UMA BREVE VIAGEM À TERRA NATAL - Conto Clássico de Terror - F. Scott Fitzgerald
UMA
BREVE VIAGEM À TERRA NATAL
F.
Scott Fitzgerald
(1896
– 1940)
Tradução de
Alfredo Ferreira
(1865 – 1942)
Eu estava perto de dela, pois me
havia atrasado para caminhar com ela da sala de estar até a porta da frente.
Isso já era muito, porque ela desabrochara
subitamente e eu, sendo homem e apenas um ano mais velho, não desabrochara, e
mal me atrevera a me aproximar durante a semana que passáramos em casa. Eu nada
diria naquele passeio de três metros, nem a tocaria. Mas tinha uma vaga
esperança de que ela faria alguma coisa, daria uma pequena demonstração alegre de algum
jeito, apenas pessoal, visto que estaríamos a sós.
Tomara
um encanto súbito no brilho do cabelo curto sobre o pescoço, na segura, calma
confiança que cerca dos dezoito anos começa a amadurecer e a cantar nas moças
ianques. A luz da lâmpada brilhava nas tranças louras do cabelo.
Já
estava deslizando a outro mundo, o de Joe Jelke, que nos esperavam embaixo, no
carro. Dentro mais de um ano ficaria a sempre fora de meu alcance.
Enquanto
esperava, sentindo os outros fora na noite nevoenta, sentindo a excitação da
semana natalina e a de Ellen ali, se expandindo, enchendo o aposento com apelo
sexual, frase indigna para exprimir uma qualidade que nada tem disso, uma
criada entrou, vindo da sala de jantar, falou baixinho com Ellen e entregou-lhe
um bilhete. Ela o leu e os seus olhos esmoreceram como quando a corrente falha
nos circuitos rurais, e se perderam no espaço. Depois pousou em mim um olhar
estranho, no qual eu provavelmente não aparecia, e, sem palavra, seguiu a
criada na sala de jantar e além. Fiquei sentado, folheando as páginas de uma
revista durante um quarto de hora.
Joe
Jelke entrou, vermelho de frio, com o lenço de seda brilhando em volta do
pescoço, sob a gola do sobretudo de pele. Era um veterano em New Havene eu era
secundarista. Era proeminente, membro do Seroll & Keys e, a meus olhos,
muito distinto e simpático.
—
Ellen não virá?
—
Não sei — respondi discretamente. — Já estava pronta.
—
Ellen! Ellen!
Deixara
a porta da rua aberta atrás de si e uma grande nuvem de ar gelado chegou da
rua. Subiu até o meio da escada, pois era íntimo da casa, e chamou de novo, até
que a senhora Baker chegou ao corrimão e disse que Ellen estava embaixo. Então
a criada, um pouco excitada, apareceu à porta da sala de jantar e chamou em voz
baixa:
—
Senhor Jelke.
A
cara de Joe ficou comprida enquanto se voltava, pressentindo má notícia.
—
Senhorita Ellen mandou dizer que vás à festa, pois chegará mais tarde.
—
O que houve?
—
Não pode ir agora. Irá mais tarde.
Hesitou,
confuso. Era o último grande baile das férias e estava louco por Ellen. Tentara
lhe dar um anel pelo Natal. Falhando nisso, mas conseguira que ela aceitasse
uma bolsa de malha de ouro que custaria cerca de 200 dólares. Não era o único.
Havia três ou quatro na mesma condição desesperada, e todos naqueles dez dias
que ela estivera em casa, mas sua oportunidade vinha em primeiro lugar, porque
era rico e simpático e então o bom partido de São Paulo. Eu achava impossível
que Ellen escolhesse outro, mas constava que se referira a Joe como perfeito
demais. Suponho que sentisse falta de mistério. E quando um homem topa com uma
moça que ainda não pensa no lado prático do casamento... Bem...
—
Está na cozinha! — disse Joe, com raiva.
—
Não está, senhor.
A
criada parecia desconfiada e um pouco assustada.
—
Está!
—
Saiu na porta de serviço, senhor Jelke.
—
Verei.
Eu
o segui. A empregada sueca, lavando prato, olhou de esguelha quando nos
aproximamos e um tinido de panela marcou nossa passagem. A porta de serviço,
com o ferrolho corrido, batia ao vento. Quando saímos ao pátio nevado vimos a
luz traseira de um automóvel dobrar a esquina na extremidade da escura viela. Joe
disse, lentamente:
—
Irei atrás — disse Joe lentamente. —Não estou entendendo nada disto.
Eu
estava abalado demais pela calamidade para discutir. Corremos ao carro dele e
arrancamos numa busca infrutífera e desesperada em todo o quarteirão onde
ficava a casa, espiando para dentro de todos os carros que encontrávamos na
rua. Passou mais de meia hora antes que ele começasse a perceber a inutilidade
do esforço. St. Paul é uma cidade de cerca de 300 mil habitantes, e Jim
Cathcart lhe lembrou que tínhamos de ir buscar outra moça. Como um animal
ferido, deixou-se cair como uma massa
melancólica de pele a um canto do carro, posição da qual se arrancava de minuto
a minuto e balançava para frente e para trás, num gesto de protesto e
desespero.
A
garota de Jim estava pronta e impaciente, mas, depois do que acontecera, sua
impaciência não parecia ter importância. Estava adorável, no entanto. Isso é
uma das coisas que têm as férias natalinas, a excitação do crescimento, da
transformação e da aventura em lugares estranhos, transformando as pessoas que
conhecemos toda a vida. Joe Jelke foi delicado com ela um momento e se entregou
a uma explosão de riso curta, estridente, áspera, à guisa de conversa, e
seguimos ao hotel.
O
motorista se aproximou dele no lado errado, o lado no qual a linha de carro não
estava desembarcando passageiro, por isso demos subitamente em cima de Ellen
Baker justamente saindo de um pequeno carro fechado. Antes de pararmos, Joe
Jelke saltou, excitado, de nosso automóvel.
