas.
“Nem
uma só palavra foi proferida durante a sua ausência, que não foi longa, pois
que ele logo voltou com um sorriso infernal nos lábios.
“—
Vá! — bradou a Léon. — Vá, desleal e pérfido rapaz. Eu o havia proibido de
tornar a aparecer no castelo. Agora, não mais voltará a ele.
“O
moço saiu, lançando um derradeiro olhar sobre a infeliz Elise.
“—
E você — prosseguiu o senhor, virando-se para a aia —, atroz e vil criatura, que
não receou introduzir a desonra em minha casa, fuja daqui e vá arrastrar-se pelas
matas seu hediondo e asqueroso esqueleto, até ser ele presa da forca e dos vermes!
“O
barão saiu.
“Ora,
no dia seguinte, junto à cruz vermelha, no caminho que conduz de Ville a Chiry, achou-se o cadáver de um
desconhecido, que foi enterado no cemitério de Ville. E é Elise que, todas as noites,
depois de tocar a hora da recolhida, é Elise que, de longo vestido branco...”
A
velha não pôde dizer mais: três homens armados de lança entraram
precipitadamente.
—
Sim — exclamou um deles. — Era Elise de Mauconceil que ia rezar e chorar sobre
o túmulo de seu amado. E foi esta mulher, esta maldita aia, que a induziu a
isto e que todas as noites lhe dá asilo. Mas, brevemente — disse, dirigindo-se
à velha mulher —, verá se o seu cadáver não fará dobrar o galho do carvalho da
montanha.
Depois,
procurando por toda parte, acharam a infeliz donzela no fundo de um esconderijo
escuro, ajoelhada diante de um genuflexório, e levaram-na com a velha aia para
o castelo de Mauconseil.
Quanto
ao balio, foi tão grande o seu pavor que caiu sem sentidos. No outro dia, estava
morto e gelado.
A
aia foi enforcada no caminho da montanha e devorada pelas aves de rapina; e,
durante algum tempo, os seus ossos, agitados pelo vento do inverno, fizeram
ouvir horríveis estridores.
Alguns
dias depois, a desventurada Elise de Mauconseil morreu e foi sepultada na capela
do castelo.
E
como no serão do dia seguinte o balio não apareceu, julgaram-no arrebatado pela
mulher de branco, que, segundo asseveram, ainda volta em certa época do ano
para velar o túmulo de um defunto desconhecido.
Fonte: Correio das
Moda, edição de 6 de setembro de 1840. Fizeram-se breves adaptações textuais.
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