A CAVEIRA - Conto Clássico de Horror - Camilo Castelo Branco
A CAVEIRA
Camilo Castelo Branco
(1825 - 1890)
I
Morreu, há seis
anos, em Vila Real, um velho de oitenta e oito anos. Chamava- se D. João de
Noronha, e habitava uma casa pequena, mas decorada de grande brasão de armas, e
não sei quantas ameias modeladas pelos pilares das açoteias mouriscas. O
leitor, que, por louvável curiosidade, quiser, de perto, capacitar-se da
fidelidade arquitetônica desta casa, vá a Vila Real, e na rua do Cabo da Vila, pergunte pela casa de D. João de Noronha. Não
terá de que maravilhar-se, a não ser da sisuda gravidade, e rigorosa certeza
com que o autor lhe conta histórias interessantíssimas.
Algumas palavras a respeito
deste D. João de Noronha.
O dom é quase sempre, entre portugueses,
indicação de fidalguia remota; mas em D. João de Noronha era uma irrisão para o
povo, e uma ignomínia afrontosa aos fidalgos da terra. E a razão é esta:
Há cento e vinte
anos que viveu em Vila Real uma senhora D. Paula Coronel e Noronha, protetora
de um tal Antônio da Silva, sapateiro da casa.
Este homem era desordeiro e
valentão. Em rixas com um freguês por causa de umas tombas, matou-o
desastradamente. A justiça apanhou-o, e condenou-o a pena última.
D. Paula
exaurira os grandes recursos da sua influência, sem conseguir salvar da forca o
seu afilhado. Avaliem-se, porém, os extremos de D. Paula pelo condenado, e
atenda-se à época em que os grandiosos esforços de uma fidalga são ansiosamente
empenhados na salvação de um arrastado verme da plebe.
D. Paula, em
último recurso, declara que o sapateiro é filho bastardo de seu irmão, e como
tal o perfilha. Desde que esta adoção foi consignada no livro dos alvarás de
perfilhamentos, Antônio Coronel de Noronha está salvo da forca. O processo
atravessa novos tramites; e a lei, esmagada sob o rebolo transformado em pedra
d'armas condena o réu a cinco anos de degredo para Castro-Marim.
O nobre exilado, um ano
depois, morreu de uma indigestão de figos do Algarve; e, honra lhe seja feita,
à hora da morte, declarou que vivera sapateiro e cristão, e como sapateiro
pedia perdão aos homens, e como cristão a Deus porque muito queria salvar-se.
Seu irmão
Francisco, mestre ferreiro, morreu ferreiro, porque não quis partilhar das
honras heráldicas de seu irmão, que, pelos modos, não eram muito lisonjeiras para
a memória de sua mãe.
Este ferreiro
deixou um filho, chamado João, e uma fortuna avultada, adquirida na bigorna.
João, órfão aos
quinze anos, quis ordenar-se; mas o amor tolheu-lhe as vocações ardentes do sacerdócio.
Zombavam
cruelmente dele, quando lhe disseram que se encabeçasse na linhagem, embora
bastarda, de seu tio, que morrera legalmente inscrito no livro dos costados a
folhas 1473.
João da Silva
foi conscienciosamente fidalgo desde esse instante. Tirou uma certidão,
hipotecou metade da sua fortuna ao foro, e consegui-o. Não diremos ao certo
quem foi o concussionário daqueles tempos, que lhe recebeu os dois mil cruzados
do pergaminho. As urgências do estado de hoje eram literalmente as urgências do
estômago dos chanceleres mores do reino.
A fidalguia
protestou silenciosa contra tão grave injúria. Fechou os seus salões ao adepto
insolente, que ousara assinar-se D. João de Noronha, e mandara insculpir na
fachada de uma casa ameiada as armas dos Noronhas. É tradição em Vila Real que
os Pintos Coelhos, representados hoje por José Antônio Teixeira Coelho de Melo
Pinto da Mesquita, mandaram borrifar de sangue as armas de D. João de Noronha.