Ellen
se voltou a nós, com olhar vagamente perturbado — talvez de surpresa, mas
certamente não de susto — no rosto. Não pareceu prestar grande atenção à nossa
presença. Joe se aproximou com severa, digna, magoada e, me pareceu, correta
censura na expressão. Eu o segui.
Sentado
no cupê, e não se apeara para oferecer a mão a Ellen, estava um homem de cara
magra e rude, de cerca de 35 anos, com o ar assustado e um leve sorriso
sinistro.
Os
olhos eram uma espécie de insulto a todo o gênero humano. Os olhos de um animal,
sonolentos e repousados na presença de outras espécies. Eram tímidos, embora
brutais, e desesperançados, embora confiados. Era como se sentissem impotentes para
originar atividade, mas infinitamente capazes de se aproveitar de um simples
gesto de fraqueza alheia.
Vagamente
o classifiquei como um desses homens que eu me habituara a considerar, desde a
mais tenra juventude, como um flanador, com um cotovelo apoiado em balcão de
fiteiro de cigarro, observando, sabe lá através de que pequena fenda do
espírito, as pessoas que entram e saem. Frequentador de garagem, onde tem vagos
negócios tratados em meias-palavras, barbearias e vestíbulos de hotel. Em
lugares assim, de qualquer maneira, é que eu colocaria aquele tipo, se era um
tipo do qual me lembrava. Às vezes sua cara surgia num dos mais selvagens
desenhos de Tad, e eu sempre lançara, desde minha meninice, um olhar nervoso
aonde estava e o vira me observando e fazendo pouco caso de mim. Uma vez, em
sonho, dera alguns passos em minha direção, sacudindo a cabeça a trás e
resmungando: “Olá, garoto”, com voz que pretendia ser tranquilizadora, e eu
correra à porta, apavorado. Aquele homem era dessa espécie.
Joe
e Ellen se enfrentaram em silêncio. Ela parecia, como disse, estar alheada.
Fazia frio, mas ela não notara que seu agasalho se abrira. Joe estendeu a mão e
o apertou e automaticamente ela o segurou com a mão.
De
repente, o homem do cupê, que os observara em silêncio, riu. Foi um riso falso,
feito com a respiração, apenas um gesto ruidoso da cabeça, mas era
positivamente um insulto, se sei o que é um insulto, e que não se poderia
deixar passar despercebido. Não me surpreendi quando Joe, que tinha o sangue
quente, se voltou com raiva e disse:
—
O que foi?
O
homem esperou um momento, com os olhos desviados, mas, mesmo assim, fitando-o e sempre vendo. Depois riu de novo
do mesmo jeito. Ellen estremeceu, inquieta.
—
Quem é esse... esse... — A voz de Joe vibrava de indignação.
—
Veja como falas! — disse o homem, devagar.
Joe
se voltou para mim e disse, rapidamente:
—
Eddie, leva Ellen e Catherine para dentro. Ellen, vai com Eddie.
—
Vê como falas! — repetiu o homem.
Ellen
fez um pequeno ruído com a língua e com os dentes, mas não resistiu quando a
tomei no braço e a levei a uma porta lateral do hotel. Pareceu-me estranho que
se sentisse tão impotente a ponto de permitir, em silêncio, a luta iminente. Gritei
sobre o ombro:
—
Deixa disso, Joe. Vamos embora!
Ellen,
puxando-me pelo braço, nos fez entrar rapidamente.
Quando
estávamos presos nas portas giratórias, tive a impressão de que o homem descia
do cupê.
Dez
minutos depois, enquanto eu esperava as moças, no lado de fora do gabinete de
senhora, Joe Jelke e Jim Cathcart saíram do elevador. Joe estava muito pálido,
com os olhos pisados e vítreos, e manchas de sangue escuro na testa e no lenço
de seda. Jim trazia os chapéus de ambos na mão. Jim disse em voz baixa:
—
Atingiu Joe com a charneira de cobre. Joe ficou sem sentido durante um minuto
ou dois. Gostaria que mandassem um garoto de recado buscar arnica e
esparadrapo.
Era
tarde e o vestíbulo estava deserto. Sons metálicos da dança, embaixo, nos
chegavam a intervalo, como se alguém erguesse, de vez em quando, pesado
reposteiro e o deixasse cair de novo. Quando Ellen apareceu, levei-a
diretamente para baixo. Evitamos a comissão de recepção e fomos a uma sala
escura ornamentada com raquíticas palmeiras de hotel, onde os pares se sentavam
às vezes durante a dança. Ali contei o que acontecera. Disse ela,
surpreendentemente:
—
Foi culpa de Joe. Eu disse para não interferir.
Não
era verdade. Nada dissera. Apenas um sussurro de curiosa impaciência.
—
Fugiste na porta do fundo e desapareceste durante quase uma hora. Depois
apareceste com um camarada mal-encarado, que ria na cara de Joe!
—
Um camarada mal-encarado — ela repetiu, como experimentando o som das palavras.
—
E não era? Onde o descobriste, Ellen?
—
No trem. — Imediatamente pareceu lamentar o que dissera. — É melhor que não te
metas em coisas que não são de tua conta, Eddie. Vê o que aconteceu a Joe.
Fiquei
de boca aberta. A ver ali, sentada a meu lado, imaculadamente encantadora, com
o corpo desprendendo onda após onda de frescor e elegância e a ouvir falar
daquela maneira.
—
Mas o homem é um selvagem! Nenhuma moça estaria em segurança consigo. Usou uma
charneira de cobre contra Joe. Uma charneira de cobre!
—
E isso é assim tão ruim?
Perguntou
aquilo como faria a pergunta alguns anos antes. Finalmente me olhou. Na verdade,
queria uma resposta. Durante um instante foi como se tentasse reassumir uma
atitude que quase desaparecera. Depois se obstinou de novo. Digo se obstinou
porque eu começava a notar que, quando se referia àquele homem, as pálpebras
desciam um pouco, dissimulando algo.
