O CAPITÃO ROSCOFF - Conto Clássico de Horror - Hippolyte Lucas
O
CAPITÃO ROSCOFF
Hippolyte
Lucas
(1814
– 1899)
Oh,
quele horrible torment qu'est la faim!
Era
um marinheiro cujo rosto enrugado testemunhava longas noites passadas sobre o
convés de seu navio a olhar para as estrelas; mas, além dos estragos originados
pelas contínuas fadigas, divisavam-se em seu semblante sinais de profunda tristeza.
Procederia ela da filosofia, que traz consigo a experiencia das viagens pelo mundo,
ou de algum vivo pesar sepultado no seu coração, como um polvo no fundo do oceano?
Seus maiores conhecidos nada sabiam. Assim como o corsário de Byron, o capitão Roscoff,
que também tinha sido corsário, não traía os seus mistérios. Todavia, uma
noite, depois de ter a cabeça um tanto esquentada pela aguardente da Jamaica,
estando à mesa com alguns amigos da mocidade, que voltara a encontrar depois de
vinte anos de separação, e cujas histórias amorosas animavam a conversa, ele se
mostrou menos discreto.
— Vejamos, Capitão — disse um deles — tens
amado? Conta-nos algumas de tuas boas fortunas. Acreditas na constância?
—
Constância? Não, não acredito, e tenho fortes razões para isso — respondeu ele bruscamente.
—
Falas como se tivesses enterrado alguma de tuas amantes e dançado, depois,
sobre o seu tumulo.
—
Fiz ainda pior — retorquiu o Capitão, com ar sombrio.
—
Como! Ainda pior? Que diabo fizeste tu então? Conta-nos esta aventura. Vamos,
deixa aparecer alguma luz na escuridão da noite, em que te envolves continuamente.
Ilumina o teu sinal.
—
Escutem, senhores — replicou o Capitão, bebendo outro copo de aguardente, que
pareceu facilitar passagem ao segredo, de que estava comprimido. — Há uma fatal
história de amor na minha lembrança. Sobrevivi a ela — porém, de que maneira,
grande Deus! — com a perda da mulher que adorava. Entreguei-me depois às delícias
que me ofereciam as dançarinas da Índia e as bailarinas da Grande Ópera de Paris.
Todavia, não pude distrair minha memória: um quadro horrível se apresenta
diante de meus olhos todas as vezes que procuro esquecer. Vejo-o agora... Olhem...
Ei-lo ali...
Os
olhos do Capitão davam mostras de estar numa perfeita alucinação.
—
Um dia — continuou ele, tornando a si —, em que eu passeava no mercado de
Constantinopla, vi uma jovem grega de admirável beleza, a qual teria, se muito,
16 anos. Ela fora ali conduzida para ser vendida. Imaginem a beleza da Vênus de
Praxísteles. Nunca os antigos escultores de seu país fizeram estátua alguma tão
bem acabada. Comprei-a, e, bem depressa, a amei ardentemente. Zulmé, tendo
perdido toda a sua família no meio da horrorosa mortandade feita pelos Turcos
numa pequena cidade das fronteiras, não tardou, graças aos meus amorosos
cuidados, a dedicar-me, não como seu senhor, mas sim como seu escravo, todas as
afeições de sua alma ingênua. Eu sabia grego, e lhe falei na sua língua. Ela
bem depressa me amou tanto quanto eu a amava.
“Que
felicidade teria sido viver, em sua companhia, em alguma pequena ilha do Mediterrâneo,
e de me embriagar continuamente com o seu amor? Porém, fui obrigado a seguir
outro destino...
“Eu comandava um navio guarnecido de homens de
todas as nações, e que empregava na pirataria. Conheciam-me como Surcouf
nos mares das Índias. A glória de que algumas presas brilhantes tinham cercado
o meu nome; a esperança duma rica pilhagem e o desejo de prodigar a Zulmé todos
os prazeres da vida asiática me tornaram a lançar sobre a imensidade das águas.
Zulmé quis acompanhar-me, e cedi aos seus desejos; quanto me teria custado de
partir só!