Nada fez recuar o propósito do filho do ferreiro. Os tempos correram, mas os
ódios ao pobre homem não se extinguiram. Digno destes tempos, D. João, seria
hoje afavelmente recebido pela velha nobreza, com tanto que as diferenças no
azul do sangue fossem saldadas com o amarelo do ouro.
Conheci este
homem, e tratei-o muito de perto. Era eu bem criança, e respeitava as loucuras
daquele velho, com a mais sisuda tolerância. Quando o vi, aos oitenta e seis
anos, casar-se com uma donzela (oitava maravilha!) de oitenta e nove, cingi-me com aquele par conjugal, e quis
ouvir-lhe os colóquios amorosos, as expansões delirantes, as ternuras
idealíssimas. Não pude; e o leitor perdeu muito com isso, que eu não era homem
de privar de um capítulo precioso a Fisiologia
do Casamento de Balzac.
O vento das
tempestades da vida impeliu-me de Vila Real para outra linha no mapa-múndi das
minhas observações; e o meu caro D. João morreu poucos dias depois de sua
mulher, e é de crer que, abraçados em frenética paixão, renascessem, viçosos e
frescos como Paulo e Virgínia, em mundos novos, e novas constelações. Assim
seja!
Como vinha dizendo, leitor
atencioso, quando eu tive a honra de ser admitido ao trato íntimo de D. João de
Noronha, reparei numa caveira, contida em uma redoma de vidro, com pedestal de
pau preto, enviesado de arabescos de marfim.
Esta redoma pousava em uma
mesa torneada em bilros de custoso lavor. Reparei, outrossim, que em certo dia
do ano um véu fúnebre cobria aquela redoma. Este dia era Quinta-Feira Santa.
Não concebi que relação pudesse existir entre aquela caveira e a Paixão de
Jesus Cristo; não ousava, porém, interrogar-lhe o profundo mistério.
Entrava eu uma
vez, sem fazer-me anunciar, na sala da redoma, e encontrei D. João ajoelhado
com austero fervor na presença da caveira. Voltou-se de repente sentindo-me os
passos, e eu não pude recuar sem ser conhecido. Vi-lhe lágrimas; eram
majestosas, e eu juro que muitos dos meus leitores de coração petrificado
chorariam, se vissem a sincera angústia daquele rosto venerando.
– Venha cá – me disse ele –
que eu não tenho vergonha de chorar. Choram- se na decrepitude os risos da
mocidade. Entra-se no túmulo a chorar como se entra na vida.
Vi-me embaraçado em
responder-lhe. Eu não tinha aprendido estas palavras artificiosas, com que
fingimos um quinhão de sentimento impostor. Então senti e chorei. Hoje... eu
sei cá! Faria uma nênia em prosa de muita melodia, e citara- lhe não sei
quantos velhos, que a história diz que choraram desde Belisário até ao abade de
Chateneuf.
– Sente-se aqui ao pé desta relíquia – prosseguiu o consternado ancião. –
Devo-lhe um lavor muito delicado: nunca o senhor me perguntou o segredo deste
crânio. Eu gosto de quem respeita a dor alheia. Quero pagar-lhe essa fineza
invocando do túmulo do meu coração o mistério, que aqui está sepultado há
sessenta anos. Se eu me calar, no correr da minha história, respeite o meu
silêncio... É que não poderei... Talvez possa... O coração... dizem que manda aos lábios muito do seu fel, quando os
lábios lhe pedem as amarguradas reminiscências de uma grande desgraça... Será
assim? Eu não sei... vê-lo-emos.
Ora atenda-me,
meu amigo. A inocência deve alegrar-se com a história, onde figura um anjo. Hei
de falar-lhe de Lúcifer também... Seja o anjo para o recreio; e o Lúcifer para
a experiência... Um velho é um livro. Eu vou abrir-me... quero dar-lhe a
leitura de minha alma, hoje, que, amanhã, talvez a pedra rasa de uma sepultura
nem ao menos lhe diga que eu durmo ali o suspirado sono do infeliz...