Era
quando eu deveria ter dito algo,
suponho, mas, a despeito de tudo, não pude a fazer refletir. Estava demasiado
preso pelo encanto de sua beleza e sucesso. Começava até a achar desculpa para ela,
que talvez o homem não fosse o que parecia. Ou, talvez, de maneira mais
romântica, estivesse envolvida com ele a contragosto, para proteger outra
pessoa. Nesse momento, começaram a entrar pessoas na sala, que foram falar
conosco. Não podíamos conversar mais e assim entramos e cumprimentamos a
comissão de recepção. Depois a entreguei ao alegre e irrequieto mar da dança,
onde ela se moveu num remoinho, entre as agradáveis ilhas de guloseimas
coloridas postas sobre mesas e a brisa do sul dos instrumentos metálicos
soprando do vestíbulo. Depois de algum tempo, vi Joe Jelke sentado num canto, com
um pedaço de esparadrapo na testa, observando Ellen como se fosse ela quem o
abatera, mas não me dirigi a ele. Sentia-me esquisito, como me sinto quando
acordo depois de dormir uma tarde inteira, estranho e indisposto, como se algo tivesse
acontecido no intervalo que modificasse os valores de tudo, mas que eu não via.
A
noite escoou entre fases sucessivas de cornetas de papelão, quadros de amadores
e o relampaguear das lâmpadas fotográficas para jornais da manhã. Depois foi a
grande marcha e a ceia, e, cerca das 2h, alguns membros da comissão, vestidos
como compadres de revista, invadiram a festa e foi distribuído um jornalzinho
jocoso criticando os acontecimentos da noite. E durante todo o tempo, no canto
do olho, eu observava a cintilante orquídea no ombro de Ellen, enquanto se
movia de um lado a outro na sala. A observei, com pressentimento definido, até
os últimos grupos sonolentos encherem o elevador. Depois, oculta num grande
casaco de pele informe, saiu à noite clara e seca de Minesota.
II
Há
uma baixada intermediária na encosta de nossa cidade. Fica entre o bairro
residencial, no alto da colina, e o bairro comercial, no nível do rio. É uma
parte pouco conhecida da cidade. Dividida pelo declive em triângulo, e com
configurações estranhas, há nomes como Seven Corners, e não acredito que meia
dúzia de pessoas fosse capaz de desenhar um mapa correto daquela zona, embora
todos a atravessem de bonde, automóvel ou a pé duas vezes por dia. Embora fosse
uma zona comercial, seria difícil para mim determinar qual o gênero de negócio
exercido em sua atividade. Sempre havia longas filas de bondes esperando a
partida. Havia um grande cinema e muitos outros menores, com cartazes de Hoot
Gibson, cães adestrados e cavalos adestrados nas fachadas. Havia pequenas lojas
com quadros de "Old King Brady” e "The Liberty Boys of
'76" na vitrine, e bola de gude, cigarro e doce dentro. E, ao menos um
lugar definido, um vendedor de fantasia, que todos procurávamos ao menos uma
vez por ano. Houve uma época em minha mocidade na qual fiquei sabendo que num lado de certa rua
escura havia prostíbulo, e em toda a zona havia casa de penhor, joalheiro
barato, pequeno clube atlético, ginásio e salão de dança mais ou menos
barulhento.
Na manhã seguinte à festa do
clube Cotillion, acordei tarde e com preguiça, com a feliz sensação de que por
mais um ou dois dias não haveria capela nem aula. Nada a fazer além de esperar
outra festa noturna. O tempo estava límpido e claro, um desses dias que fazem a
gente se esquecer de como está frio, até que o rosto fica gelado, e os
acontecimentos da véspera pareciam apagados e muito distantes. Depois do almoço,
desci à cidade baixa a pé, através de uma neve ligeira e agradável, em pequenos
flocos que provavelmente cairiam durante toda a tarde, e estava mais ou menos
na metade daquela parte média da cidade (tanto quanto posso saber não há um
nome específico para ela), quando subitamente todas as ideias indolentes que eu
tinha na cabeça desapareceram e comecei a pensar seriamente em Ellen Baker.
Comecei a me preocupar com ela como nunca me preocupei com ninguém além de mim,
até então. Diminuí o passo, com o vago desejo de voltar à cidade alta, de procurá-la e falar-lhe. Depois me lembrei de
que estava num chá, e continuei meu caminho, mas, ainda mais que nunca,
pensando nela. Nesse momento, o caso se abriu de novo.
Nevava
e eram 4h de uma tarde de dezembro, quando há um começo de escuridão no ar e os
lampiões da rua principiam a se acender. Passei numa espelunca, que era uma
combinação de restaurante e salão de bilhar, com um braseiro cheio de
cachorro-quente na vitrine, e alguns vadios perambulando em volta da porta. As
luzes estavam acesas dentro. Não luzes brilhantes, mas apenas algumas lâmpadas
amarelas e mortiças no teto. E o clarão que lançavam no ar enfumaçado não era
claro o bastante para nos tentar a olhar para dentro. Quando eu passava,
pensando profundamente em Ellen o tempo todo, examinei no canto do olho o
quarteto de vadios. Não andara meia dúzia de passos rua abaixo, quando um me chamou,
não pelo nome, mas de maneira que era claramente dirigida a meus ouvidos.
Pensei que era um tributo prestado a meu sobretudo de pele e não prestei
atenção, mas, um momento depois, quem quer que fosse me chamou de novo, com voz
peremptória. Fiquei aborrecido e me voltei. Ali, no meio do grupo, a menos de
dez passos e me olhando com aquele mesmo meio sorriso de mofa, que dirigira a Joe
Jelke, estava o homem da cicatriz e de rosto fino da véspera.
Vestia
um sobretudo preto, bem cortado, abotoado até o pescoço, como se sentisse frio.
Tinha as mãos nos bolsos, usava chapéu de coco e botinas altas de abotoar.
Fiquei desnorteado e durante um momento hesitei, porém estava mais que tudo
furioso e, sabendo que era mais ligeiro com os punhos que Joe Jelke, dei um
passo em sua direção. Os outros homens não estavam me olhando. Não creio que me
viram. Mas eu sabia que aquele me reconhecera. Nada havia de casual em seu
olhar. Nenhum engano possível.
—
Aqui estou. O que pretendes fazer agora? — Pareciam dizer os olhos.
