A FILHA DO DOUTOR RAPPACCINI - Conto Clássico de Terror - Nathaniel Hawthorne



A FILHA DO DOUTOR RAPPACCINI

Nathaniel Hawthorne

(1804 – 1864)

 

Há muito tempo, um jovem chamado Giovanni Guasconti, oriundo da região mais meridional da Itália, chegou a Pádua para continuar os estudos na célebre universidade.

Giovanni possuía apenas alguns ducados e ouro. Por essa razão, alojou-se em um sombrio quarto de um velho edifício que não parecia indigno de ter sido o palácio de um nobre paduano, e no qual se viam colocadas sobre a porta as armas de uma família extinta havia muito tempo. O jovem forasteiro, que conhecia o grande poema italiano, recordou-se de que Dante tinha posto entre os que vivem em eterna agonia no seu inferno um antepassado dessa família, talvez habitante daquela casa.

Esta lembrança, junto à melancolia, tão natural no rapaz que sai, pela primeira vez, da esfera em que nasceu, arrancou de Giovanni um profundo suspiro quando vislumbrou o desolado aposento.

— Virgem santa! — exclamou a velha Lisabetta, que, encantada da singular beleza do rapaz, se esforçava por dar ao quarto melhor aspecto. — Senhor , o que significa tal suspiro, saído de um jovem coração? Esta velha mansão lhe parece demasiadamente sombria? Nesse caso, pelo amor de Deus, chegue à janela, e verá um Sol tão belo quanto o que deixou em Nápoles.

Guasconti seguiu mecanicamente o conselho da velha mulher. Mas o Sol da Lombardia não lhe pareceu tão alegre como o da Itália meridional. Não obstante, tal como era, iluminava jardim situado por baixo da janela, e espargia sua vivificante influência sobre uma grande variedade de plantas, cultivadas, ao que parecia, com excessivo cuidado.

— Este jardim pertence à casa? — perguntou Giovanni.

— Deus nos livre, senhor, enquanto não produzir outras plantas além das que nele crescem atualmente! — respondeu Lisabetta. — Não; esse jardim é cultivado pelas mãos do Sr. Giacomo Rappaccini, famoso médico, cuja reputação, estou certa, tem chegado a Nápoles. Dizem que ele extrai dessas plantas remédios tão poderosos quanto os feitiços. Você verá com frequência o médico, e talvez a senhora, sua filha, ocupados em coletar as extraordinárias flores que nascem no jardim.

Depois de ter intentado, por todos os meios ao seu alcance, tornar mais alegre o quarto, a velha retirou-se, encomendando o jovem à proteção dos santos.

Giovanni não encontrou melhor ocupação que olhar para o jardim sob a janela.

O aspecto deste parecia-lhe o de um desses jardins botânicos que se viam em Pádua antes de aparecerem no resto da Itália e do mundo.

Parecia ter sido o jardim de recreio de alguma família opulenta, porque ao centro viam-se as ruínas de uma fonte de mármore maravilhosamente esculpida, mas tão deploravelmente destroçada que era impossível descobrir o desenho original naquele caos de dispersos fragmentos. A água, todavia, continuava fluindo e brilhando ao Sol como sempre.

O brando murmúrio que chegava à janela do rapaz inspirava-lhe o pensamento de que uma fonte é um espírito imortal que canta incessante o seu cântico celeste, indiferente às vicissitudes de quanto o cerca, importando-lhe pouco que um século lhe faça um corpo de mármore, e outro deite por terra esse objeto morredouro.

Ao redor do tanque que recolhia as águas, cresciam diversas plantas, cujas imensas folhas e flores, de admirável magnificência, reclamavam abundante umidade. Num vaso de mármore, colocado no centro do tanque, crescia, singularmente, um arbusto dotado de uma profusão de flores púrpura, e cada uma delas tinha o esplendor e a beleza de uma pedra preciosa; as flores produziam um espetáculo tão resplandecente que pareciam suficientes a iluminar o jardim, mesmo que não fizesse sol. Cada porção do solo era povoado de plantas e ervas que, malgrado menos belas, não deixavam de revelar cuidados constantes, como se cada uma delas tivesse virtudes individuais, bem conhecidas pela mente científica que as cultivava.

Umas estavam colocadas em urnas antigas e ricamente esculpidas; outras, em vasos ordinários; algumas estendiam-se pela terra como se serpentes; outras trepavam a grande altura. Uma destas plantas enroscara-se ao redor da estátua de Vertumnus[1], envolvida desse modo em um manto de folhagem tão felizmente disposto que poderia servir de objeto de estudo a um escultor.

Achando-se Giovanni na janela, ouviu um rumor atrás de uma cortina de folhas, percebendo que alguém trabalhava no jardim.

Sua figura logo surgiu à vista.

Não era um jardineiro comum: era um homem de alta estatura, magro, pálido e de aparência doentia. Vestia-se de preto. Passava já da meia idade, a barba era branca como os cabelos e as feições revelavam inteligência muito cultivada, mas que, mesmo nos dias da mocidade, nunca puderam expressar muito calor de coração.

O sábio jardineiro examinava com a maior atenção cada planta que encontrava.

Parecia que a sua vista lhes penetrava no mais íntimo da natureza, que observava a maneira como se formavam, e descobria por que uma folha crescia sob tal forma e outra de uma maneira diferente ou por que esta flor se distinguia da sua vizinha na cor e perfume.

Contudo, apesar da profunda ciência do jardineiro, não havia a menor intimidade entre ele e aqueles seres do reino vegetal. Pelo contrário, evitava tocá-los sem corpo intermediário e, ao aspirar-lhes o aroma, fazia-o com tal precaução que impressionou desagradavelmente Giovanni: a cautela do homem era próprias dos que andam em meio a influências malignas, tais como feras selvagens, serpentes venenosas ou espíritos infernais que descarregariam sobre ele o açoite de alguma terrível fatalidade, acaso lhes concedesse um momento de liberdade.

Era coisa singularmente horrível, para a imaginação do rapaz, ver semelhante ar de inquietação numa pessoa que cultivava um jardim, o mais simples e inocente trabalho do homem, encanto e ocupação de nossos primeiros pais antes da sua queda.

Era aquele jardim o Éden do mundo atual? E aquele homem, que via o mal no que as suas próprias mãos haviam plantado, era o seu Adão?

Enquanto o desconfiado jardineiro arrancava as folhas murchas, ou cortava os rebentões produzidos pela seiva excessiva, tinha as mãos cobertas com luvas grossas. E não era esta a única arma defensiva. Quando chegou onde estava a magnífica planta que embelezava com suas brilhantes flores a fonte do mármore, tapou com uma espécie de máscara a boca e o nariz, como se toda aquela beleza encerrasse malignidade muito mais mortífera.

E, julgando ainda a sua ocupação demasiadamente perigosa, retrocedeu alguns passos, tirou a máscara e, com a voz de um tuberculoso, gritou:

— Beatrice! Beatrice!

— Estou aqui, meu pai! O que quer? — respondeu uma voz jovem e melodiosa que saía da janela oposta. Aquela voz bela, como o pôr do Sol nos trópicos, fez brotar no pensamento da Giovanni, sem saber por que motivo, matizes de púrpura e perfumes deliciosos. — O senhor está no jardim?

—Sim, Beatrice! — respondeu o jardineiro. —E preciso de sua ajuda.

Imediatamente, saiu de um portal esculpido uma jovem vestida com o brilho da mais esplêndida flor. Era bela como a luz do dia, e tinha em si tão belas e vivas cores que uma ligeira pincelada a mais seria excessiva. A vida, a força e a saúde cobriam-na em profusão. E a exuberância de todos estes dons estava, por assim dizer, comprimida e sujeita pela sua cintura virginal. Indubitavelmente, a imaginação de Giovanni alimentara-se de ideias mórbidas enquanto estivera contemplando o jardim, porque a impressão que lhe causou a linda desconhecida foi como a que experimentara ao contemplar aquelas flores: tão bela, mais linda ainda que a mais magnífica das flores, mas cujo contato não poderia ser feito sem luvas e máscaras.