II
D. João de Noronha, sentado
de modo que encostava o cotovelo à mesa da redoma, principiou a história do seu
segredo, em tom de profunda comoção:
“Tinha eu vinte
anos... Há que tempo isto vai!... Há sessenta e oito anos que eu estudava latim
no convento de S. Francisco. Era minha tenção ordenar-me. Meu pai granjeara-me
uma fortuna, que me estimulou ambições de subir na posição social. Quis ser
padre, e era-o, se nascesse na igreja luterana, onde o padre não sofre a
cruelíssima amputação da vida da alma, em comércio com o mundo.
Quando encontrei
uma mulher, que me imprimiu nos sonhos a sua imagem, perdi o império da
vontade, e as fervorosas vocações do sacerdócio. Adorei uma dessas belas
mulheres, que trazem consigo uma sina de desgraças, um contágio de desastres, e
a perpetuidade de uma chaga, aberta no coração com um ferro em brasa.
Esta mulher, por quem me
fizera nobre, por quem me sentira ambicioso de um fausto, que a sociedade me
ultrajou com justos motivos, por quem, finalmente, me fizera estúpido...
atraiçoou-me.
No meu tempo o
amor era uma coroa de espinhos. Então apaixonava-se um homem, e sentia-se
perdido para a sua liberdade, e escravo de uma angústia interminável. Eu, por
mim, senti-me ultrajado por uma traição incrível, e não pude, ainda assim,
estalar as algemas ignóbeis que me prendiam à desonra de um abandono
injustificável.
Ajoelhei aos pés
de Marta. Pedi-lhe a pouca ventura que me roubara cruelmente... Pedi-lhe a
dignidade do homem que por ela se desprezara... Encontrei-a morta para mim, e
vencida por uma paixão, que devia matá-la! Tive então dó daquela flor, que se
desfolhava na madrugada da sua primavera? O meu amor era grande e generoso!
Pedi-lhe que fosse minha irmã, minha amiga... Nem isso!... Nem sequer me
aceitou um conselho de pai na hora em que mais precisa
lhe fosse uma proteção que a salvasse
da desonra, a que se tinha cegamente abandonado.
Eu valia menos
que Pedro de Mesquita.
Este homem era
oficial de cavalaria. Nascera ilustre; conquistara-se uma opinião de herói;
batera-se ardidamente como um leão nas últimas batalhas. Era aqui apontado em
Vila Real; como o primeiro homem nos triunfos difíceis do amor.
E não o lisonjeavam! O homem,
que obrigara Marta a desprezar-me, devia ser tudo isso.
Era muito linda
esta mulher! Diziam-no as emulações, os ódios, e as intrigas, que a sua
formosura causara entre pretendentes, que não queriam ceder a prioridade do
mérito a nenhum.
Um dos mais poderosos
era Heitor Corrêa, cadete de cavalaria e filho segundo de uma nobre casa desta
vila, que não tenho necessidade de mencionar-lhe.
Não obstante
Heitor Corrêa era repelido, porque Pedro de Mesquita não tinha concessões a
esperar para ser mais amado que outro qualquer.
Marta arrancara,
como Luzia, os belos olhos, se assim pudesse afastar de si os perseguidores que
a tornavam suspeita ao homem que tão caro devia ser-lhe. E era.
Estes dois homens odiavam-se
rancorosamente, e procuravam à porfia um ensejo em que pudessem travar as
espadas. Corrêa confiava demasiado em si. Mesquita sobejava-lhe a certeza de
superar o débil adversário.
O momento ambicionado
chegou. Era Quinta-Feira Santa.
Marta assistia ao ofício da paixão na igreja de S. Francisco.
Heitor Corrêa
antecipara-se a ocupar o mais próximo, lugar de Marta. Pedro de Mesquita viera
depois, e mordera colericamente o beiço inferior. Marta tremeu e chorou. Quis
sair; não a deixaram as multidões espessas. Heitor Corrêa compreendeu-a, e
indignou-se. Era muito desprezo para a altivez do seu caráter.
Terminara o
ofício. O povo evacuou o templo. Marta sumiu-se nas turbas. Dois homens apenas,
como duas estátuas, se fixavam sós, e imóveis, na nave da igreja. Saíram,
simultaneamente. Encontraram-se no adro. Trocaram poucas e rápidas palavras, e
desembainharam os fains.
