A CLAREIRA DOS FEITICEIROS - Conto Clássico de Terror - Anônimo do séc. XIX
A
CLAREIRA DOS FEITICEIROS
Anônimo
do séc. XIX
Já
não se crê em bruxas. Quanto a mim, sinto muito por isto e o considero uma
perda. Essas crenças, se bem que absurdas e ridículas, eram populares, poéticas
e fecundas, e uma mina inesgotável para os poetas e novelistas. A uma cega credulidade
sucedeu um cego ceticismo: discorre-se em vez de sentir, e o raciocínio mata a
imaginação.
Na
minha juventude, ainda se acreditava em bruxas e almas do outro mundo. Ainda me
recordo de Thomas, célebre feiticeiro da minha aldeia, tipo original, que teria
sido um belo achado para Walter Scott. Quando o conheci, há bem quarenta anos,
tinha ele mais de oitenta anos. Era alto e esguio — apesar de sua idade
avançada — e teso como uma barra de ferro. Uma verdadeira múmia: parecia uma
pele velha lançada sobre um esqueleto.
Mas
aqui falarei da Clareira dos Feiticeiros.
Era
pelos fins do estio, às onze horas da noite: a Lua desprendia a custo um pálido
clarão: o seu disco prateado desaparecia por entre as ligeiras nuvens que lhe formavam
uma auréola. O ar estava sossegado, fresco e sem umidade.
Eu
seguia o caminho que se estende junto à praia, sobre a margem esquerda do Iton,
não longe do lugar em que esta ribeira se lança no Eure.
Eu
deixava o meu cavalo seguir a seu bel-prazer: é um costume de que ainda me não
curei, embora lhe tenha achado seus inconvenientes. Tendo chegado ao pé das
ruinas de um antigo forno de cal, debaixo de enormes nogueiras que o machado fez
depois desaparecer (eu falo há vinte anos), de repente um grito rouco — agudo e sonoro — partiu da espessa
folhagem, vindo de cima, a pouca distância da minha cabeça.
Cuidei ver passar uma espécie de sombra por
diante de mim e sentir um sopro fresco e ligeiro. A voz sinistra continuou a
fazer-se ouvir, enfraquecendo-se insensivelmente; e, afinal, se perdeu no vago
dos ares.
A
hora, a solidão, o silêncio, a escuridade, tudo contribuía a tornar esta voz
aterradora. Confesso com franqueza: se não tive o que propriamente se chama
medo, fiquei pelo menos sobressaltado. A mesma sensação teve o meu cavalo, que
assim o provou saltando do caminho para a planície do lado direito.
Veio
a reflexão tranquilizar-me em breve, e não hesitei em crer que aquela voz era a
de algum mocho que, de cima do seu ramo, fantasiava como eu sobre o meu cavalo,
e cujo repouso eu tinha perturbado. Eu ignorava, então, que o lugar em que me
achava era pavoroso para todos os seus vizinhos, que ninguém ousava por ali
passar só de noite, e, mesmo em companhia, ainda os mais bravos o não
atravessavam sem tremer; e que, finalmente, acabava de correr o maior perigo:
soube-o alguns dias depois.
Oito
ou dez dias depois, eu seguia o mesmo caminho. Mas era menos tarde; era ao pôr
do Sol. Divisei, diante de mim, em um lugar em que o caminho se partia em dois,
um homem que olhava para um e outro lado, como duvidoso sobre qual seguiria. Ao
chegar junto a ele, perguntou-me que caminho deveria tomar.
—
O da esquerda — respondi.
—
Nesse caso, senhor, permita-me acompanhá-lo.
—
De bom grado. Pelo que vejo, o senhor gosta de companhia.
—
Ah, senhor, a noite se aproxima, e tomando esse caminho, é forçoso passar pela Clareira
dos Feiticeiros! Se não o encontrasse, seguiria o outro, se bem que houvesse de
torcer uma boa meia légua.
—
Que Clareira dos Feiticeiros é essa?
—
O senhor não conhece as oito grandes nogueiras, junto ao velho forno da cal? É
ali que o diabo celebra há um bom número de anos os seus conciliábulos e reúne
todos os feiticeiros destes arredores. Se quiser ir um pouco mais devagar, e
não me deixar entes da estrada real, permita-me, senhor, que lhe conte o que
diz a tradição.
Meti
o cavalo a passo, e o meu bom companheiro começou deste modo a sua história,
mas não sem interrompê-la com diversas distrações e perturbações de memória:
—
Sobre a ponta desta encosta, por detrás da qual o Sol se acaba de esconder,
havia, há longo tempo, um castelo do qual nem ruínas existem mais; nem uma só
pedra, nem um pedaço de ladrilho indica o lugar em que existiu: o diabo fez
desaparecer tudo, como quem deseja apagar todos os vestígios de sua
perversidade. Mas as velhas nogueiras, diante das quais vamos passar, lá ficaram
para atestá-lo.