Avancei
outro passo e ele riu silenciosamente, mas com enorme desprezo, e recuou ao
meio do grupo. Eu falaria, não estava certo do que diria, mas, quando cheguei
junto, mudara de ideia e batera em retirada ou queria que eu o seguisse para
dentro, porque se afastara, e os três homens restantes observavam minha chegada
sem curiosidade. Eram todos do mesmo tipo, escaninhos, mas, ao contrário do
outro, mais brandos que truculentos. Não descobri malícia pessoal no olhar
coletivo que me lançaram. Perguntei:
—
Entrou?
Olharam
uns aos outros com ar desconfiança. Trocaram uma piscadela e, depois de uma
pausa perceptível, um disse:
—
Quem entrou?
—
Não sei o nome.
Houve
outra piscadela. Aborrecido e resoluto, passei por eles. Entrei no salão de
bilhar. Havia algumas pessoas junto a um balcão onde se servia a comida, e mais
algumas jogando bilhar, mas não estava entre os presentes.
De
novo hesitei. Se sua ideia era me arrastar a algum canto escuro do
estabelecimento, pois havia algumas portas meio abertas no fundo, eu precisaria
de reforço. Fui ao homem que estava atrás do salão.
—
Cadê o camarada que entrou ainda agora aqui?
Ficara
de sobreaviso imediatamente ou seria imaginação minha?
—
Qual camarada?
—
Magro, chapéu de coco.
—
Há quanto tempo?
—
Há um minuto.
Abanou
a cabeça de novo.
—
Não vi.
Esperei.
Os três homens que estavam na rua entraram e estavam alinhados a meu lado, no
balcão. Senti que todos me olhavam de maneira peculiar. Sentindo-me desamparado
e cada vez mais impressionado, virei as costas subitamente e saí. Um pouco a
diante, voltei-me de novo e olhei bem o local, de maneira que pudesse reconhecê-lo e localizá-lo outra vez. Na
próxima esquina, comecei a correr impulsivamente, encontrei um táxi diante do
hotel e mandei tocar de novo à cidade alta.
Ellen
não estava em casa. Senhora Baker desceu e conversou amigo. Parecia
inteiramente satisfeita e orgulhosa da beleza de Ellen e, ignorante de que algo
ia mal ou de que algo extraordinário acontecera na noite anterior, estava
contente porque as férias quase terminaram. Eram um esforço e Ellen não era
muito forte. Depois disse algo que me aliviou enormemente o espírito. Estimava
que eu tivesse aparecido, porque, naturalmente, Ellen gostaria de me ver e
havia tão pouco tempo. Ela voltaria às 8:30h, naquela noite.
—
Nesta noite! Pensei que era só depois de amanhã.
—
Ela visitará os Brokaw em Chicago. Querem-na para uma festa. Resolvemos isso
hoje. Irá com as meninas Ingersoll nesta noite.
Fiquei
tão contente que só com dificuldade pude me abster de apertar sua mão. Ellen
estava salva. Fora nada aquilo tudo. Apenas um momento da mais casual aventura.
Eu me sentia um idiota, mas compreendi o quanto me importava com Ellen e quão
pouco poderia suportar que algo terrível lhe acontecesse.
—
Voltará a casa logo?
—
A qualquer momento. Acabou de telefonar do clube universitário.
Eu
disse que voltaria mais tarde. Morava apenas duas portas adiante, e queria
ficar sozinho. Fora me lembrei de que não tinha chave da porta. Então fui à
entrada de serviço dos Baker, para pegar um atalho que usávamos em meninos no
pátio interno. Estava ainda nevando, mas os flocos eram maiores agora, depois
de escurecer. Tentando localizar a calçada sepultada, notei que a porta
traseira da casa dos Baker estava escancarada.
Nem
sei por que fiz meia-volta e entrei na cozinha. Houve tempo em que eu conhecia
todas as empregadas dos Baker pelos nomes. Já não era assim, mas todas me
conheciam e pude notar uma súbita suspensão quando entrei. Não só uma
interrupção de conversa, mas uma espécie de modo expectante que se apoderou
delas. Começaram a trabalhar precipitadamente, faziam movimentos desnecessários
e muito barulho, as três. A arrumadeira me olhou assustada e subitamente
percebi que estava esperando para entregar outro recado. Empurrei-a para dentro
da despensa.
—
Sei tudo a esse respeito. É um caso muito sério. Devo ir à senhora Baker, agora
ou fecharás e aferrolharás aquela porta?
—
Nada digas à senhora Baker, senhor Stimson!
—
Então não quero que senhorita Ellen seja incomodada. Se for, saberei.
E
resmunguei uma ameaça terrível de ir a todas as agências de emprego
providenciar para que nunca mais arranjasse colocação na cidade. Estava intimidada
quando saí. Não se passou um minuto antes que a porta de trás fosse fechada e
aferrolhada em minhas costas.
Simultaneamente,
ouvi um grande carro parar à porta da frente, com as correntes gemendo na neve
fofa. Trazia Ellen de volta. Entrei para me despedir.
Joe
Jelke e dois outros rapazes estavam presentes e nenhum conseguia tirar os olhos
de cima dela, nem para me dizer olá. Ela tinha uma dessas delicadas peles
róseas frequentes neste rincão de nossa terra e que é linda até que pequenas
veias surgirem, cerca dos 40 anos. Agora, corada de frio, era uma orgia de
delicados tons carmesins, como alguns cravos. Ela e Joe chegaram a uma espécie
de reconciliação. Ao menos ele se deixara levar muito longe pelo amor, para se
lembrar de algo da noite anterior. Mas vi que, embora ela risse bastante, não
prestava atenção a ele nem a outro. Queria que saíssem, para receber o recado
da cozinha, mas eu sabia que o recado não chegaria, que estava salva. Falou-se
da dança Pump and Slipper em New
Haven e da Princeton Prom, e, depois, em diferentes estados de espírito. Nós
quatro saímos e nos separamos rapidamente fora. Fui para casa deprimido e
fiquei durante uma hora dentro de um banho quente, pensando que as férias se
acabaram para mim, agora que ela se fora, sentindo ainda mais profundamente que
na véspera que ela estava fora de minha vida.