Cruzando as alamedas do jardim, Beatrice tocava nas plantas e suspirava o cheiro das flores que seu pai tratava com tanta precaução.

—Venha, Beatrice — disse este último —, veja o que há a fazer no nosso precioso tesouro. Debilitado como estou, seria perigoso chegar-me tanto como o exigem as circunstâncias. Receio que, a partir de agora, esta planta ficará sob sua responsabilidade.

— Com prazer eu me encarregarei dela — respondeu a vibrante voz da jovem, que se inclinou para a magnífica planta, e abriu os braços como se quisesse abraçá-la. — Sim, minha irmã, meu esplendor. Beatrice cuidará e servirá a você. E você, em recompensa, dará o seu perfume, que é para ela como um beijo, como o sopro da vida.

E, dando às suas maneiras toda a ternura de suas surpreendentes palavras, prestou à planta o cuidado que esta parecia exigir.

Entrementes, Giovanni, na janela, duvidava se via uma menina ocupada com a sua flor favorita, ou uma irmã cumprindo para com sua irmã os deveres que carinho inspira.

A cena não foi longa.

Rappaccini — ou porque concluíra os seus trabalhos de jardinagem, ou porque o seu olhar vigilante descobrira a figura estrangeiro — tomou o braço de sua filha e retirou-se.

Anoitecia. Parecia que exalações sufocantes se erguiam daquelas plantas e se insinuavam pela janela aberta. Assim, Giovanni fechou-a, meteu-se na cama e sonhou com uma soberba flor e uma linda criatura.

A flor e a donzela eram duas. Contudo, formavam apenas uma, e sob estas duas formas diferentes, este ente estava envolto de um singular perigo.

A luz da manhã tem uma influência que tende retificar todos os erros da imaginação, e ainda os do entendimento, que forjamos ao pôr do Sol, durante as sombras da noite, ou a claridade menos saudável da Lua.

Acordando, o primeiro movimento de Giovanni foi abrir a janela e olhar para o jardim, tão fundo em mistérios por graça dos seus sonhos. Ficou envergonhado e confuso ao ver quão natural e simples estava tudo com os primeiros raios do Sol, que douravam as gotas de orvalhos encerradas nas folhas e flores, e que, realçando a beleza de cada flor rara, restituíam todos os objetos aos limites do natural. O jovem alegrou-se de ter, no coração de tão estéril cidade, o privilégio de espraiar a vista por aquele oásis vegetação magnífica e exuberante.

— Serviria — disse ele a si mesmo — como uma linguagem simbólica para manter-me em comunhão com a natureza.

É verdade que, naquele momento, não se via o enfermo médico Rappaccini ou a sua linda filha, de modo que Giovanni não podia determinar até que ponto a singularidade que atribuía a ambos devia-se às próprias qualidades destes ou à sua preocupada fantasia, mas se sentiu inclinado a ver tudo sob mais uma perspectiva mais racional.

Durante o dia, foi dar os seus cumprimentos ao Sr. Pedro Baglioni, professor de medicina universidade, famoso sábio para o qual levava uma carta de recomendação. O professor era homem cortês, jovial e de bom caráter. Convidou o jovem a uma refeição, a quem se mostrou muito agradável pela alegria familiar da conversação, principalmente depois de animado com uma ou duas garrafas de vinho de Toscana. Giovanni, pensando que dois sábios habitantes da mesma cidade deviam tratar-se familiarmente, procurou ocasião para faltar sobre o médico Rappaccini. O professor, porém, não lhe respondeu com tanta cordialidade como imaginara.

— Não conviria a um mestre da divina arte da Medicina — disse Pietro Baglioni — recusar a um médico de tão eminente habilidade como Rappaccini os elogios que de justiça merece. Mas, por outra parte, não agiria conforme a minha consciência se permitisse que um rapaz, filho de um velho amigo, formasse falsa ideia de um homem que, no futuro, poderia chegar a ter a sua vida e morte, Giovanni, nas próprias mãos. A verdade é que o médico Rappaccini é, talvez com uma única excepção, tão sábio quanto qualquer dos membros da faculdade do Pádua, e de toda a Itália. Porém, existem graves objeções à sua conduta profissional.

— E quais seriam elas?

— O meu amigo Giovanni padece de alguma enfermidade do corpo e da alma que o obriga a ser tão curioso a respeito dos médicos? — perguntou, sorrindo, o professor. — Quanto a Rappaccini, diz-se (e eu, que o conheço, posso afirmar a verdade do dito), que se preocupa mais com a ciência que com a humanidade. Os seus pacientes somente o interessam como objeto de novas experiências. Com gosto sacrificaria a vida de um homem, a sua própria, a da pessoa mais querida, para acrescentar um grão a seu grande monte de conhecimento acumulado.

— Ele me parece, com efeito, um homem terrível — disse Guasconti, recordando-se da fisionomia fria e inteligente do Rappaccini. — Mas, venerável professor, o amor à ciência não revela nobreza de espírito? Existem muitos homens dotados de tão elevado amor à ciência?

— Deus nos livre! — exclamou o professor, um tanto irritado. — A menos que tenham uma visão mais sadia que a de Rappaccini em matéria de Medicina. Em sua opinião, todas as virtudes medicinais estão encerradas nas substâncias que denominamos venenos vegetais. Cultiva-os ele próprio, e corre o rumor de que tem inventado novas variedades de venenos, ainda mais horrivelmente deletérios e nocivos do que os criados pela natureza para castigo do mundo, sem a sua culta assistência. Não se pode negar que o médico faz menos mal do que podia esperar-se de tão perigosas substâncias. É preciso declarar que, de vez em quando, tem realizado, ou parecido realizar, uma cura maravilhosa. Mas, dizendo o que penso, senhor Giovanni, estes triunfos não devem ser louvados: talvez sejam fruto do acaso. Deve-se, porém, levar em conta todas as suas realizações funestas, que podem ser atribuídas justamente à temeridade de seus intentos.

O jovem não teria aceitado, sem precaução, o parecer do professor Baglioni se soubesse que, há muito tempo, havia uma disputa profissional entre ambos os médicos, e que Rappaccini era geralmente reputado como vencedor. Se o leitor se inclina a julgar por si mesmo, recomendamos a leitura de certos tratados de letra negra, escritos por ambas as partes, e que são preservados no departamento de Medicina da Universidade de Pádua.

— Doutíssimo senhor — disse Giovanni, depois do meditar sobre o que acabava de ouvir acerca do zelo exclusivo de Rappaccini pela ciência —, não sei até que ponto esse médico ama a sua ciência. Mas há um objeto que lhe é igualmente querido: Rappaccini tem uma filha.

—Ah! Ah! — respondeu o professor, soltando uma gargalhada. —Está descoberto o segredo do nosso amigo Giovanni. Ouviu falar dessa menina, que traz perdidos de amor todos os rapazes de Pádua, ainda que não chegue a meia dúzia os que têm tido o prazer de lhe ver a cara. Nada sei da menina Beatrice, senão que Rappaccini a instruiu na sua ciência, e que, jovem e bela segundo a fama, já está qualificada para ocupar uma cadeira de professor. O seu pai destinará à jovem a minha cátedra? Correm, ainda, mais absurdos rumores, que não merecem ser contados nem escutados. Vamos, Giovanni, beba o seu copo!

Gusconti dirigiu-se a casa um pouco quente com o vinho que bebera, e que fazia girar em sua cabeça as extraordinárias figuras de Rapaccino e da formosa Beatrice. No caminho, encontrou uma florista, de quem comprou um buquê de flores frescas e aromáticas.