“O
senhor deste castelo era um velho cavaleiro. Retirado do mundo depois de ter,
por longos anos, mostrado a sua coragem e valor, ocupava docemente o seu tempo,
os últimos dias que lhe restavam de vida, ora na caça, ora na cultura de suas
vinhas, ora no cuidado de suas antigas armas, penduradas nas paredes da grande
sala do castelo. Era rico: as planícies que o Iton rega, esses bosques que coroam
as montanhas dos dois lados do vale, e que se estendem a perder de vista, tudo
lhe pertencia. Mas ele possuía um tesouro ainda mais precioso: sua filha, a
jovem e encantadora Isabel, único rebento de um casamento longo e feliz, mas
cujo laço a morte havia cortado. Isabel era a consolação de seu velho pai no
meio das perdas que o tempo lhe causara.
“Nas
longas noites do inverno, ela lhe ouvia a narrativa de seus golpes de lança, ou
de sua caçada da manhã. Guiava para o leito seus passos muitas vezes mal
seguros depois da ceia. E, e finalmente, ia gozar o repouso da inocência depois
de ter deposto o último beijo sobre a calva fronte do castelão; sem isso, não
dormia. Enfim, o cavaleiro amava sua filha, e tanto que por ela teria dado
falcões, cães, cavalos, o último tonel do seu vinho branco, que tanto
apreciava, e, se preciso, a sua própria vida.
“Havia
ainda no castelo um outro morador, um jovem e belo pajem. Seu pai tinha morrido
num torneio. E o cavaleiro, fiel aos deveres de fraternidade de armas, se tinha
dado pressa em acolher o órfão. Amaury era o seu nome. Era um pouco mais velho
que Isabel e, se não fosse homem, podia competir com ela na beleza. Isabel
tinha quinze anos, e Amaury dezesseis. Como estavam sempre juntos, não tardou
muito para que se amassem e fazerem um ao outro a declaração de uma ternura mútua,
o que completou a ventura do rapaz.
“A
inocente Isabel não cogitava senão do prazer de estar com Amaury. Amaury, terno
e respeitoso, esperava com impaciência o dia de ser armado cavaleiro para
declarar ao pai da sua querida a paixão que por ela nutria. Mas a sorte tinha
decidido outra coisa. Amaury caiu de repente doente: estava já às portas da
morte, e não se conhecia a causa de sua enfermidade. Agitava-se,
atormentava-se, e a sua respiração era subitamente interrompida. Seu rosto se tomava
uma coloração azul-violeta. Parecia que mãos invisíveis apertavam a sua
garganta para sufocá-lo. Finalmente expirou, ou assim acreditaram. Mas — oh
milagre! — no mesmo momento em que todas as esperanças estavam perdidas, Amaury
foi arrancado da morte. Reanimou-se, tomou cor, e uma convalescença mais rápida
ainda que a doença o restituiu à amizade, ao amor e à gratidão.
“Os
que já amaram podem fazer ideia do desespero de Isabel. O senhor pode,
igualmente, fazer ideia da sua alegria.
“Todavia,
Amaury já não era o mesmo depois da sua doença: sua voz não era já tão doce e,
por mais que se esforçasse, escapavam-lhe, muitas vezes, sons roucos e ásperos.
Não era já sobretudo aquele amante terno e confiante: parecia duvidar
continuamente do coração de sua amada, por mais que ela procurasse tranquilizá-lo.
“—
Se tu me amas — dizia ele, vem esta noite jurar-me fidelidade debaixo das
velhas nogueiras.
“Era mesmo o lugar em que obteve dela a
primeira declaração de amor.
“Estas
nogueiras, senhor, são aquelas por que vamos passar. Muito velhas devem ser
hoje, sendo-o já naquele tempo.
“A
triste Isabel resistiu longo tempo aos desejos do seu amado. Longo tempo
esperou que ele fizesse mais justiça ao seu coração. Vã esperança. Amaury
tornava-se cada dia mais feroz. Sua razão parecia alienar-se. Não respondia às
doces expressões de ternura da boca da donzela senão com as péssimas palavras:
“—
Se me queres bem, vem jurar-me fidelidade debaixo das velhas nogueiras.
“Podemos
ver sofrer a quem amamos sem partilhar suas penas e procurar adoçá-las? Não, sem
dúvida. Isabel o experimentou, e a piedade pôde mais que a prudência.
“Corações
gelados, que não conhecem o amor, poderiam condená-la. Quanto a mim, só tenho lágrimas
a lhe dar.
“—
Injusto Amaury — disse ela, um dia, ao rapaz —, nada pode trazer-te
tranquilidade. Tu te comprazes em dilacerar o coração da tua amada, duvidando
de sua ternura. Já que assim o queres, irei, pois, renovar a ti os meus
juramentos debaixo dessas velhas nogueiras, outrora testemunhas dos votos de
que já esqueceste. Esta noite, quando forem dez horas, e a Lua puder guiar meus
passos, espera-me na pequena porta do vale.