Pedro de
Mesquita ostentava no rosto a superioridade de mestre. Heitor chamejava a
cólera, a vingança, o capricho, e porventura o desejo de matar, ou morrer.
Esta cena passava-se na presença
de mil pessoas. As beatas benziam-se horrorizadas; e os mancebos estorciam-se
no frenesi de espedaçarem o forasteiro Mesquita, cuja superioridade sobre o seu
patrício era indubitável, e perigosa.
Perigosa, não; porque o
valente era generoso. Heitor não tinha já um botão na farda, quando Pedro de
Mesquita, desprezando demasiadamente a defesa, se sentiu ferido ligeiramente no
braço esquerdo.
A cena tornou-se
cruel! O orgulhoso não podia conciliar com aquele sangue a sua generosidade.
Heitor foi mortalmente ferido, e caiu banhado em sangue. Alguém correu sobre
Mesquita, gritando contra o assassino. Mesquita esperou com bravura! Não houve
mão que lhe tocasse.
III
Heitor Corrêa,
reanimado pelos alentos da desesperação, ergueu-se, e esgrimiu ainda o florete
com braço impotente. Mesquita, ferido num braço, afastou-lhe os botes, com
admirável presença de espírito.
O duelo em Vila Real era uma
coisa nova. O fato, em um dia tal, redobrava de escândalo. Não se atravessavam
as multidões espessas, que reprovavam ruidosamente um tamanho desacato. A causa
do seu espanto não era a moral ultrajada, nem a perda voluntária da vida.
Dava-se como razão suprema de tal algazarra estar exposto o Santíssimo
Sacramento, quando dois homens se cortavam a ferro frio.
As autoridades,
cônscias do acontecimento, deram ordens imediatas de captura. Estas ordens não
podiam ser cumpridas por meirinhos; e não houve desgraçadamente autoridade
militar que capturasse os duelistas.
Heitor Correa, exausto de
forças, perdidas no sangue, que os recursos da cirurgia não estancaram,
desmaiou, e deu sintomas de morto. O alferes de cavalaria, ligeiramente ferido
no braço, curava-se numa botica, afetando um ar de placidez que indignava as
turbas, tumultuosas na rua. Dentre elas saíam gritos terríveis de “morra!” Os
que assim gritavam diziam que estava exposto
o Santíssimo Sacramento; e, portanto,
não podiam deixar de matar o ímpio que desacatara, em Quinta-Feira Santa, a
solenidade da Paixão de Cristo. Como eles saciavam a sede de sangue com o
fervor beatífico das suas crenças, explicam-no milhares de fatos semelhantes
que acompanham sempre a edificante história dos muito austeros autores da integridade
religiosa, tanto em Roma, como em Constantinopla.
Fernando Corrêa,
irmão de Heitor, estava à janela quando viu entrar seu irmão nos braços de dois
soldados. Desceu ao átrio, e interrogou o fato. Contaram-lhe, com as mais
irritantes circunstâncias, o acontecimento.
Fernando, sem atender a
súplicas da família, e de amigos prudentes, saiu de casa, tal qual estava, embrulhado
num capote. Mas, debaixo deste capote, levava um bacamarte.
Quando chegou à
entrada da rua do Jogo da Bola, viu
um grupo de povo, que parecia vedar a saída de uma botica. Lá dentro estava
Pedro de Mesquita, a quem faltara a coragem para afrontar a força bruta da
populaça.
Em frente dessa
botica morava a infeliz Marta, a atribulada amante daquele homem, que ali
estava ameaçado das iras da plebe, tigre desenfreado da licença, naqueles dias
de escravidão, logo que um acaso lhe alargasse um pouco as algemas.
Fernando Corrêa
abriu uma clareira entre a multidão. Descobriram-se todos, exclamando: “Chega o
fidalgo! Deixem passar o fidalgo.”
E o fidalgo
entrou, perguntando quem era o assassino de seu irmão.