Entrou no seu quarto e sentou-se junto da janela, à sombra projetada pelo espesso muro, de maneira que podia ver o jardim sem correr o risco de ser descoberto. Baixou os olhos: a solidão era absoluta. As plantas aqueciam-se ao Sol, fazendo-se algumas vezes misteriosos sinais de familiaridade e simpatia.

No centro, próximo das ruínas da fonte, via-se o magnífico arbusto, com os seus gomos rubicundos, que cintilavam no ar, e se refletiam nas águas do tanque, completamente iluminadas pelo radiante esplendor da planta.

A princípio, como dissemos, o jardim estava deserto. Em breve, porém, como Giovanni esperara ou temera, apareceu, debaixo da portada de antigas esculturas, a figura da encantadora jovem, que desceu os degraus e começou a passear no centro das fileiras de plantas, aspirando seus diversos perfumes, semelhante a um desses entes, de que fala a fábula, alimentados por fragrâncias suaves.

Tornando a ver Beatrice, o jovem estremeceu, reconhecendo que a sua beleza ultrapassava a recordação que dela guardara. Era uma beleza viva, tão brilhante que, mesmo ao Sol, lançava os seus raios e iluminava os pontos mais sombrios do jardim. Ao menos assim a via Giovanni, que distinguia a sua fisionomia melhor que na véspera, e se admirava do seu ar natural o grave, porque estas qualidades não tinham entrado no retrato que concebera do seu caráter. Por esta razão, tornou a perguntar a si mesmo que espécie de criatura era aquela. Não deixou de descobrir — ou imaginar — certa analogia entre a bela menina e o magnífico arbusto que deixava cair seus gomos de rubis sobre a fonte: o capricho de Beatrice quisera aumentar a semelhança por meio das cores e disposição de seu vestido.

Chegando ao arbusto, a moça abriu os braços, com ardor apaixonado, e apertou os ramos em tão íntimo abraço que o seu rosto ficou oculto entre a folhagem, e os anéis do cabelo confundiram-se com as flores.

— Exale o seu perfume, minha irmã —exclamou Beatrice —, porque o ar comum deixa-me sem forças. E me dê esta flor, que separo com mão amiga, para colocar sobre o meu coração.

Enquanto dizia estas palavras, a filha de Rappaccini colheu uma das flores mais brilhantes do arbusto, e adornou o peito com ela. Mas, naquele momento, a menos que os vapores de vinho enturvassem os seus sentidos, ocorreu um incidente singular. Um pequeno réptil cor de laranja, da família do lagarto ou do camaleão, chegou, arrastando-se pelo caminho, aos pés do Beatrice. Pareceu a Giovanni — mas, na distância em que estava, era-lhe muito difícil distinguir algo tão pequeno — que uma ou duas gotas de umidade desprendiam-se do talo partido cortado da flor e caíam sobre a cabeça do lagarto.

Por um instante, o réptil contorceu-se convulsivamente e depois ficou imóvel, estendido ao sol. Beatrice observou este fenômeno e benzeu-se tristemente, mas sem surpresa. Isto não a impediu de arranjar a flor no peito, que ali resplandeceu tão deslumbrante quanto uma pedra preciosa, acrescentando ao aspecto e traje de Beatrice um encanto tal que nada do mundo teria sido capaz do substituir aquela flor.

Giovanni, trêmulo, murmurava:

— Estou acordado? Domino os meus sentidos? Essa criatura... devo chamá-la de inefavelmente bela ou de infinitamente terrível?

Beatrice, passeando com indiferença pelo jardim, chegou-se tanto à janela de Giovanni que este pôde satisfazer a imensa e penosa curiosidade que o movia. Neste momento, vinha adejando pelo jardim uma magnífica borboleta. Talvez tivesse errado pela cidade, sem encontrar flores nem verdura entre aquelas antigas moradas dos homens, até que os fortes perfumes dos arbustos do médico Rappaccini a atraíra. Aquela criatura alada não pousou em flor alguma; mas, atraída pela beleza do Beatrice, pôs a voltear ao redor da sua cabeça. Desta vez, era impossível que os olhos de Guasconti se enganassem.

Seja como for, ele imaginou que, enquanto Beatrice olhava com alegria infantil para o inseto, este perdeu as forças e caiu e aos pés dela! As suas asas brilhantes tremeram. Estava morto! Morto sem outra causa aparente que o hálito de Beatrice. Mais uma vez, Beatrice se benzeu e suspirou, inclinando-se para o inseto privado de vida.

Um movimento involuntário de Giovanni chamou a atenção de Beatrice. Esta viu na janela a formosa cabeça do jovem — mais grega do que italiana —, com feições de regular beleza e um reflexo dourado nos anéis de seu cabelo. Quase sem saber o que fazia, Giovanni lançou à jovem o ramalhete que tinha na mão.

— Senhora — disse ele —, aí vão estas flores puras e saudáveis. Aceite-as, por amor de Giovanni Guasconti.

— Obrigada, senhor, respondeu Beatrice, com uma linda voz que saiu como onda de harmonia, e com expressão em que ia misturada a alegria da menina e o prazer da mulher. — Aceito o seu presente, e lhe daria em troca, com muito gosto, esta preciosa flor púrpura; mas, por mais que a atirasse, nunca conseguiria fazê-la chegar aí. É preciso, pois, Sr. Guasconti, que se contente com o meu agradecimento.

Guardou o ramalhete e, depois, como se envergonhada de ter saído da sua reserva virginal para responder à galanteria de um desconhecido, dirigiu-se apressada para casa. Mas, por muito rápida que fosse a sua passagem, pareceu a Giovanni, quando ela estava quase desaparecendo no portal esculpido, que o seu precioso ramalhete começava a murchar na mão de Beatrice. Era, sem dúvida, um pensamento insano. Como distinguir, a tal distância, se uma flor está fresca ou murcha?

Em consequência deste incidente, o jovem abandonou por muitos dias a janela que dava para o jardim do médico Rappaccini, como se temesse ver alguma coisa horrível e monstruosa. Estava consciente de se ter colocado, até certo ponto, sob a influência de um poder incompreensível que reverberava do breve convívio que tivera com Beatrice. O mais prudente seria, se o seu coração corria perigo real, ou sair imediatamente daquela casa e de Pádua ou, então, vendo Beatrice todos os dias, acostumar-se a considerá-la como outra qualquer mulher. Mas o pior que Giovanni podia fazer seria, evitando vê-la, permanecer perto daquela extraordinária criatura, porque a proximidade — somada à possibilidade de manter com ela algum relacionamento— não podia deixar de conferir certa importância e realidade às fantasias que a sua caprichosa imaginação engendrava.

Guasconti não tinha coração profundo — ao menos ainda não lhe sondara a profundidade —, mas era dotado de imaginação viva e do ardente temperamento do meio-dia, que a cada passo aumentavam a sua febre sufocante. Beatrice possuía — ou não — o hálito mortal, essa afinidade com flores tão terríveis, que Giovanni julgara presenciar? O que é certo é que ela havia infiltrado em todo o seu ser um veneno sutil e violento. Não era amor, ainda que a esplêndida beleza da jovem o tivesse enlouquecido; não era horror, mesmo quando imaginava que a alma de Beatrice estivesse saturada da mesma essência venenosa que parecia circular no seu corpo: era um produto do amor e do horror — reunidas estas duas paixões — que abrasava como uma e fazia tremer como a outra.

Giovanni não sabia o que devia temer, e menos ainda o que devia esperar. Mas o temor e a esperança operavam em seu coração uma batalha contínua, conseguindo alternativamente a vitória e reparando-se depois de cada derrota para recomeçar a luta. Toda a comoção de alegria ou tristeza pode ser um bem para nós se é simples; porém, a terrível mistura de duas emoções contrárias acende as lúgubres chamas das regiões infernais.

