UMA HISTÓRIA DO NOVO MUNDO - Conto Clássico Cruel - Conto Insólito - Aurélien Scholl



UMA HISTÓRIA DO NOVO MUNDO
Aurélien Scholl
(1833 – 1902)


Gosto de tudo quanto nos vem das colônias: leões, onças, tigres engaiolados, papagaios falantes e grandes serpentes entorpecidas. Os cocos, os ananases, as bananas, as tâmaras têm essa poesia de remota origem que, aos meus olhos, assumem um valor extraordinário. Nunca perdoarei ao pêssego mais suculento, ao damasco mais perfumado por  ter  germinado na Vaugirard ou Chatou. Na Ásia, África, América... isso é outra coisa. Prefiro Cooper e Méry a Paul de Kock.

Não é um ananás que lhes vou oferecer, nem tampouco uma bengalinha ou um periquito. É apenas uma historieta, que não tem outro mérito senão o de ter chegado diretamente do Rio de Janeiro.

Rio de Janeiro! Capital do império do Sol, recostada aos pés de um trono de montanhas! Céu de anil, sob o qual brilha o Atlântico! Rio de Janeiro, isto é, a cascata da Tijuca, o aqueduto do Corcovado, o convento de Santa Teresa, o forte de Villegagnon.

E dizer-se que o português Álvares Cabral só lá achou papagaios, cobras, macacos e caranguejos!

Hoje é a lepra que lá reina com a civilização.

 

II

Toc-Toukao, um dos escravos do importante Caçador, rico fazendeiro do Brasil, estava reduzido à inação em consequência de uma horrível lepra. Toc-Toukao tinha uma ideia fixa, que era a de curar-se.

O fazendeiro Caçador, que começara por ser farmacêutico, tinha também a sua, que era obter uma condecoração e entrar para a Academia.

Por que não haver Academia no Brasil, havendo lá serpentes e caranguejos?

Certa manhã, em que Caçador sonhava nos meios de se distinguir, encontrou Toc-Toukao, e fez uma horrível careta, vendo o seu estado desesperado.

— Escute, escravo — disse ele —, dou-lhe a liberdade.

Essa palavra liberdade acha sempre um eco, ainda mesmo no coração de um leproso.

Toc-Toukao ajoelhou-se diante de seu senhor.

— Mas com a condição de que saia de casa e não torne a pôr lá os pés.

O escravo não deixou de lastimar a ausência do  pão certo e o arroz de cada dia. Porém, foi-lhe forçoso cumprir a sua sorte. Entranhou-se pelo mato, pensando, e com razão, que assim como inúmeros animais acham o que comer, ele também o acharia.

E o fazendeiro Caçador continuou a sonhar com os meios de obter a sua condecoração.

III

Sonhava ainda seis meses depois, passeando em um bosque de acácias, que limitava ao sul a sua fazenda, quando descobriu Toc-Toukao, saudável e bem nutrido, que o olhava sorrindo, com ar ingênuo, debaixo de um cajueiro.

O fazendeiro ficou pasmado. A lepra tinha sido vista, até então,  como um mal incurável. Imediatamente, começou a interrogar o antigo escravo,  vendo bem que duplicaria e triplicaria a sua fortuna se chegasse a descobrir remédio para essa epidemia.

Toc-Toukao contou que, depois de ter saído de casa, caminhou sempre em linha reta, esperando chegar ao fim da terra para precipitar-se no vácuo. Mas, um dia em que adormecera debaixo de uma árvore, viu, com os olhos fitos nos seus, uma cobra coral, espécie a mais terrível, e cuja picada causa a morte instantânea.

O réptil, repelido pelo cheiro da lepra, contentara-se em o picar ligeiramente na perna, e correu a meter-se no mato.

Toc-Toukao tratou logo de lavar a ferida em uma fonte próxima, e o veneno do réptil foi para ele o bálsamo da salvação.

— Agora, sim! — disse consigo Caçador. — Agora consigo a minha condecoração!

E dirigiu logo um relatório à Academia das Ciências do Rio de Janeiro e pediu que se fizesse uma experiência pública em alguns leprosos do hospital.

A descoberta fez grande barulho e Caçador julgou-se um grande homem; mas nenhum dos leprosos quis sujeitar-se à experiência, preferindo a morte lenta às picadas da cobra coral.

IV

O fazendeiro, muito desolado, não podia crer em tamanha covardia. Hesitou um bom tempo, mas decidiu-se, enfim,  a fazer algo grandioso. Mandou comprar os porcos mais leprosos que se encontrassem, e não se nutriu mais do que de carnes insalubres e corruptas.

Os sintomas da lepra não tardaram a manifestar-se. Ele ficou satisfeitíssimo, e estudou com grande prazer os progressos rápidos da moléstia. Quando chegou a um estado bastante repulsivo, pediu de novo a convocação da Academia. Todos os sábios quiseram assistir a essa solenidade. A condecoração da Ordem do Coqueiro foi colocada com todo o respeito sobre a mesa do júri. Apresentou-se em uma gaiola uma soberba cobra coral. Caçador apresentou-lhe o braço. O réptil mordeu e logo o fazendeiro, depois de contorcer-se por duas ou três vezes, caiu morto no chão.

—Eh! Eh! — disse Toc-Toukao, dando uma gargalhada. — A cobra coral não achou o fazendeiro branco repulsivo o bastante.

 

Tradução de autor desconhecido.

Fonte: “A Abelha” (RJ), edição de 19 de janeiro de 1856.


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