“A
estas palavras fugiu como se estivesse assustada da promessa que fizera. E uma
alegria feroz brilhou como um relâmpago nos olhos de Amaury. Se o notasse, a
pobre Isabel talvez penetrasses os projetos do sedutor! Como pareceu longo à
donzela o resto do dia! Contudo, achou que a noite viera ainda muito cedo. Com
que pesar arrancou-se dos braços do seu velho pai! O quão penoso lhe pareceu o último
beijo! Um sombrio pressentimento lhe dizia que naquela noite tudo acabaria para
ela: considerava sua mocidade tão feliz, e tão rapidamente passada, e não
ousava pensar no futuro!
“Já
tinha soado na torre a decima hora. A Lua brilhava sobre o horizonte. Isabel
deixou, tremendo, o asilo feliz de sua infância e foi ter à porta do vale em
que Amaury a esperava.
“Ela
abriu a porta e ei-los no campo.
“De
repente, a Lua encobriu-se e perdeu a sua luz. Uma profunda escuridão envolveu
o casal e o trovão ecoou ao seu redor. A mão de Amaury, como se fosse de ferro,
apertava a da trêmula donzela. Ela quis, em vão, parar. Uma força irresistível a
arrastou e a fez chegar em breve às velhas nogueiras.
“—
Juras ser minha para sempre — disse diz Amaury, com um tom de voz que já não
constrangia.
“— Juro — respondeu Isabel.
“A
voz morreu em seus lábios ao pronunciar o juramento fatal.
“—
Pobre de ti, infeliz! Desgraçada, estás perdida para sempre. Pois foi a Satanás
que fizeste o juramento de eterna fidelidade.
“Ouviram-se,
então, horríveis gritos e, depois, gemidos, como de uma garota, misturados a
acentos desconhecidos, que não pareciam de voz humana. Depois, gargalhadas
espantosas fizeram ressoar os ecos dos dois vales e, prolongando-se de colina
em colina, por toda a parte espalharam o terror, e foram ouvidas, segundo
dizem, desde Evreux até Lonviers. Uns julgaram ouvir um estrondoso trovão;
outros, a voz de que fala o Apocalipse, que deve anunciar o fim do mundo. Mas
não tardou muito a que se soubesse que era o grito de alegria, que dera Satanás
para celebrar sua vitória.”
Aqui
fez o meu companheiro uma pausa, persignou-se com uma mão, e com a outra
agarrou-se às crinas do meu cavalo. Passávamos, então, diante das pavorosas
nogueiras.
Passados
alguns instantes, ele continuou a sua história:
—
No dia seguinte, um pastor, que guiava seu rebanho para o pasto, divisou dois
mortos estendidos sobre a terra: eram Isabel e Amaury... O senhor bem vê agora o
que houve: foi Satanás quem sufocou Amaury na sua extraordinária doença. Foi ele
quem se meteu no corpo do jovem escudeiro, assim que a sua alma dele se desprendeu. Não ousando mostrar-se com
a sua vil figura, tomou a de um ente amado para seduzir mais facilmente a
formosa donzela, a quem realmente desejava. Tendo obtido o seu fim, abandonou o
espólio terrestre, de que já não precisava.
“Recolheram-se
os tristes restos dos dois desgraçados para se lhes fazerem os últimos sufrágios.
Mas quando enterraram a donzela, acharam-se sobre o seu alvo corpo marcas satânicas,
provas evidentes de que ela se tinha entregado ao diabo.”
—
Que são estas marcas satânicas? —perguntei.
Ele
me explicou como pôde, e eu entendi que se pareciam com esses sinais naturais em
que a imaginação representa uma rosa, um fruto, uma violeta.
Nós
já víamos o lugar em que devíamos separar-nos, e o meu companheiro concluiu
assim a sua história:
—
O pai da pobre Isabel não tardou muito a fazer companhia à sua filha querida. O
castelo ficou deserto, porque ninguém ousou habitá-lo, e caiu rapidamente em
ruinas. Desde esse tempo, o diabo vem todas as noites visitar estas nogueiras, testemunhas
da sua vitória: todos os feiticeiros do país vêm também ali receber as suas
ordens, e é por isso que este lugar se chama a Clareira dos Feiticeiros. Eis aqui,
senhor, a triste história que lhe prometi. Ela nos foi transmitida de geração
em geração. Sobre ela se têm feito romances e cantigas que se cantam ainda nos serões. E
as mães a citam às suas filhas para lhes ensinar a desconfiar dos rapazes.
Nisto
chegamos à estrada real: meu companheiro me deixou. E, conquanto o perigo
estivesse passado, eu o vi apressar o passo e olhar diversas vezes para trás,
não sei se com o receio de que Satanás fosse sobre ele para o seduzir.
Versão condensada e
brevemente adaptada de tradução de autor desconhecido, publicada em “Bibliotheca
Familiar e Recreativa”, de Lisboa/PT, edição nº 25, 1842.
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