Algumas vezes, intentava abrandar a febre do espírito percorrendo as ruas de Pádua ou passeando fora da cidade. Mas, como os seus passos eram guiados pela cabeça, o passeio degenerava frequentemente em rápida carreira. Um dia foi detido: um homem gordo, que se voltara ao reconhecê-lo, e quase se sufocara para alcançá-lo, agarrou-o pelo braço.

— Senhor Giovanni! Pare, meu amigo! — gritou. — Não me reconhece? Não era de estranhar se eu estivesse tão mudado como o senhor.

Era Baglioni, de quem Giovanni fugia desde a sua primeira visita, temendo que a sagacidade do professor adivinhasse os seus segredos. O rapaz esforçou-se por tornar a si, lançou um olhar do seu mundo interior ao exterior e, depois, respondeu, como quem sonha:

— Sim, eu sou Giovanni Guasconti, e o senhor é o professor Pietro Baglioni. Agora permita-me continuar...

— Devagar, Sr. Giovanni Guasconti — disse o professor, sorrindo e procurando penetrar o pensamento do rapaz. — Como! Fui companheiro de infância e de mocidade do pai, e o filho passa por mim, como um estrangeiro, por estas ruas de Pádua? Espere, Giovanni, temos que falar antes de nos separarmos.

— Depressa, pois, meu digno professor, depressa! — replicou Giovanni, com febril impaciência. — Bem pode ver que estou com muita pressa.

Enquanto falavam, passava pela rua um homem vestido de preto, curvado, que andava com a dificuldade de uma pessoa enferma. No rosto, embora pálido como o de um cadáver, reinava tal expressão de prudente inteligência que o observador podia facilmente fechar os olhos aos sintomas de debilidade física para concentrar-se apenas naquela prodigiosa energia. Aquele homem trocou uma fria saudação com Baglioni. Fixou, contudo, em Giovanni um olhar tão penetrante que pareceu ter descoberto o quanto nele era digno de atenção. Não obstante, havia uma quietude singular naquele olhar, como se o médico tivesse no desconhecido um interesse puramente especulativo, não humano.

— Este é o médico Rappaccini! — murmurou o professor, depois que ele passou. Ele já viu o seu rosto antes?

— Não que eu saiba — respondeu Giovanni —, a quem aquele nome fez estremecer.

— Sem dúvida, ele já o viu! — respondeu Baglioni, com precipitação. — Esse sábio não o examinou assim sem um motivo. Conheço aquele olhar. É o que ilumina friamente o seu rosto quando ele se inclina para um pássaro, um rato ou uma borboleta mortos pelo perfume de uma de suas flores. É um olhar tão profundo quanto a própria natureza, mas que carece do fogo e do amor que esta possui. Sr. Giovanni, apostaria a minha vida que você é o objeto de uma das experiências de Rappaccini.

— O Sr. está brincando comigo? — perguntou, apaixonadamente, Giovanni. — Esta, professor, seria uma funesta experiência.

— Paciência, paciência! — replicou o imperturbável professor. — Digo-lhe, pobre Giovanni, que Rappaccini fita-o como objeto de interesse científico. O amigo caiu em mãos terríveis. E a Sra. Beatrice, que papel representa neste mistério?

Mas Guasconto, não podendo suportar a pertinácia de Baglioni, desvencilhou-se do professor, e pôs-se a correr antes que este pudesse segurá-lo novamente pelo braço. Baglioni seguiu o jovem com a vista, e balançou a cabeça, murmurando:

— Isso não! O rapaz é filho de um velho amigo meu, e eu não quero lhe suceda uma desgraça que os segredos da minha ciência podem estorvar. Além disso, é uma falta de vergonha intolerável que Rappaccini queira arrancar-me das mãos, por assim dizer, este rapaz, para ensaiar nele suas infernais experiencias! Ficarei alerta. Talvez, doutíssimo Rappaccini, eu lhe faça guerra onde menos espera.

Entrementes, Giovanni traçara um caminho tortuoso e achara-se, enfim, à porta da sua casa. Ao transpor os umbrais, encontrou a velha Lisabetta, que sorria afetuosamente, e parecia querer atrair-lhe a atenção. Em vão, todavia, porque a efervescência dos sentimentos de Giovanni fora substituída por uma triste e fria indiferença. Fixou os olhos no rosto enrugado que lhe sorria, mas sem dar sinais de percebê-lo. Então a velha puxou-lhe pela capa.

— Senhor, senhor! — murmurou ela, sempre com o sorriso nos lábios, que lhe dava a aparência de uma grotesca escultura de madeira escurecida pela ação dos séculos. — Escute, senhor... Há uma porta secreta para entrar no jardim.

— O que está dizendo? — exclamou Giovanni, voltando-se do repente. — Uma porta para entrar no jardim de Rappaccini?

— Silêncio, silêncio! — murmurou Isabel, tapando-lhe a boca com a mão. — Sim, no jardim do respeitável médico, e de onde poderá ver todas as suas formosas flores. Muitos rapazes de Pádua dariam muito dinheiro para ser admitido entre essas flores.

Giovanni lhe deu uma moeda de ouro.

— Ensine-me o caminho — disse.

Uma suspeita, nascida talvez da conversa que tivera com Baglioni, cruzou pela imaginação do rapaz.

Talvez esta intervenção de Lisabetta tivesse relação com a intriga misteriosa que, segundo o professor, Rappaccini urdia contra ele. Mas, apesar de perturbá-lo, esta suspeita não conteve Giovanni.

Desde o momento em que viu a possibilidade de acercar-se de Beatrice, sentiu-se na obrigação de fazê-lo.

Que lhe importava fosse ela um anjo ou um demônio? Sentia-se irresistivelmente atraído à sua orbita, e não podia evitar a lei que o obrigava a descrever ao seu redor círculos cada vez mais estreitos, até que chegasse a um resultado que ele se abstinha de prever.

E, não obstante — coisa singular! —, ocorreu-lhe uma dúvida repentina: este ardente interesse que tinha por Beatrice seria pura ilusão? Acaso não fosse verdadeiramente bastante profundo e real para desculpar a temeridade que o arrastava a uma situação de incalculáveis consequências, seria apenas capricho de um jovem, que nada ou quase nada tinha a ver com o coração.

Deteve-se... vacilou... retrocedeu um passo... mas continuou o seu caminho.

Lisabetta conduziu-o ao longo de vários corredores sombrios e, finalmente, descerrou uma porta que se abria à visão e ao som de folhas farfalhantes, com a luz do Sol decomposta brilhando entre elas.

Giovanni transpôs o limiar e, abrindo passagem pelos densos ramos de um arbusto que cobria a porta secreta, achou-se, no jardim de Rappaccini, sob a janela de seu quarto.

Quantas vezes sucede que, quando o impossível acontece, e os sonhos tornam-se realidades palpáveis, nos sentimos tranquilos e cheios de sangue-frio em meio a circunstâncias cuja previsão só nos fizera delirar de alegria ou de dor! O destino compraz-se em zombar assim de nós. A paixão escolhe o instante que lhe apraz para vir à cena, e ignora-o quando a situação parece requerê-lo. Isto aconteceu a Giovanni.

Todos os dias, o sangue inflamado lhe fazia bater o pulso com a ideia improvável de uma conversa a sós com Beatrice no jardim, onde, animado com o brilho oriental da sua beleza, pudesse surpreender-lhe nos olhos o mistério que ele julgava ser o enigma da própria existência. E, neste momento, reinava em seu coração uma singular e intempestiva tranquilidade.

Alongou a vista pelo jardim e, não vendo Beatrice nem seu pai, começou friamente a examinar as plantas.

O aspecto de todas e de cada uma delas desgostou-o; a sua magnificência parecia-lhe violenta e sobrenatural.