“Fizemos
de vela para Pondichery. A viagem foi feliz ao princípio; o navio caminhava
muito bem. A estrela dos corsários nos guiava: apresamos um navio de
escravatura, depois de algumas horas de combate, e tornamos a vender os cativos
a um desses negociantes de Nantes, que fazem o tráfico em segredo. Na verdade,
foi um ótimo negócio! Fui o primeiro a saltar na abordagem, não obstante os
rogos de Zulmé. Meus soldados sabiam que eu era valente, e era preciso
mostrar-lhes que o meu casamento não me tinha tornado covarde. Recebi uma
ligeira ferida no braço, que Zulmé curou com o bálsamo de seus beijos. Ela me
certificou que se teria lançado ao mar se eu houvesse morrido, e eu lhe disse
que, se ela viesse a morrer, eu renunciaria também à existência. Zulmé,
incomodada pelo calor do trópico, caiu doente. Eu nunca abandonava a cabeceira
do seu leito. O navio caminhava sob as ordens do meu tenente.
“Aconteceu
que este, que era pouco prático nesses mares, nos desviou sobre um golfo de
recifes. Uma noite, fomos dar de encontro a um banco de coral. Acordei sobressaltado
pelo choque (a fadiga das vigílias me tinha adormecido um momento), corri à
coberta, e vi toda a terrível iminência de um naufrágio. As vagas furiosas
impeliam o navio contra os rochedos à flor da água, e toda noite julguei que se
faria em pedaços a cada instante.
“Assim
que começou a despontar a aurora, conheci o horror da nossa posição. Um
rochedo, cuja sumidade se elevava alguma coisa do nível das vagas, a pouca distância,
me pareceu o único refúgio que nos restava. Mandei deitar o bote ao mar e nele
mandei alguns homens reconhecer esta ilha perigosa. Eles nos vieram dizer que
poderíamos abordar ali com o bote, ou a nado, mas não com o navio. Tomei a
decisão de fazer desembarcar sucessivamente toda a equipagem e as provisões. Começamos
por estas, que a água do mar danificava.
“Este
desembarque durou todo o dia. Zulmé estava tão doente que eu aguardava o
momento em que dormitasse para a transportar à terra. Porém, quando me dispunha
a partir com ela, tendo sido o último a ficar no navio, segundo o dever de um capitão
nestas ocasiões, um violento tufão de vento arrastou o bote. O mar, agitado por
uma violenta tempestade, eriçava e sacudia a sua juba de espuma, rugindo como
um leão furioso. O navio, que estava encalhado, foi impedido de repente, como
por encanto, e correu sobre as ondas tempestuosa com incrível velocidade, mas em sentido oposto ao rochedo. Dentro em
pouco tempo, perdemos de vista os nossos companheiros, e fiquei sozinho, junto
ao leito de Zulmé, em um navio desmastreado, cheio de rombos, e correndo à mercê
das vagas, e do vento.
“Esta
terrível situação, que não pude esconder de Zulmé, a atemorizou menos do que a
mim. Tão doente estava que não tinha forças para resistir à morte. Deitou um
braço em volta do meu pescoço, e disse, com resignação:
‘—
É chegada a nossa hora!’
“Procurei
reanimá-la. De repente, um terrível pensamento se apoderou de mim. Tinha mandado
descarregar todos os mantimentos, e só restavam no navio algumas garrafas de
aguardente, e duas ou três bolachas secas no armário do meu quarto. A fome, com
todas as suas agonias, nos ia assaltar. Zulmé pediu alguma coisa para comer,
como costumava. Deitei em água as bolachas esquecidas, e levei-lhe uma pouco
molhada. Ela percebeu a nossa indigência. E, suspirando, me propôs que a
ligasse a mim com as suas cintas, e que ambos nos precipitássemos nas ondas. A
esperança, que nunca abandona os marinheiros, ainda me acompanhava. E lhe disse
que nunca deveria haver pressa para morrer. Um vento incerto parecia-nos
empurrar para terra.
“Passamos
ainda um dia nestas cruéis agonias e trances. A bolacha diminuía. Eu só bebia
aguardente e não tocava no alimento de Zulmé.
Na manhã seguinte, o último bocado de bolacha foi comido. Os abalos desagradáveis
da fome se fizeram sentir bem depressa no fraco estômago dessa pobre mulher, e
ela expirou logo aos primeiros ataques. Exprimir qual foi a minha dor, e
quantas lágrimas derramei sobre o corpo de Zulmé, seria superior às minhas
forças. Pareceu-me terrível lançá-la ao mar: ela seria, diante dos meus olhos,
a presa dos tubarões, que seguiam os rastros do navio. Prometi conservá-la comigo
até que a morte viesse terminar os meus dias junto a ela, se nenhum socorro me
chegasse, e não me permitisse de a fazer depositar em terra santa.
“Sabem
os senhores que tenho a devoção dos marinheiros. Minha robusta constituição e a
aguardente, que tinha bebido em grande quantidade, me sustiveram ainda além do
fim do dia. Todavia, bem depressa, um horrível apetite se apoderou de mim.