—Assassino... Não!... – respondeu o alferes. — Fui eu que o feri, e
honro-me de ser ferido pelo cavalheiro com quem me bati.
Fernando Corrêa,
estúpido como fatalmente são os que podem contar muitos avós robustos de
músculos, e nenhum de vigor intelectual, não compreendeu a delicadeza daquela
resposta. O que ele praticou é um ato de barbaridade, que envergonha a espécie
humana. Recuou um passo atrás, aperrou o bacamarte, e despejou-lho, à queima
roupa, no peito.
Foi horrível,
senhor! Foi esse um lance, que eu tenho aqui diante de meus olhos, noite e dia,
porque nesse instante ouvi um grito de arrepiar as carnes. Era Marta que caíra,
com a face na laje da janela, fulminada pela angústia mais atroz, e mais
inconcebível dos tormentos possíveis nesta vida.
Voltaram-se todos para
aquela janela, e viram-me... a mim, que subira, alentado pela coragem da minha
dor, as escadas daquela casa, e levantara da janela a pobre menina que julguei
morta. Olhei em redor de mim... não vi ninguém, exceto uma criada que chorava,
perplexa, sem atinar com o que devia fazer. A família, a essa hora, na igreja
da Misericórdia, orava, talvez, à
Virgem protetora das virgens...
Fernando, consumado o
assassínio, saiu galhardamente por entre as turbas que saudavam o nobre algoz.
A paralisia do terror gelara os poucos que lhe reprovavam a infâmia. Ninguém
ousou, sequer, lembrar-lhe que aquele sangue lhe tingia os pergaminhos!
O nobre amante de Marta foi
conduzido ao quartel. O seu último lance de olhos nesta vida, viram-no todos
fixar-se na janela da infeliz. Depois... fechou-os, e fechou-os para sempre.
Passada uma
hora, Fernando Corrêa, montado numa possante mula, e seguido de um criado, e dois
bacamartes, passava em Almodena,
caminho de Lisboa. E, para que esta circunstância me não esqueça, dir-lhe-ei
que, um mês depois, o assassino, impune pelo privilégio dos seus pergaminhos,
entrava em Vila Real, com um alvará de real mercê que o isentava de responder
pela morte de Pedro de Mesquita.
O povo, desde
esse dia, vergava respeitosamente a cabeça ao fidalgo, que passava soberbo por
entre aqueles que lhe liam na face a altivez do assassino, que zombara da lei.
Heitor Corrêa... esse foi
enterrado no mesmo dia em que os sinos dobraram por alma de Pedro de Mesquita.
IV
É necessário
falarmos de Marta... É a luz única deste quadro negro... Nem a história valia a
pena de ser ouvida, se não tivesse um heroísmo de virtude para a admiração, e
uma santa para o culto das almas nobres, e apaixonadas pelo sublime do martírio.
Porventura, pode
o senhor compreender a situação de um homem, que tem desmaiada nos braços
aquela por quem fora atraiçoado...? Não é bastante compreender isto: é
necessário compenetrar-se mais da minha situação...
Marta
iludira-me... ou iludira-se; Marta desprezara-me com cinismo indigno da sua
idade; Marta escarnecera as loucuras que me sacrificaram a ela; Marta
desmaiara, adivinhando a morte do meu rival... Compreende porventura agora o
tormento indefinível da minha situação?... Não compreende, porque se eu lhe
disser que naquele trance original o meu sentimento era a piedade... se eu lhe
disser que dera a minha vida pela do rival assassinado, contanto que Marta não
fosse assim desgraçada... o senhor, por certo, não concebe este fenômeno, este
sacrifício... esta monstruosidade de resignação... Quem sabe!... A sociedade
capitular-me-ia de imbecil, e o meu amigo, por muito favor, concedera-me a
celebridade dos tolos inofensivos, não é assim?”
Não lhe
respondi; mas aqui me puno, confessando que D. João me adivinhara. Corei,
decerto, quando fui surpreendido no segredo dos meus juízos. Nada menos
lisonjeiro que o meu silêncio para o pobre velho! Era decerto um pungente
assentimento à sua conjectura! A dor é generosa, e cala as afrontas. Reconheço
hoje que ultrajei aquele grande sacrifício, que compreendo agora. Se não
receasse mesclar com a gravidade melancólica desta narrativa um anexim popular
e graciosamente filosófico, diria que o diabo não quis nada com rapazes, e D.