Raro era o arbusto que não teria assustado o viajante ao atravessar a selva, parecendo-lhe que uma figura do outro mundo lançava-lhe olhares terríveis. Outros teriam ferido a sua sensibilidade com o aspecto artificial, indicando que houvera neles tal mistura de vegetais de diversas espécies que o seu produto já não era o ser criado por Deus, mas um monstruoso bastardo da imaginação depravada do homem, brilhando com funesta e falaciosa beleza.

Aquelas plantas eram provavelmente o resultado de experiências que tinham chegado a formar, pela combinação de dois formosos indivíduos, um ente híbrido, possuindo — sinistro e misterioso — o caráter revelado enquanto crescia naquele jardim.

Finalmente, Giovanni não conheceu mais de duas ou três plantas em toda a coleção, e essas eram de espécie muito venenosa.

Enquanto se ocupava neste exame, ouviu o farfalhar de um vestido de seda. E, voltando o cabeça, percebeu Beatrice que saía do portal esculpido.

Giovanni não pensava no que faria em tal conjuntura. Pediria desculpara por ter entrado no jardim ou admitiria o fato, como consentido pelo médico Rappaccini ou sua filha? Mas o ingênuo modo de Beatrice tranquilizou-o. Esta seguiu alegremente o caminho, e encontrou o rapaz próximo à fonte. Na em sua fisionomia estava retratada a surpresa, misturada de afabilidade e de contentamento.

— Gosta de flores? — disse, sorrindo e aludindo ao buquê que o jovem lhe endereçara da janela. — Não estranho que, por isso, queira ver a colecção de meu pai. Se ele estivesse aqui, poderia dizer-lhe muitas coisas acerca das extraordinárias propriedades destas plantas, a cujo estudo dedicou, com exclusividade, a vida inteira.

— Também a senhora, a ser certo o que se diz, conhece as virtudes destas magníficas flores. Se tivesse a bondade de ser meu preceptor, creia que faria mais progressos do que com o próprio Sr. Rappaccini.

— Empregam o tempo lá fora em cousas tão fúteis? — perguntou Beatrice, sorrindo. — Dizem que conheço a ciência de meu pai? História! Ainda que tenha sido criada entre estas flores, não distingo mais que as suas cores e perfumes e às vezes creio que renunciaria mesmo a esta pouca ciência. Há flores aqui, e não das mais formosas, que me incomodam bastante. Peço-lhe não creia no que dizem da minha ciência. Não acredite, a meu respeito, senão no que vir com os próprios olhos.

— E devo acreditar em tudo o que tenho visto? — perguntou Giovanni, tremendo com a recordação das cenas que presenciara. — Não, senhora. Você exige muito pouco de mim. Mande-me acreditar só no que me disser.

Beatrice decerto o compreendeu. Um vivo carmim subiu-lhe às faces. Mas olhou para Giovanni, e respondeu com o orgulho de uma rainha:

—Sim, mando-lhe esquecer quanto tenha imaginado. O que lhe tem parecido certo pode ser falso. As rainhas palavras, porém, são a expressão de um coração que não sabe fingir. Acredite nisto.

O seu rosto inflamado brilhou aos olhos da consciência de Giovanni como a luz da verdade.

Enquanto falava, espargia ao seu redor perfume tão delicioso, embora efêmero, que o preocupado rapaz mal ousava respirar. Era, talvez, a fragrância das flores. Podia o hálito de Beatrice embalsamar de tal modo as suas palavras?

Giovanni esteve quase a desmaiar. Mas a vertigem passou como sombra. Parecia ler, através dos olhos daquela encantadora criatura, até o fundo da alma, e já não sentia dúvida nem temores.

O rubor de Beatrice tinha desaparecido. Tornou-se alegre, e parecia que as relações com Giovanni lhe causavam prazer semelhante ao que sentiria a pessoa que habitasse uma ilha deserta conversando com um viajante do mundo civilizado.

Evidentemente, a sua experiencia da vida não ultrapassava os muros do jardim. Falava de coisas tão simples, e fazia acerca de Pádua, ou da longínqua pátria de Giovanni, de sua mãe ou irmãs, perguntas que indicaram tal ignorância do mundo que Giovanni lhe respondia como a uma criança.

Sua alma era como um fresco arroio que rebenta pela primeira vez e se encanta com os reflexos do céu e da terra lançados em seu seio. Tinha, também, pensamentos que vinham de um manancial profundo, e imagens vivas como os rubis e diamantes.

De vez em quando, o jovem maravilhava-se, vendo-se no jardim com aquela a quem emprestara tão terríveis cores, e cujas qualidades haviam sido apresentadas a ele de uma forma terrível. Era ele mesmo que falava com Beatrice como se fossem irmãos? As suas reflexões não duravam mais que um instante, porque o efeito do caráter de Beatrice era muito positivo para que se não familiarizasse com ela.

Depois de passearem em tão agradável intimidade pelo jardim, acharam-se de novo junto à fonte onde estava o arbusto das lindas flores. O perfume que exalava era o mesmo que Giovanni atribuíra ao hálito de Beatrice, com a diferença de que o da planta era mais forte. Quando Beatrice olhou para esta, Giovanni observou que punha a mão sobre o coração, como se sentisse, repentinamente, pulsações dolorosas.

—É a primeira vez na minha vida — disse a filha de Rappaccini — que me esqueço de ti.

— Recordo-me, senhora, que me prometeu um desses vivos rubis em troca do ramalhete que tive a feliz temeridade de lançar a seus pés. Permita-me colher uma dessas flores para lembrança dessa nessa entrevista.

Com a mão estendida, Giovanni dirigiu-se para o arbusto. Mas a jovem tomou-lhe o passo, dando um grito que lhe atravessou como um punhal o coração. Pegou-lhe na mão e tirou-a com todo o vigor possível em uma pessoa frágil. O tremor da mão de Beatrice fez Giovanni estremecer.

— Por sua vida, não toque nela! — ela exclamou, angustiada. — Essa planta é fatal!

E, cobrindo o rosto, desapareceu sob o portal esculpido.

Seguindo-a com a vista, Giovanni viu o fraco e pálido Rappaccini oculto na sombra da estátua de Vertumnus. Há quanto tempo estaria ali?

Tão logo Guasconti se achou no seu quarto, a imagem de Beatrice fixou-se em sua apaixonada imaginação, com toda a magia que lhe descobrira desde o primeiro vislumbre, e os suaves sentimentos de que era dotada. Adornada de todas as preciosas qualidades femininas, era digna de ser amada e capaz, por sua parte, de todo o heroísmo do amor. Ou havia ele condenado ao esquecimento o que considerara como provas de terrível singularidade da sua natureza física e moral, ou a sutil lógica da paixão havia transformado os estranhos indícios em coroa de ouro de encantamento, que ainda mais tornava Beatrice admiravelmente única. O que lhe parecia abominável convertera-se em novos encantos, ou perdia-se entre as ideias vagas e sem forma, que enchem as escuras regiões que passam além das que são perfeitamente conhecidas.

Assim Giovanni passou a noite, até que a aurora começou a despertar as flores do jardim de Rappaccini. O Sol apareceu à hora do costume e, lançando os seus raios sobre as pálpebras do rapaz, acordou-o para induzi-lo a uma sensação dolorosa. Era uma picada aguda na mão direita, a mesma que Beatrice tocara para impedi-lo de colher a flor. Nas costas das mãos tinha, em marca roxa, o sinal de quatro dedos, e, no pulso, o do polegar.

Oh, com que tenacidade o amor (ou a aparência de amor que brota em nossa imaginação sem lançar raízes no coração) guarda a fé até chegar o momento em que deve desvanecer-se como ligeiro vapor!

Giovanni atou um lenço na mão e se perguntou que maligno inseto o teria mordido. Logo esqueceu a dor, pensando em Beatrice.