Mas
algo me escapava. Algo mais a fazer, algo que eu esquecera no meio dos
acontecimentos da tarde, prometendo-me voltar a ela só para verificar que me
escapara. Associei-o vagamente à senhora Baker e agora me parecia lembrar que
surgira algures durante a conversa que tivera com ela. Em minha alegria a
respeito de Ellen, me esquecera de fazer a pergunta sobre algo que ela dissera.
Os
Brokaw — era isso — que Ellen visitaria. Eu conhecia bem Bitt Brokaw. Estava em
minha classe em Yale. Então me lembrei e subitamente me sentei na banheira, os
Brokaw não estavam em Chicago naquele Natal. Estavam em Palm Beach!
Gotejando,
pulei fora da banheira, joguei sobre os ombros um roupão insuficiente e me
precipitei ao telefone, em meu quarto. Consegui a ligação depressa, mas Ellen
já seguira à estação.
Felizmente,
nosso carro estava na garagem, e enquanto eu, ainda molhado, enfiava,
apressado, a roupa, o motorista o trouxe até a porta. A noite estava fria e
seca, e levamos tempo para chegar à estação na neve endurecida e áspera. Sentia-me
esquisito e incerto ao me lançar, assim, à aventura, mas um pouco mais
confiante, quando a estação surgiu clara e nova contra o ar escuro e frio.
Durante cinquenta anos minha família fora proprietária do terreno no qual ela
fora construída e aquilo fazia minha temeridade parecer muito bem agora. Havia
sempre a possibilidade de que eu estivesse me arriscando num terreno onde os
anjos não se arriscariam, mas aquela sensação de ter um sólido apoio no passado
me dava vontade de virar um louco. Aquilo tudo estava terrivelmente errado.
Qualquer ideia que eu pudesse ter de que era inofensivo caía agora. Entre Ellen
e alguma vaga catástrofe opressiva estava eu, ou então a polícia e um
escândalo. Não sou moralista. Havia outro elemento ali, sombrio e assustador, e
eu não queria que Ellen o enfrentasse sozinha.
Há
três trens que partem de Saint Paul a Chicago, todos largando com diferença de
poucos minutos depois das 8:30h. O seu era o Burlington, e, quando eu ia
correndo na estação, vi a grade sendo fechada e a luz acima se apagar.
Entretanto, eu sabia que tinha um salão com as meninas Ingersoll, porque a mãe
mencionara ter comprado o bilhete, e assim estava, literalmente falando,
trancafiada até o dia seguinte.
A
grade do CM de Saint Paul estava aberta na outra extremidade e corri e o
peguei. Mas me esquecera de algo suficiente para me deixar acordado e
preocupado metade da noite. Aquele trem chegava a Chicago dez minutos depois do
outro. Ellen tinha todo aquele tempo para desaparecer dentro de uma das maiores
cidades do mundo.
Dei
ao porteiro um telegrama à minha família, para ser mandado de Miluauque, e às
8h da manhã seguinte corri apressadamente ao longo de enorme fila de
passageiro, tropeçando nas malas arruinadas no corredor, e me precipitei porta
afora, quase com um salto sobre o porteiro. Durante um momento, a confusão de uma
grande estação, os sons retumbantes, os ecos, e a balbúrdia das sinetas e da
fumaça me fez parar, indeciso.
Depois
me precipitei à saída e à única esperança que tinha de a encontrar.
Calculei
bem. Estava de pé junto ao balcão do telégrafo, mandando sabe lá que negra mentira
à mãe. A expressão, ao me ver, foi uma mescla de terror e espanto. Havia
esperteza, também. Estava pensando depressa e gostaria de se afastar de mim,
como se eu não estivesse ali, e cuidar dos seu negócio, mas não podia. Eu
representava muito em sua vida. Assim ficamos parados, silenciosos, nos
observando mutuamente e pensando. Após um minuto eu disse:
—
Os Brokaw estão na Flórida.
—
Foi uma gentileza tua fazer uma viagem tão grande para dizer isso.
—
Já que o verificaste também, não achas que seria melhor voltar à escola?
—
Por favor, deixa-me, Eddie!
—
Irei à Nova Iorque contigo. Resolvi voltar mais cedo também.
—
Farias melhor me deixando em paz
Os
olhos adoráveis se contraíram e o rosto tomou uma expressão de resistência de
animal mouco. Fez um esforço visível, a astúcia foi escondida por ele, depois
ambos desapareceram e no lugar estava um alegre sorriso tranquilizador que
poderia fazer tudo, menos me convencer.
—
Eddie, seu tolo! Não achas que já tenho idade para me cuidar?
Não
respondi.
—
Encontrarei um homem, compreendas. Desejo apenas vê-lo hoje. Já comprei
passagem ao leste para hoje na tarde. Se não me acreditas, podes ficar com
minha maleta.
—
Acredito.
—
O homem não é alguém que conheças. E estás ficando cacete e importuno.
—
Sei quem é o homem.
De
novo perdeu o domínio do rosto. A terrível expressão voltou a transparecer e
falou quase com um rugido:
—
É melhor que me deixes em paz.
Tomei
a fórmula de sua mão e escrevi um telegrama explicativo à mãe. Depois me voltei
a Ellen e disse um pouco asperamente:
—
Tomaremos o trem das 5h ao leste juntos. Portanto, passarás o dia comigo.
O
simples som de minha voz, dizendo aquilo tão enfaticamente, me deu coragem, e
acho que a impressionou também. De qualquer maneira, ela se submeteu, ao menos
temporariamente, e foi comigo, sem protestar, enquanto eu comprava passagem.
Quando
comecei a reunir os fragmentos daquele dia, uma espécie de confusão começou,
como se minha memória não quisesse soltar algo dele ou a consciência não
quisesse deixar passar algo dele. Houve uma manhã clara e agitada durante a
qual giramos num táxi e fomos a uma loja de departamentos. onde Ellen disse que
queria comprar alguma coisa e, depois, tentou escapulir por uma porta do fundo.