João de Noronha, de certo, não era mais privilegiado que Lúcifer para tirar de
mim melhor partido.
D. João prosseguiu:
“A família de Marta veio
encontrar-me, com ela nos braços. A mãe, que profetizara, em seus virtuosos
pressentimentos, a desgraça da filha, apertou-a contra o seio, cobriu-a de
lágrimas, e acordou-a daquele letargo, com aflitivos gemidos.
Marta abriu os olhos; mas
nunca mais descerrou os lábios. Esperávamos ansiosos que a sua angústia
respirasse pelas lágrimas. Não chorou uma só. Enquanto os sinos dobravam a
finados pela alma dos dois amantes, Marta estremecia, mas não posso dizer-lhe
como era aquele tremor... A corda de um instrumento ferida, e deixada ao
impulso da vibração estremece assim.
No fim de três dias
extinguiu-se o sofrimento, porque a vimos pender serenamente a cabeça nos
braços de sua mãe. Felicitamo-nos pelo repouso da infeliz. Imaginamos que ela
devia acordar mais tranquila, ou, pelo menos, mais desabafada daquela agonia
que lhe sufocava não só os gemidos, mas até a respiração. Esperamos... Mas quem
não esperava era o médico, que, ao retirar- se, deixou dito que não era Cristo
para restituir a filha à viúva de Naim.
Estava morta,
portanto... E morta sem balbuciar uma palavra! Como se morre assim? Dizem que a
morte é a aniquilação da matéria... Mas aquele anjo morreu dentro em si, antes
que os sintomas da destruição nos revelassem o rápido dilacerar daquela morte!
Quem dirá que aquela mulher sofreu no corpo? Ninguém! A alma, só a alma, este
ser imortal que foge do mundo, onde a vida do amor lhe falta; a alma,
reconcentrada no seu mistério de dores
inconcebíveis, relutando por estalar as algemas que a prendem ao cavalete do
corpo... A alma, e só a alma, meu amigo, consumou aquele transe de
inconfortável inferno, e passou ao mundo da penitência ou da glória...
Agora principia
a minha cena nesta tragédia... É só minha, e só eu a compreendo... Mas hei de contar-lha. Acompanhei à igreja de
S. Francisco o cadáver de Marta. Fui o último que se retirou de ao pé da
sepultura; e fui o primeiro que todos os dias, em três anos sucessivos, lhe
ajoelhou na pedra que eu não queria fosse a nossa eterna separação.
Empreguei os
meios para obrigar o coveiro a não tocar naquela sepultura durante três anos.
Findo este
prazo, venci com dinheiro a repugnância do coveiro, e a pedra que cobria os
ossos de Marta foi levantada.
Era meia noite,
e perpassavam em redor de mim as larvas do terror, agitadas pelo lampejar
trêmulo das lâmpadas, suspensas no altar do Santíssimo Sacramento.
O coveiro,
afeito a lidar com os mortos, tremia, e largava maquinalmente a enxada com que
afastava as camadas da terra.
Não posso dizer-lhe até que
ponto fui enganado pelas larvas que a desvairada fantasia, ou a misteriosa
realidade revocou em volta de mim... Estou quase jurando-lhe que a vi... a
ela... como nos dias da sua esplendida formosura iluminada pelo resplendor da
sua inocência, purpureada do pejo com que a candura se rende ao império dos
instintos... Era ela, quando, nos primeiros tempos da nossa infância, me
oferecia de seu coração a parte que não podia dar a sua mãe, e a seus irmãos...
Era ela, quando me perguntava o segredo daquela atração irresistível, que a
arrastava para mim, que a entristecia sem motivo, que a fazia ambicionar uma
riqueza imaginária, que a fazia sonhar umas delícias que sua mãe lhe não
explicava nem realizava com os seus carinhos... Foi assim que eu a vi, enquanto
o eco da enxada, que feria o seio da sepultura, reboava nas naves da igreja...