Procurei, ainda outra vez, por todo o navio, alguma coisa para comer, e nada
mais achei que um pouco de manteiga salgada, que tinha ficado por esquecimento
em alguns utensílios da cozinha. Que guisado podia eu fazer com ela ? Vi que
era preciso resignar-me para morrer de fome, e tornei a vir sentar-me ao pé da
minha querida Zulmé, para a qual olhava com ar de inveja.
‘—
Feliz Zulmé — exclamei —, tu já nada sofres! Estaremos unidos para sempre. Procuro
enxergar alguma vela, mas nenhuma aparece. De boa vontade, conservaria o teu
belo cadáver, segundo o uso egípcio, em uma caixa perfumada, e ela seria o objeto
da minha constante admiração. Porém, vale mais que repousemos juntos debaixo do
vasto lençol do oceano.’
“Nesse
momento, a fome bradou mais forte no fundo das minhas entranhas: uma voz... uma
voz, sem dúvida do demônio, misturada com um furacão de vento, me lançou no cérebro
uma ideia terrível. Aquele corpo tão fresco e tão belo, aquela carne
arrebatadora, colorida pelos últimos reflexos da vida, como a neve das
montanhas ao pôr do Sol... Os senhores têm visto quantas narrativas de naufrágio
lhes contam destes horríveis expedientes! Não têm lido no poema Don Juan, de Lord Byron, a história de
um destes terríveis acontecimentos? Repeli essas sugestões de um poder do
inferno. Agarrei um punhal indiano, que sempre trazia comigo, decidido a
traspassar o coração antes do que ceder a semelhantes tentações. Porém, ainda
havia uma garrafa de aguardente de Jamaica e, não julgando a proposito deixar
esse licor aos peixes, que não conheciam o seu uso, a bebi, e fumei os últimos
cigarros que me restavam.
“Que
se passou depois? Como ousei satisfazer a minha fome?.... Ah! A minha Zulmé, cujo
corpo, de manhã, eu não quisera dar aos tubarões, achou no seu amante um
sepulcro monstruoso...
“Mal
o criminoso festim tinha-se concluído, o mar, irritado, acabou de afundar o
navio. Partido em dois, submergiu, e eu fui levado pelas ondas. Nadei muito
tempo. E quando as forças me iam abandonando, lancei mão ao resto de um mastro,
ao qual me conservei agarrado. Fiquei toda a noite, agitado pelas vagas, e
lutando contra elas, seguro à minha prancha de salvação. Que noite! Os tubarões
tocavam em meu corpo ao passar, e me ameaçavam com as replicadas ordens de
dentes de suas queixadas. Um deles, levando uma coisa, que se assemelhava a um
corpo humano, flutuou perto de mim. Era Zulmé! Mesmo depois de morta, tinha
salvado a minha vida; pois eu teria sido devorado se o tubarão não se houvesse
contentado com os remanescentes do meu jantar. Aves carnívoras voavam por cima
da minha cabeça, e com, os seus gritos, pareciam chamar umas às outras, a fim
de roubar uma presa aos monstros do abismo. Fui recolhido nesse estado, quase
morto, por alguns pescadores duma pequena ilha, às bordas da qual tinha sido
levado pela corrente.
“Vejam,
meus amigos, qual é a fraqueza da existência humana. Eu, que, diante dos outros
homens, me bati tão valorosamente, que afrontei tantas vezes a morte, animado
pela ideia da vitória, pelo desejo do saque, e pelo amor próprio de chefe; eu,
o Capitão Roscoff, cujo nome fez tremer a Companhia das Índias, horrorizei-me
diante duma morte solitária, no meio do oceano; eu, o mais amoroso dos mortais,
alimentei-me com o corpo da minha amante; como um réptil do sepulcro, meus dentes
tiveram a barbaridade de traspassar sua tenra pele... sua pele tão branca como
a açucena, na qual, outrora, meus lábios carinhosos temiam de tocar com a
epiderme! Tal é a vida humana, grande Deus!”
Capitão Roscoff calou-se e acabou de esvaziar a
garrafa de aguardente que estava a seu lado.
—
Terrível história, na verdade — disse um dos interlocutores.— Comer a própria
amante! É demais!
—
E não lhe guardar fidelidade depois, eu acho pior ainda.
—
Veem vocês — acrescentou um terceiro — que a constância é uma quimera,
meus senhores.
Tradução de autor
desconhecido.
Fonte: “O Mosaico” (Lisboa,
PT), edição de 15 de janeiro de 1840.
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