Depois da primeira entrevista, o que chamamos destino não podia prescindir de apresentar segunda, logo terceira, quarta, até que a reunião com Beatrice no jardim deixou de ser um acidente para ser a vida inteira de Giovanni, porque o esperar antes e a recordação depois ocupavam o resto. Sucedia outro tanto à filha do médico. Espreitava a aparição do rapaz e corria para ele com tanta familiaridade como se tivessem sido, e ainda fossem, companheiros de infância. Se por acaso ele não aparecia à hora convencionada, Beatrice situava-se debaixo da janela, e fazia subir ao quarto as melodiosas inflexões da sua voz, que ecoava sempre no coração de Giovanni:

— Giovanni! Giovanni! Por que demora? Venha logo!

E este apressava-se em descer ao Éden de flores venenosas.

Mas, apesar de tal intimidade, havia no procedimento de Beatrice tão rígida reserva que, à imaginação de Giovanni, se apresentava a ideia de vencê-la. Segundo todos os indícios, amavam-se. Os olhos haviam transportado o segredo do seu amor de um coração a outro, como se fosse demasiado santo para ser revelado. Tinham por vezes falado de amor com efusões apaixonadas, em que a alma saía misturada com as palavras, semelhantes às línguas de um fogo muito tempo oculto. Todavia, não houvera um beijo, um aperto de mão, nenhuma das ternas carícias que a paixão santifica. Nunca Giovanni tocara em um cabelo de Beatrice. Nunca o seu vestido, agitado da brisa, roçara a roupa de Giovanni. Nas poucas ocasiões em que este parecia querer passar além, Beatrice mostrava-se tão triste e severa que não tinha necessidade de pronunciar urna palavra para contê-lo. Naquelas ocasiões, ele estremecia com as suspeitas que saíam, como outros tantos monstros, do seu peito, e olhava-a aflito: a paixão enfraquecia; somente as dúvidas subsistiam. Mas quando, mais tarde, Beatrice sossegava, deixava de ser a criatura misteriosa a quem com tanto terror olhava, para tornar a ser a linda e ingênua donzela, cujo espírito ele conhecia melhor que qualquer outra coisa do mundo.

Muito tempo decorrera desde o último encontro de Giovanni com Baglioni. Uma manhã, foi aquele desagradavelmente surpreendido pela visita do professor, em quem raras vezes pensara durante muitas semanas, e a quem esqueceria de todo com muito gosto. Presa de prodigiosa excitação, não podia suportar a companhia dos que se não achavam em perfeita harmonia com o seu estado presente, e não era de esperar tal harmonia do professor Baglioni. Começou este falando com indiferença dos rumores que corriam na cidade e, em seguida, lançou-se em outro assunto.

—Li há pouco um antigo autor clássico — disse o professor — e me deparei com uma história que singularmente me interessou. Provavelmente você se lembra dela. Trata-se de um príncipe indiano que enviou uma bela mulher de presente a Alexandre Magno. Era ela sedutora como a aurora e bela como o Sol do ocidente. O mais notável, porém, era a fragrância do seu hálito, o perfume mais refinado que se aspira em um jardim de rosas da Pérsia. Alexandre (coisa natural em um jovem conquistador!), ao primeiro olhar, apaixonou-se pela encantadora desconhecida. Mas um médico sagaz, ali presente, descobriu um segredo terrível.

— Qual? — perguntou Giovanni, baixando os olhos.

—Essa bela mulher — continuou o professor — tinha sido criada com venenos desde que nascera, e estava tão saturada deles que se convertera ela própria no veneno mais mortal. O veneno era o seu elemento de vida. O perfume do seu hálito envenenava o ar. O seu amor seria um veneno; os seus, abraços mortais. Não é uma história maravilhosa?

— Uma fábula para crianças — disse Giovanni, levantando-se com impaciência. — Admira-me que o senhor, que se ocupa com estudos sérios, gaste o tempo lendo tais desatinos.

— Oh! — disse o professor, olhando com inquietação em torno de si. — Que estranha fragrância é esta no seu quarto? É tão delicioso quanto incômodo. Se tivesse de respirá-lo com frequência, creio que me faria mal. Parece o aroma de flores... mas não as vejo aqui.

— Não há flores aqui — respondeu Giovanni, empalidecendo. — Creio que é imaginação sua. A lembrança ou pensamento de uma coisa nos faz facilmente acreditar na sua realidade.

— Sim; mas eu não estou tão sujeito a tais devaneios. E se pensasse em um cheiro, seria no de alguma droga de farmácia, de que os meus dedos podiam estar impregnados. Dizem que Rappaccini junta aos seus medicamentos aromas mais suaves que os da Arábia. Sem dúvida, a formosa e sabia Beatrice administraria aos seus enfermos bebidas tão doces como um hálito virginal. Mas desgraçado de quem as tomasse!

O rosto de Giovanni mostrava as diversas comoções que o agitavam. O tom do professor, aludindo à pura e radiante filha de Rapaccini, oprimiu-lhe o coração. E aquela suposição iluminou mil sombras suspeitosas que, como outros tantos demônios, começaram a torturá-lo.

Esforçou-se por desvanecê-las, e respondeu com a confiança de um namorado:

— O senhor, professor, foi amigo de meu pai. E talvez pretenda ser amigo do filho. Com o maior respeito, pois, peço-lhe que não me fale mais nisso. Não conhece Beatrice, não pode compreender a injúria que lhe faz falando dela desta maneira ofensiva, ou mesmo ligeira.

— Pobre Giovanni! — replicou o professor, compassivamente. — Conheço essa pobre menina melhor do que pensa. É preciso que lhe diga a verdade acerca do envenenador Rappaccini e de sua filha, que é tão bela quanto venenosa. Sim, porque ainda que o senhor atentasse contra os meus cabelos brancos, não poderia impor-me silêncio. A fábula da indiana realizou-se em Beatrice graças à profunda e mortal ciência de Rappaccini!

Giovanni deixou escapar um gemido e escondeu o rosto.

— O amor natural de um pai a seu filho — continuou Baglioni — não bastou para impedir que Rappaccini oferecesse sua filha como vítima à paixão insensata pela ciência. Porque (façamos-lhe justiça) nunca um verdadeiro amante da ciência destilou, como ele, o próprio coração num alambique. Que destino, pois, espera o senhor? Não há dúvida que você será submetido a alguma experiencia, cujo resultado há de ser a morte... ou alguma coisa ainda mais terrível. Quando tem diante de si o que chama o interesse da ciência, Rappaccini não vacila.

— Isto é um sonho — murmurou Giovanni —, um verdadeiro sonho!

 — Ânimo! Ainda estamos a tempo de socorrê-la. Talvez consigamos restituir essa infeliz criatura aos limites ordinários da natureza que a loucura do pai lhe fez ultrapassar. Eis este frasco de prata. É obra de Benevuto Cellini [2], e digno de ser oferecido à dama mais formosa da Itália como presente de amor. Mas o seu conteúdo é de inapreciável valor. Algumas gotas deste antídoto neutralizariam os mais violentos venenos dos Borgias. Não duvide da sua eficácia contra os de Rappaccini. Dê a Beatrice este frasco e o seu precioso licor, e espere confiadamente o resultado.

Baglioni pôs o frasco de prata requintadamente forjado sobre a mesa e retirou-se, deixando que as suas palavras operassem o seu efeito no espírito no rapaz.

“Derrotaremos Rappaccini”, pensou Baglioni enquanto descia a escada. “Mas confessemos que ele é um homem admirável. Não obstante, não é mais que um empírico. Eis a razão por que os que respeitam as boas tradições da ciência médica não podem tolerá-lo.”