Durante una hora, tive a sensação de que alguém nos seguia ao longo da alameda
da margem do lago num táxi, e tentei
surpreendê-los voltando-me depressa ou olhando subitamente no espelho do
motorista, mas não consegui ver ninguém. Quando me voltei, pude ver que o rosto
de Ellen estava contraído num sorriso triste e contrafeito.
Durante
toda a manhã, soprou um vento áspero, gelado, vindo do lago, mas quando fomos
ao Blackstone, para almoçar, caía uma neve ligeira e conversamos quase
naturalmente sobre nossos amigos e coisas triviais. Subitamente o tom mudou. Ela
ficou séria e me olhou nos olhos, de frente e com serenidade:
—
Eddie, és o amigo mais velho que tenho e não te deve ser muito difícil confiar
em mim. Se eu te prometer, sinceramente, sob palavra de honra, pegar o trem das
cinco, me deixarás algumas horas sozinha nesta tarde?
—
Por quê?
—
Bem... — hesitou e deixou a cabeça pender um momento. — Acho que todos têm o
direito de se despedir.
—
Quer dizer adeus àquele...?
—
Quero — disse, apressadamente. — Apenas algumas horas, Eddie, e prometo
sinceramente que estarei no trem.
—
Bem, suponho que não poderia haver grande mal em duas horas apenas, se
realmente queres te despedir.
Levantei
a vista de repente e surpreendi uma expressão de tão intensa astúcia no rosto,
que me escabreei ante ela. Tinha o lábio superior encrespado e os olhos estavam
contraídos de novo. Não havia vislumbre de franqueza nem de sinceridade em todo
o rosto.
Discutimos.
Seus argumentos eram vagos, e um pouco ásperos e reticentes os meus. Não mais
me deixaria adular para cair em alguma fraqueza, ou ser contaminado com... Havia um contágio diabólico no ar. Continuou
tentando dar a atender, sem prova convincente, que tudo estava bem. Mas estava
possuída demais pela coisa, fosse o que fosse, para arquitetar uma história
real, e queria se agarrar a qualquer corrente de ideia que pudesse se formar em
minha mente a trabalhar até onde valesse a pena. Depois de cada sugestão tranquilizadora,
olhava-me intensamente, como se esperasse que eu me espraiasse em algum
confortador sermão moral com o costumeiro doce no fim, que nesse caso seria sua
liberdade. Mas eu a estava fatigando um pouco. Duas ou três vezes, faltou apenas
um segundo toque de pressão para levar ao ponto de lágrima, o que,
naturalmente, era o que eu queria, mas não parecia possível. Quase que a tinha,
quase possuía sua atenção íntima, e então me escapava.
Eu
a fiz entrar cruelmente num táxi cerca das quatro horas e partimos à estação. O
vento estava forte outra vez, com um toque de neve, e as pessoas na rua,
esperando os ônibus ou bondes pequenos demais para levar todo mundo. Pareciam
frias, perturbadas e infelizes. Tentei pensar como éramos afortunados em estarmos
bem instalados na vida e termos quem cuidasse de nós, mas todo o mundo quente e
respeitável, do qual eu fazia parte na véspera, se desprendera de mim. Havia
algo que arrastávamos, que era o inimigo e que era o oposto de tudo aquilo.
Estava nos carros que vinham atrás, nas ruas onde passávamos. Com ligeiro toque
de pânico, imaginei se eu caía no mesmo estado de espírito de Ellen. A fila de
passageiro esperando embarcar no trem estava tão afastada de mim como se fossem
pessoas doutro planeta, mas era eu quem me afastava e as deixava atrás.
Meu
leito ficava no mesmo vagão que sua cabine. Era um carro de estilo antigo, com
as luzes um pouco escuras, tapetes e estofos cheios do pó de outras gerações.
Havia uma meia dúzia de outros passageiros, mas não me impressionaram de modo
especial, exceto que pareciam compartilhar a irrealidade que eu começava a
sentir ao redor. Entramos na cabina de Ellen, fechamos a porta e nos sentamos.
De
repente, passei os braços em sua volta e a puxei a mim, com aquela ternura que
eu conhecia, como se fosse uma menina, como era. Resistiu um pouco, mas depois
de um momento se submeteu e se deixou ficar, tensa e rígida, em meus braços. Eu
disse, desesperado:
—
Ellen, pediste para eu confiar em ti. Tens muito mais razão para confiar em
mim. Não ajudaria a te livrar de tudo isso se me contasses um pouco da verdade?
—
Não posso — disse ela muito baixo — Isto é, nada tenho a dizer.
—
Encontrou esse homem no trem quando ias para casa e te enamoraste.
—
Não sei.
—
Digas, Ellen. Tu te apaixonaste por ele?
—
Não sei. Por favor, deixa-me sozinha.
—
Chama como quiseres. Ele tem uma espécie de poder sobre ti. Está querendo te
usar. Está tentando obter algo de ti. Não está apaixonado.
—
O que importa? — disse com voz fraca.
—
Importa. Em vez de tentar lutar contra essa coisa, tentas lutar contra mim. Eu
amo, Ellen. Ouves? Estou dizendo assim, de repente, mas isto não é novo em mim.
Eu te amo.
Olhou-me
com um esgar no rosto gentil. Era uma expressão que eu vira algumas vezes em
homens teimosos que não querem ser levados para casa. Mas era humana. Eu estava
chegando até ela, vagamente e de muito longe; porém, mais que antes.
—
Ellen, quero que me respondas a uma pergunta: ele vai estar neste trem?
Ela
hesitou. Depois, um momento tarde demais, abanou a cabeça.
—
É bom que tenhas cuidado, Ellen. Perguntarei mais uma coisa e quero que faças
muita força para responder. Vindo ao oeste, quando foi que esse homem entrou no
trem?
—
Não sei — disse com esforço.
Exatamente
naquele momento, percebi, com a inquestionável certeza reservada aos fatos, que
ele estava no lado de fora da porta. Ellen também sabia disso. O sangue fugiu
do rosto e aquela expressão de perspicácia animal estava voltando. Escondi a
cara nas mãos e tentei pensar.