Gelava-se-me de terror o pensamento... A fantasia esfriava-se ao roçar pela
mortalha daqueles ossos, e eu sentia-me morto em metade da vida, quando a terra
sacudida da enxada me vinha cair aos pés.
E depois... as
larvas, que a razão não podia espavorir, tornavam a cingir-se com os pilares da
nave, a pendurar-se nas grades do coro, a tremularem por entre os cortinados
dos altares, e a esvoaçarem na abóbada do templo como nuvens escuras,
espedaçadas pela tempestade.
Erguera-se do túmulo para
ajoelhar, a meus pés... Tinha a face lacerada pelos vermes. E era bela ainda...
Devo ser sincero, meu amigo... É impossível que a imaginação me mentisse...
Ouvi-lhe a sua voz... senti o frio das suas mãos... ergui-a de meus pés...
perdoei-lhe... chorei com ela...
A voz de um
homem chamou a minha alma à realidade acerba daquela cena, que se me figurava
um sacrilégio, uma profanação.
Era o coveiro,
que me dizia: “a enxada já topou com os ossos.”
Esta nova,
comunicada friamente pelo coveiro, alvoroçou-me, e coou-me nas veias não sei
que terror semelhante ao do sacrílego, que não tem ainda bastante barbarizada a
alma pelo crime, e vacila, horrorizado de si próprio, quando atira ao pavimento
do altar as hóstias contidas no cálix, que
rouba.
Aqueles ossos,
aquele meu tesouro, ambicionado há três anos, tinham agora para mim uma
superstição, um cunho sagrado, que me fazia na alma não sei que pesar
semelhante ao remorso.
Cheguei ainda a proferir a
primeira palavra do coração, que se arrependera. Quis deixar intactas aquelas
cinzas. Lutei comigo para vencer um excesso de medo, um abuso, talvez, da
imaginação. Não pude; mas não pude também retirar-me sem uma relíquia, um ser
sem alma, uma recordação para as lágrimas, e uma glória só minha neste mundo...
A glória de possuir na morte uma companhia que tivesse sido incentivo de
lágrimas, já que não pude conseguir como companheira na vida essa preciosa
existência, que me espera há sessenta e seis anos na eternidade.
Eis aqui a relíquia, a
testemunha imóvel, terrível, e silenciosa dos longos sofrimentos de um homem,
que atravessou uma longa existência, sem conciliar com os prazeres do mundo a
eterna viuvez da sua alma!
Eis aqui a caveira
de Marta que eu revisto a cada instante das feições com que a vi partir deste
mundo. Há ali naquelas órbitas uns olhos que me veem... Olhos mais penetrantes
que os da vida, porque, nos sonhos angustiosos desta paixão desastrada, eu vejo
sempre esta caveira, animada umas vezes do gracioso riso da inocência, outras
vezes das contorções frenéticas da desesperação... Há ali naqueles ossos, onde
os lábios articulavam hinos dos anjos, uns lábios que, a cada instante, me
balbuciam um perdão... E tenho momentos de inferno nas minhas dolorosas
contemplações, aqui diante desta redoma... Às vezes juraria que essa caveira
estremece em convulsões rancorosas contra mim, balbuciando o nome do homem, que
a levou consigo à sepultura!... Então... sinto-me demente, porque tenho ciúmes
do nada... ciúmes destas cinzas esquecidas no mundo... ciúmes da memória
doutras cinzas, que, há três quartos de século, esperam o dia final... É
lamentável a situação deste pobre velho, que não pôde roubar-se a uma agonia,
das que o mundo reputa quimeras, não é assim?
Deixe-me agora dizer-lhe o
meu segredo, que esse ainda eu lho não disse, nem lho diria, se lhe não
acreditasse umas lágrimas que lhe vejo nos olhos.