Em seus encontros com Beatrice, Giovanni, como já dissemos, tinha sido algumas vezes atormentado por cruéis suspeitas. Mas a jovem mulher apresentava-se diante de seus olhos com tal candura e naturalidade, exibia-se tão carinhosa e sincera, que o retrato feito por Baglioni parecia-lhe estranho e incrível, como se nunca tivesse acreditado nas suas primeiras impressões. Horríveis recordações estavam ligadas àquela encantadora menina. Giovanni não esquecia o buquê que murchara na mão de Beatrice, nem a borboleta morta sem outra causa visível além do seu hálito. Por outra parte, estes incidentes, dissolvendo-se no esplendor puríssimo da garota, não tinham aos olhos de Giovanni valor real, e só lhe pareciam imaginações falaciosas, apesar do testemunho de seus sentidos.

Há coisas mais certas do que o que vemos, mais reais do que o que apalpamos. Por essa razão, Giovanni fundara a sua confiança em Beatrice, ainda que antes pela força irresistível das nobres qualidades desta do que pela profunda e generosa fé que o animava.

Neste momento, porém, o seu espírito era incapaz de sustentar-se na altura do primeiro entusiasmo amoroso. Caiu, duvidou, e arrastou por terra a alvura da imagem de Beatrice. Não renunciava a ela, mas desconfiava. Quis obter uma prova decisiva, que o convencesse da existência daquelas terríveis singularidades, que não podia admitir em uma natureza física sem certa monstruosa analogia com a natureza espiritual.

Na distância em que se achava, os olhos podiam ter se enganado a respeito do lagarto, da borboleta e do ramalhete. Mas, se pudesse ver de perto uma flor viçosa murchar subitamente na mão de Beatrice, não tinha lugar a dúvida.

Correu, pois, a uma loja onde se vendiam flores e comprou um ramalhete em que brilhavam ainda as gotas do orvalho da madrugada.

Era a hora de sua visita diária a Beatrice. Antes de descer ao jardim, Giovanni compôs-se ao espelho: era uma vaidade natural em um rapaz, mas que denotava certa leviandade dos sentimentos, e, talvez, falta de sinceridade em um momento de inquietude e perturbação. Vendo-se ao espelho, julgou que as suas feições nunca tinham sido mais graciosas. Os olhos mais brilhantes e as faces animadas de maior vitalidade.

“Pelo menos, o seu veneno não se infiltrou em meu organismo. Não estou como a flor que murcha em suas mãos”, pensou Giovanni.

Ao mesmo tempo, olhou para o ramalhete que tinha na mão. Um estremecimento de indefinível horror percorreu todo o seu ser, quando viu que aquelas flores, ainda cobertas de orvalho, já se inclinavam: pareciam colhidas na véspera. Giovanni empalideceu e ficou como petrificado diante do espelho, olhando aterrado para a própria imagem. Recordava-se da observação de Baglioni a respeito do perfume que lhe pareceu inundar o quarto.

Não podia ser outra coisa senão o veneno do seu próprio hálito. Tremeu e teve horror de si mesmo! Quando se restabeleceu dessa espécie de estupor, começou a examinar curiosamente uma aranha que fazia teia na velha cornija do seu quarto. Era a aranha mais vigorosa e ativa que tinha visto pendida de um teto. Aproximou-se dela e lhe lançou um longo e profundo suspiro. A aranha suspendeu de imediato o seu tralho. A teia oscilou por causa de um tremor produzido pelo corpo do pequeno artesão.

Giovanni lançou outro suspiro mais profundo, suspiro impregnado do veneno de seu coração. A aranha juntou as pernas convulsivamente e caiu morta diante da janela.

— Maldito, maldito! — disse Giovanni, falando consigo. — Você se tornou tão venenoso que um simples hálito é suficiente para aniquilar essa aranha mortal?

Neste instante, uma voz melodiosa e terna subiu do jardim.

— Giovanni, Giovanni, já é tempo! Por que demora tanto? Desça!

— Sim —murmurou este. — Beatrice é a única criatura para quem o meu hálito não é mortífero. Quisera que fosse também para ela!

Giovanni apressou-se a descer e logo se achou face a face com a moça, cujos olhos brilhavam de amor. Um momento antes, a sua cólera e desespero tinham sido tais que desejava matá-la com o olhar. Mas, em sua presença, via-se submetido a muitas influências que tinham uma existência demasiadamente real para ser de imediato eliminada. A recordação do amável poder daquele caráter de mulher derramara muitas vezes em sua alma religiosa tranquilidade. A lembrança de tantas e tão ternas efusões tinha afastado o que encobria o manancial daquele coração, permitindo aos olhos do espírito penetrar-lhe as transparentes profundidades, E se Giovanni soubesse apreciar aquelas recordações, elas teriam mostrado que todo aquele horrível mistério não passava de uma ilusão grosseira, e que, apesar da escura névoa que parecia envolvê-la, a verdadeira Beatrice era um anjo celestial.

Malgrado fosse incapaz desta sublime confiança, a presença de Beatrice não perdera ainda, para ele, todo o seu influxo.

O furor de Giovanni transformou-se em silenciosa insensibilidade. Beatrice adivinhou no mesmo instante que entre ambos havia um abismo. Passearam juntos e taciturnos, e assim chegaram à fonte de mármore e ao tanque, no meio do qual se elevava o arbusto das flores de rubis. Giovanni assustou-se do deleite que experimentou ao aspirar o perfume daquelas flores.

— De onde veio este arbusto? — perguntou, de repente, Giovanni.

— Meu pai o criou — respondeu a jovem, com simplicidade.

— Criou! Criou! — repetiu Giovanni. — O que quer dizer com isso, Beatrice?

— Que o meu pai é um homem que tem penetrado, até o âmago, nos segredos da natureza. E, na hora em que eu via a luz do dia pela primeira vez, nasceu essa planta, filha da sua inteligência, como eu o era do seu sangue... Não se aproxime dela! — continuou Beatrice, observando, aterrada, os movimentos de Giovanni. —Tem propriedades que você não suspeitas. Meu querido Giovanni, eu cresci e floresci com ela, e tenho-me nutrido das suas emanações. Era minha irmã, e eu a amava com afeto, porque... — você não suspeitou? — um terrível infortúnio me aconteceu.

Giovanni dirigiu-lhe, neste ponto, um olhar tão sombrio que ela parou, tremendo. Mas a confiança que tinha na sua ternura a fez corar por haver duvidado um instante do jovem que amava.

— Um terrível infortúnio me aconteceu. O amor fatal de meu pai à ciência separou-me do mundo até o momento em que o céu o enviou, querido Giovanni. O quão solitária estava a sua pobre Beatrice!

— Foi um infortúnio difícil? — perguntou Giovanni, fixando os olhos nela.

— Há pouco tempo não conhecia todo o seu vigor — respondeu Beatrice, com ternura. — Sim, porque o meu coração estava sumido em uma espécie de entorpecimento, que lhe permitia viver tranquilo.

O furor brotou da sombria tristeza de Giovanni como o relâmpago sai do âmago de uma nuvem negra.

— Maldita seja! — gritou o rapaz, transbordando de cólera e desprezo. — E por que a solidão lhe causava tédio, separou-me de todo o calor vital e arrastou-me à região de inexplicável horror em que você vivia?

 — Giovanni! — exclamou Beatrice, volvendo para ele os olhos fulgurantes.

Ela não compreendia o sentido daquelas palavras, mas a expressão violenta com que foram pronunciadas deixou-a aterrorizada.

— Sim, mulher venenosa! — repetiu Giovanni, com raiva. — Veja o que você fez comigo! Fez com que eu murchasse. Encheu-me as veias de veneno. Fez-me tão repugnante, tão terrível como você mesma, que é um monstro de horror! Caso seja o nosso hálito tão mortal para nós o quanto é para os outros, unamos os lábios em um beijo de inefável ódio, e morramos assim!

 — O que lhe aconteceu? — murmurou Beatrice, com um gemido, saído do íntimo do coração. — Virgem Santíssima, tende piedade dessa infeliz criatura!