Devemos
ter ficado ali sentados, sem palavra, durante bem mais de uma hora. Eu tinha a
consciência das luzes de Chicago, depois as de Englewood e as dos subúrbios sem
fim, ficando a trás, e em seguida não havia mais luz e ganhamos as escassas
planícies de Illinois. O trem parecia se encolher sobre si mesmo. Dava a
impressão de estar sozinho. O porteiro bateu à porta e perguntou se podia abrir
a cama, eu disse que não e ele foi embora.
Depois
de momento, eu me convenci de que a luta que inevitavelmente se travaria não
estava além do que ainda me restava de sanidade, de fé na essencial retidão das
coisas e das pessoas. Que o propósito daquele indivíduo era o que chamamos de
criminoso eu tinha como certo, mas não havia necessidade de lhe atribuir uma
inteligência que pertencia a um plano humano mais alto ou inumano. Era ainda
como um homem que eu o considerava, e tentava atingir a essência, o interesse,
o que em si tomava o lugar de um coração compreensível, mas acho que quase
sabia o que encontraria quando abrisse a porta.
Quando
me levantei, Ellen não pareceu para me ver. Estava encolhida num canto, olhando
fixamente a diante, com uma espécie de película sobre os olhos, como se
estivesse num estado de alienação corporal e psíquica. Deitei-a, meti dois
travesseiros sob a sua cabeça e atirei meu sobretudo de pele sobre os joelhos.
Depois, ajoelhei a seu lado, beijei as
duas mãos, abri a porta e saí ao corredor.
Fechei
a porta atrás de mim e fiquei encostado nela durante um minuto. O carro estava
escuro, salvo as duas luzes do corredor, uma em cada extremidade. Não havia som
além do gemer dos engates e do ligeiro clique dos trilhos e o ressonar forte de
alguém próximo da ponta do carro. Depois dum instante, percebi o vulto de um
homem parado perto do refrigerador de água, no lado de fora do salão de fumar,
com o chapéu de coco na cabeça, a gola do sobretudo levantada em volta do
pescoço como se tivesse frio, as mãos metidas nos bolsos. Quando o vi, ele se
voltou e entrou no salão de fumar. Eu o segui. Estava sentado no canto mais
afastado do comprido banco de couro. Tomei a cadeira de braço perto da porta.
Quando
entrei, acene, com a cabeça e ele respondeu com um daqueles horrendos risos
mudos. Mas, nessa vez, se prolongou. Parecia durar sempre. Mais para o
interromper, perguntei com voz que tentei mostrar natural.
—
De onde és?
Parou
de rir e me olhou perscrutadoramente, tentando descobrir meu jogo. Quando
resolveu responder, a voz era abafada como se falando através duma echarpe de
seda, e parecia vir de muito longe.
—
Sou de St. Paul, Jack.
—
Vieste fazer uma visita ao lar?
Fez
que sim com a cabeça. Depois tomou uma respiração funda e falou com voz áspera
e ameaçadora:
—
Será melhor que desembarques em Forte Wayne, Jack.
Ele
estava morto e no Inferno. Estivera morto todo o tempo, menos aquela força que
circulara nele, com sangue nas veias,
levando-o até St. Paul e de volta, e que o abandonava agora. Um
novo perfil começava a surgir através da figura palpável que derrubara Joe
Jelke.
Falou
de novo, com uma espécie de esforço arquejante:
—
Desembarcarás em Forte Wayne, Jack, ou te farei desaparecer.
Mexeu
a mão dentro do bolso do sobretudo e me mostrou a forma dum revólver.
Abanei
a cabeça.
—
Não podes me tocar. Sabes que sei.
Seus
terríveis olhos me percorreram rapidamente, tentando descobrir se eu sabia.
Depois deu um rugido e fez um gesto, como se fosse se levantar com um pulo.
Exclamou, impetuosamente:
—
Sai daqui antes que eu te jogue na janela, Jack!
O trem reduziu a marcha para parar em Forte
Wayne e a voz ressoava alta no relativo silêncio, mas ele não se moveu do
banco. Estava fraco demais, creio, e ficamos sentados, fitando-nos, enquanto os
carregadores passavam subindo e descendo no lado de fora da janela, experimentando
os freios e as rodas, e a locomotiva resfolegava na frente. Ninguém entrou em
nosso carro. Depois de um momento, o porteiro fechou a porta da plataforma e
passou de volta no corredor, e deslizamos a fora da luz baça e amarelenta da
estação e para dentro da profunda escuridão.
O
que me lembro depois deve ter se estendido no espaço de cinco ou seis horas, embora
me volte à memória como algo sem existência no tempo, que duraria cinco minutos
ou um ano. Começou um assalto lento, calculado, contra mim, mudo e terrível.
Sentia o que só posso chamar de sensação estranha se apoderando de mim,
semelhante à sensação que sentira de tarde, porém mais profunda e mais intensa.
Nada mais que a sensação de ser arrastado a fora de mim, e segurei os braços da
cadeira convulsivamente como para me agarrar a um objeto do mundo dos vivos. Às
vezes, sentia-me sendo levado com um
empurrão. Havia quase um agradável alívio naquilo, uma sensação de
despreocupação.
Então,
com violento esforço de vontade, de novo eu tomava impulso para dentro do
salão.
De
repente compreendi que, a partir de certo momento, deixara de odiá-lo, deixara
de me sentir violentamente contrário a ele. Ao perceber isso, fiquei frio e o
suor me inundou a testa. Estava contornando minha repulsa como contornara a de Ellen
vindo no trem ao oeste. E era justamente aquela força, que obtinha roubando-a
dos outros, que o levara ao ponto de violência concreta em St. Paul, e
que, diminuindo e se esgotando, ainda o mantém lutando.
Deve
ter pressentido aquela fraqueza de meu coração, porque falou logo, em voz
baixa, inexpressiva, quase gentil:
—
É melhor ir embora agora.
—
Oh, não irei! — forcei-me a dizer.
—
Como queiras, Jack.
