A ALMA AINDA INTACTA - Conto de Ficção Científica - Flávio de Souza
A
ALMA AINDA INTACTA
Flávio
de Souza
Não.
Não era assim que deveria ser...
Não
havia verde em nossa terra. Não havia azul no firmamento. Nenhuma brisa vinda
da serra, somente a dor no ar cinzento. Até que um dia tudo mudou. Canções
antigas foram lembradas. Tal qual um sonho que se põe real, a esperança fora
renovada. O fim definitivo para todo o mal, uma nova vida com a sua chegada...
Tudo
por conta da antiga lenda sobre a criança desamparada. Com seus fios dourados
como o antigo sol, e suas vestes em tons vivos e encarnados. Seria ela a
libertadora? Que poria um fim à escravidão das máquinas? A derrocada da
robótica opressora? A alma humana ainda intacta?
Dessa
certeza não havia quem duvidasse, e à fortaleza ela foi levada. Da aspereza da
vida dura, aos poucos ela fez com que nada restasse. Do solo estéril a água
brotou, e correu farta pelo descampado. Da aridez a vida germinou, e quem tinha
fome foi alimentado. Não tardou para que as boas novas se espalhassem, e aos
sensores cibernéticos chegassem. A esperança dos seres de carbono era uma
afronta, uma diretriz básica a ser computada. Uma ameaça às baterias vivas
amedronta, e como tal deve ser rejeitada. Muitos séculos já tinham
transcorrido, desde que o metal sobrepujara a carne. O tempo dos homens havia
sumido, desde o último grande desarme. Os poucos que resistiam rígidos se
entregaram à cruel verdade. Na equação da nova realidade, os valores se
mostravam invertidos: uma gota de óleo queimado valia mais do que o sangue
derramado.
Mas
os homens agora não estavam sós, a alma intacta os acompanhava. Com bravura
desatariam os nós, que a cada ser vivo torturava. Para cada fruto que a criança
fez crescer, por cada hortaliça que ela fez brotar, pela luz mais branda do
morto amanhecer, pelo leite fresco das parcas cabras. Por cada dádiva que lhes
era negada, eles arrancariam um parafuso inimigo. Pelo sorriso da pequena
amada, enfrentariam o composto de aço mais temido...
Não
tardou até a investida final, a mais devastadora e jamais vista. Reluzentes
máquinas sincronizadas aguardavam o sinal, como uma tela pela mão do artista...
Do
cinza ao negro, o céu migrou. O estrondo de um trovão foi ouvido.
Como
era possível se há muito tudo terminou? Não havia mais chuva naquele mundo
perdido...
O
impossível agora acontecia. Mesmo sem nuvens o céu chorava. A menininha os
braços erguia, e comandava a água derramada. Em segurança as pessoas se
mantinham protegidas sob telhados de acetato. Pois as lágrimas que de longe
vinham, derretiam o metal ao menor contato.
Os
processadores tentavam entender. Códigos binários e informações travadas.
Nenhuma alavanca conseguia se mover. Roldanas e engrenagens emperradas. Luzes
piscavam em intermitência muda. A fumaça fétida empesteava a planície. Os
malditos suplicavam por ajuda, em cada célula artificial de sua metálica
superfície.
Os
portões da fortaleza se abriram. Um exército com a vingança em mente. Ancinhos
e facões surgiam. Ninguém seria bateria viva novamente. Uma vez mais carne e
aço se tocaram. Como a história contada de pai para filho. Mas dessa vez as
máquinas não revidaram, foram arrancadas de vez do trilho.
O
ácido derretera as placas. A fúria humana destroçava os fios. O sangue negro
apagava as marcas deixadas pelos rubros rios. Naquele dia, o último da
escravidão, o céu se abria num imenso clarão. A redoma enevoada criada pelas
máquinas se dissipava como um pesadelo ao despertar. Um amontoado de ferro
retorcido era tudo que restava, um sonho melhor do que se poderia esperar.
A
profecia se confirmara. As antigas escrituras prosperaram. A menina dos cabelos
aloirados transformara a vida daqueles que nela acreditaram.
A
alegria era tamanha que eles demoraram a perceber. Se não fora das nuvens, de
onde vieram as gotas sagradas? O céu limpo voltou a escurecer, pelo bailar de
plataformas achatadas. Compostos orgânicos vivos e itinerantes ligados por
telepatia a uma amostra ilusória. Uma falsa esperança criada a partir da
história. O suco gástrico que derretera as máquinas se assemelhava ao expelido
pela boca da criança. Com sofreguidão, sobre a carne fresca ela avança.
Em
poucos minutos tudo devorado e digerido. Algo selvagem, inominável. Nem mesmo
os robôs teriam agido de maneira tão vil e abominável.
A
energia consumida sobe pelo ar, pelo toque que não se pode ver. As plataformas
vivas se movem em busca de outro lugar, pois elas precisam comer.
A
velha fábrica de conversão energética ainda expele uma densa fumaça, o
resquício do que sobrara das baterias humanas. Sobre a pilha de inútil sucata,
a imagem que manipula e engana. A simbionte deixa escapar uma visão que
vislumbrara em seus ensaios neurais. De um monte elevado ela deixa voar um
balão em dias que já foram normais...
Não.
Não era assim que deveria ser...
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