— Está rezando? — gritou Giovanni com o mesmo infernal desprezo. — As orações, saindo de sua boca, infestam mortalmente a atmosfera! Sim, sim, oremos! Iremos à igreja, meteremos os dedos na pia da água benta, e os que vierem depois morrerão envenenados como nós! Façamos cruzes no ar e espargiremos maldições sob a aparência do símbolo sagrado!

— Giovanni — disse placidamente Beatrice —, por que pronuncia palavras tão terríveis? Eu sou, sim, esse ente horrível monstro de que fala. Mas você... Depois de haver tremido, mais uma vez, diante do aspecto da minha triste sorte, não tem que fazer senão sair daqui para misturar-se aos transeuntes e esquecer que, pela terra, se arrasta um monstro como a sua pobre Beatrice.

—Finge nada saber? — disse Giovanni, com olhar ameaçador. — Veja o poder que a filha de Rappaccini me transmitiu!

Um enxame de mosquitos revolvia-se no ar, buscando o pasto que o perfume das flores daquele jardim fatal lhes prometia. Formavam remoinhos ao redor da cabeça de Giovanni, evidentemente atraídos pelo mesmo influxo que os guiara para muitas daquelas plantas. Ele lançou um sopro e sorriu amargamente para Beatrice, vendo cair morto muitos daqueles insetos.

— Vejo agora e entendo!— exclamou Beatrice. — Foi a ciência de meu que pai produziu isso, não eu. Não, Giovanni, não eu! Nunca, nunca! O meu sonho é amá-lo. Você partirá, mas guardarei a sua imagem no meu coração. Porque — creia, Giovanni —, ainda que meu corpo tenha sido criado com venenos, Deus criou a minha alma, e esta pede um pouco de amor como o seu pão quotidiano. Mas meu pai! Foi ele quem nos uniu em tão cruel simpatia. Sim, despreze-me, mate-me!... Que é a morte depois das palavras que você proferiu? Mas não diga que sou a culpada! Eu não lhe faria mal, nem pela felicidade eterna.

O furor de Giovanni extinguira-se com aquelas exclamações apaixonadas, sendo substituído pelo doloroso e terno sentimento das relações íntimas e particulares que havia entre ambos. Pareciam abandonados no meio de um deserto. Não devia tal soledade unir mais estreitamente aquele casal infeliz? Se se odiassem, quem os amaria? Demais, pensou Giovanni, não podia retornar aos limites da natureza, conduzindo Beatrice pela mão, salva por ele? Oh, espírito fraco, indigno e egoísta, pode crer em uma ditosa união na terra, depois de haver ultrajado amor tão profundo como o de Beatrice? Não, já não havia esperança. Seria forçoso que ela ultrapassasse, triste e com o coração despedaçado, os limites do mundo; seria preciso que lavasse as feridas em alguma fonte do paraíso, para esquecer as penas no esplendor da imortalidade.

Mas Giovanni disto não sabia.

— Querida Beatrice — disse, aproximando-se, enquanto ela, como sempre, se afastava, ainda que agora por outro motivo. — Querida Beatrice, a nossa sorte não é ainda desesperada. Veja este remédio poderoso e quase divino, como me assegurou um médico muito sábio, composto de ingredientes contrários aos que teu pai empregou para reduzir-nos a tão terrível estado. Bebamos ambos, para nos purificarmos do veneno que temos em nós!

—Dê-me— disse Beatrice, estendendo o braço para receber o pequeno frasco de prata que Giovanni tirara do peito.

Depois, acrescentou, com uma ênfase peculiar:

Beberei; mas você espera o resultado.

Ela levou aos lábios o antídoto de Baglioni. No mesmo instante, apareceu Rappaccini e dirigiu-se para a fonte de mármore. Aproximando-se, o pálido amigo da ciência olhou, orgulhoso, para o casal encantador, como um artista que, tendo passado a vida a fazer um quadro, ou um grupo de estatuas, está por fim satisfeito do seu triunfo.

O médico parou. O seu corpo curvado endireitou-se. Estendeu a mão sobre os jovens, com o gesto de um pai que implora do céu a benção para seus filhos. Mas aquela mão era a mesma que lhes derramara o veneno! Giovanni empalideceu. Beatrice estremeceu convulsivamente e levou a mão ao coração.

— Minha filha — disse Rappaccini —, você já não está sozinha na terra! Colha uma flor dessa planta, sua irmã, e roga ao seu noivo que a receba como sinal do seu amor. Agora, não fará a ela dano algum. A minha ciência e a simpatia que existe entre ambos produziram o efeito de elevar o seu noivo acima dos homens comuns, assim como você, minha filha, meu orgulho e triunfo, é superior às outras mulheres. Prossigam, pois, o seu caminho no mundo, adorando-se mutuamente, mas terríveis para os que se aproximarem de suas pessoas.

— Meu pai — disse Beatrice com voz fraca e a mão sobre o coração —, por que infligiu à sua filha tão desgraçada sorte?

—Desgraçada? — repetiu Rappaccini. — Que quer dizer, tola menina? Pensa que é uma desgraça possuir dons maravilhosos, contra os quais se despedaçaria a força do inimigo mais poderoso? Desgraçada, quando pode fazer perecer com um sopro o ente mais robusto? Desgraçada, porque é tão temível quanto formosa? Prefere a condição de uma débil mulher, exposta a todos os ultrajes, incapaz de vingar-se?

— Eu queria ser amada e não temida — disse Beatrice, caindo. — Mas agora isto não importa, meu pai, porque vou para onde o mal, que se misturou ao meu ser, passará como um sonho... como o perfume dessas flores venenosas que não mais turvarão o meu fôlego entre as flores do Éden. Adeus, Giovanni! As suas palavras de ódio pesam como chumbo era meu coração. Oh, não tem havido, desde o primeiro dia, mais veneno na sua natureza do que na minha?

Como o veneno fora a vida de Beatrice — cuja natureza física havia sido tão radicalmente alterada pela habilidade de Rappaccini —, o poderoso antídoto foi a sua morte.

Assim morreu, aos pés de seu pai e de Giovanni, a pobre vítima do engenho do homem, da natureza contrariada, e da fatalidade que acompanha os esforços da sabedoria pervertida.

Neste instante, o professor Pietro Baglioni apareceu à janela de Giovanni e, com ar de triunfo, entremeado ao horror, gritou ao sábio:

—Rappaccini, Rappaccini! Esse é o resultado de suas experiências?

 

Tradução de autor desconhecido.

Fonte: “Diario de Pernambuco” (PE), edições de 19 e 20 de novembro de 1860.



[1] Na mitologia romana, deus dos jardins e pomares.

[2] Benvenuto Cellini (1500 – 1571), escultor, ourives e escritor italiano.


Comentários

  1. Respostas
    1. Olá, Igor,! Muito grato pela sua observação. Houve um erro de digitação na indicação do ano de publicação. Graças à sua pertinente e útil mensagem, o erro já foi corrigido. Na verdade, o conto de Hawthorne foi publicado no ano de 1860. Para facilitar a sua pesquisa, indico os liames para as páginas dos arquivos da hemeroteca da Biblioteca Nacional: http://memoria.bn.br/DocReader/029033_04/2754, http://memoria.bn.br/DocReader/029033_04/2762.
      Abraços,
      Paulo

      Excluir
    2. Sim, ia-me esquecendo... Os números das edições são: 1860/268 e 269.

      Excluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

A MÁSCARA DA MORTE ESCARLATE - Conto de Terror - Edgar Allan Poe

O RETRATO OVAL - Conto Clássico de Terror - Edgar Allan Poe

A MULHER ALTA - Conto Clássico de Terror - Pedro de Alarcón

O CORAÇÃO DELATOR. Conto clássico de terror. Edgar Allan Poe