Eu creio em
Deus, como creio na vida. Creio na vida como creio na dor. O que eu não creio é
na morte. A morte é uma palavra convencional, com que os homens explicam a
passagem de sobre a terra para o seio de uma nova existência. A imortalidade é
uma ideia abstrata de tudo que é compreensível aos homens. O homem não explica
a imortalidade, enquanto não sobe um grau na escala dos seres inteligentes.
Veja se me compreende... Há uma escala de seres que principia na matéria bruta,
e termina nos espíritos. As funções do espírito, sem formas corpóreas,
pertencem à criatura, superior ao homem. Ora, o homem não explica essas
funções, que devem ser a sua futura existência, pela mesma razão que o animal,
inferior ao homem, não compreende as funções do pensamento aperfeiçoadas, mas
não perfeitas, no homem. Todos os seres, portanto, vão subindo na escala da
inteligência. Todos se transfiguram de forma em forma até deixarem na terra o
invólucro da matéria, e vagarem nos espaços incógnitos como vagam os espíritos.
É lá em cima, nas proximidades do grande mistério, ao clarão da eterna luz, que
se lê o livro de Deus. É nas regiões, que a minha alma adivinha, que eu devo
sentir pelo órgão espiritual em que recebi a interminável impressão de agonia,
que foi na terra a minha lenta peregrinação. O amor ardente e sublime não é um
atributo do espírito? Aquele que muito ama, e muito devorado morre de paixões
grandes e ideais, não é um profeta da vida futura, uma preexistência do futuro
amor? A não ser o amor, qual será a existência do espírito?
Conheço que o
fatiguei... Pois, em verdade, lhe digo que quis elevar o seu espírito à altura
das minhas grandes doutrinas, do meu querido segredo. Quis convencê-lo, não
digo bem, quis entusiasmá-lo por essa eternidade em que aí se fala, despida de
afetos, de poesia, de esperanças, e... deixe-me dizer-lhe... indigna de Deus e
dos homens...
Meu amigo, há na
minha vida um oásis. Tenho exaltações de júbilo, aqui, neste quarto, onde
conto, há perto de setenta anos, os minutos da minha existência. Este gozo é a
minha convicção na imortalidade... É a minha esperança, confirmada pela meditação
e pela ciência, de que hei de encontrar essa alma, que tem vindo aqui
revelar-me os segredos do céu...
Basta... Seja digno da minha
confidência... Não diga às turbas de Vila Real os segredos de D. João de
Noronha. Aqui escarnecem-se os que sofrem, logo que não sofrem pelas más
colheitas do vinho, ou pela barateza dos cereais. Não fale a linguagem dos
espíritos, onde a matéria organizada dispõe do maquinismo da boca para lhe dar
uma gargalhada em resposta.”
D. João de
Noronha despediu-me.
Desde esse dia foram mais da
alma e da inteligência as nossas comunicações. Aprendi com ele a ciência do
espiritualismo. Se depois me materializei, é porque a faísca daquele gênio não
me tinha abrasado mais que a superfície da matéria. O espírito tem a força dos
imponderáveis. A força da matéria pode muito bem calcular-se pela força dos
vapores... tantos cavalos.
Pergunta-me uma senhora de
crítica muito fina:
– Como se
explica o casamento de D. João de Noronha aos 86 anos de idade, com uma donzela
sua contemporânea?!
– De uma maneira muito simples. As núpcias de D. João não podem
considerar-se físicas nem morais. “Absurdo! – replica a espirituosa dama.” Está
enganada, minha senhora. D. João tinha uma pequena fortuna, e queria deixá-la a
uma criada, que o servira desveladamente toda a sua vida. D. João encarava
filosoficamente as fórmulas sacramentais do casamento. Achava-o utilíssimo como
carimbo de contrato civil. Casou-se para recompensar uma criada que lhe
consolou muitas lágrimas, e lhe enxugou nas faces mortas as últimas que ele
chorou. Era digna do
sacrifício. Poucos dias suportou a viuvez.
– E a caveira? – perguntou
ainda a amável síndica dos meus romances.
– A caveira deve
estar confundida nos ossos de D. João de Noronha. A viúva cumpriu religiosamente
as suas ordens: envolveu-a na mesma mortalha.
Imagem: Paulo
Soriano
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