Queria
dizer que era meu amigo. Sabia o que se passava comigo e queria ajudar. Tinha
pena de mim. Era melhor que eu me retirasse antes que fosse tarde demais. O
ritmo do ataque era entorpecente como uma canção. Era melhor que eu me
retirasse E o deixaste tomar Ellen. Com um pequeno grito, endireitei-me na
cadeira. Eu disse, com voz trêmula:
—
O que pretendes dessa moça? Tornar sua vida um inferno!
Seu
olhar tinha um fulgor de surpresa muda, como se eu estivesse castigando um
animal que não tinha consciência da falta cometida. Por um instante, fraquejei.
Depois continuei, cegamente:
—
Tu a perdeste. Ela depositou confiança em mim.
De
repente, a sua atitude ficou ameaçadora, de raiva, e ele exclamou, com voz
gélida:
—
És um mentiroso!
—
Confia em mim. Não podes tocar nela. Está salva!
Ele
se controlou. O rosto ficou meigo e senti que aquela curiosa fraqueza e
indiferença se apoderavam de mim outra vez. De que adiantaria tudo aquilo? E,
então, num lampejo de intuição, compreendi a verdade:
—
Não te resta muito tempo — eu disse. — Morreste ou foste morto não longe daqui!
Então
vi o que não vira antes: a sua testa estava perfurada por um pequeno buraco
redondo como o deixado por uma escápula grande para quadro numa parede de
estuque.
—
Agora te afundas. Só conseguiste algumas horas. A viagem para casa acabou.
Seu
rosto se contraiu, perdeu toda aparência humana, morta ou viva. Ao mesmo tempo,
o salão se encheu de ar frio e, com um ruído que era algo entre um paroxismo de
tosse e um horrível acesso de riso, ficou em pé, exalando vergonha e blasfêmia.
Gritou:
—
Verás! Eu te mostrarei!
Deu
um passo em minha direção, depois outro, e foi exatamente como se uma porta
estivesse aberta atrás dele, escancarada sobre incomensurável abismo de treva e
corrupção. Houve um grito de agonia mortífera, vindo de dele ou de algum lugar
à sua retaguarda. Abruptamente, a força abandonou-o
em longo suspiro soluçado e ele desabou ao chão.
Não
sei quanto tempo fiquei ali sentado, ofuscado de horror e exaustão. A seguinte
coisa de que me lembro é do sonolento porteiro engraxando sapato no outro lado
do salão. Fora da janela, os fornos de aço de Petersburgo, quebrando a
monotonia da planície. Também algo vago demais para ser um homem, pesado demais
para ser uma sombra noturna, havia uma forma estendida no banco. Exatamente
quando a percebi, ela se desvaneceu.
Alguns
minutos mais tarde abri a porta da cabine de Ellen, que dormia onde eu a
deixara. O adorável rosto estava pálido e descorado, mas jazia naturalmente,
com as mãos relaxadas e a respiração regular e clara. O que a possuíra se fora,
deixando-a exausta, mas de novo na posse de si mesma.
Eu
a ajeitei um pouco mais confortavelmente, cobri com cobertor, apaguei a luz e
saí.
III
Quando
voltei para casa, nas férias da Páscoa, a primeira coisa que fiz, digamos
assim, foi procurar o salão de bilhar perto de Seven Corners. O homem da caixa
registradora muito naturalmente já não se lembrava de minha apressada visita de
três meses atrás.
—
Procuro uma pessoa que acho que costumava vir muitas vezes, há algum tempo.
Descrevi
o homem bastante cuidadosamente. Quando acabei, o caixa chamou um camaradinha
que parecia um jóquei e que estava sentado ali perto com o ar de quem tinha
algo muito importante a fazer, mas de que não conseguia se lembrar.
—
Ei, Shorty, conversa com este sujeito. Acho que está procurando Joe Varland.
O
homenzinho me dirigiu um agudo olhar de suspeita. Aproximei-me e me sentei
junto dele.
Disse,
a contragosto:
—
Joe Varland morreu no inverno passado, meu amigo.
Eu
o descrevi de novo. O sobretudo, o riso, a expressão habitual dos olhos.
—
É Joe Varland mesmo quem procuras, mas morreu.
—
Quero saber algo a respeito dede.
—
O que queres saber?
—
Por exemplo, o que fazia.
—
Como eu saberia?
—
Olha aqui! Não sou da polícia. Quero apenas alguma informação sobre os hábitos.
Está morto e não lhe poderei fazer mal. E isso não passará de mim.
—
Bem... — hesitou, olhando-me de cima a baixo. — Gostava muito de viajar.
Meteu-se numa briga na estação de Petersburgo e uma bala o atingiu.
Acenei
com a cabeça. Peças esparsas daquele jogo de paciência começavam a se ajuntar
em minha cabeça.
—
Por que andava tanto em trem?
—
Como eu saberia, camarada?
—
Se dez dólares te ajudarem, quero ser informado sobre tudo.
—
Bem... — disse Shorty, relutantemente. — Tudo o que sei é que costumava dizer
que trabalhava os trens.
—
Trabalhava os trens?
—
Tinha uma especialidade sobre a qual não gostava de falar muito. Costumava
trabalhar as moças que viajavam sozinhas em trem. Nunca alguém soube grande
coisa a esse respeito. Era um fulano muito fechado em copa, mas às vezes
aparecia aqui, cheio da grana, e dava a entender que era o lucro do negócio.
Agradeci,
dei os dez dólares e saí muito pensativo, sem mencionar, àquele fulano que Joe
Varland fizera a última viagem à terra natal.
Ellen
não veio ao oeste nas férias da Páscoa. Mesmo que viesse eu não lhe daria a
informação. Ao menos, eu a vi quase todos os dias durante este verão e sempre
nos arranjamos para conversar sobre tudo, exceto aquele assunto. No entanto, às
vezes fica calada sem motivo, quer ficar muito junto a mim e sei o que vai em
seu espírito.
Naturalmente
deixará a escola neste outono. E ainda tenho mais dois anos em New Haven. Assim
mesmo as coisas já não parecem tão improváveis quanto pareciam há alguns meses.
Ela me pertence, de certa maneira. Mesmo se eu a perder, ela me pertence. Quem sabe?
De qualquer maneira, estarei sempre perto.
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