O APARELHO DE VISÃO DA ALMA - Conto Clássico de Terror e FC - Anônimo do início do séc. XX

 



O APARELHO DE VISÃO DA ALMA

Anônimo do início do séc. XX

 

"No início, uma sombra indistinta parecia formar-se justamente acima do corpo, assumindo rapidamente os contornos da forma humana. As feições assemelhavam-se às da morta. O ser delicado, claro e etéreo flutuou suavemente no ar por um momento e, depois, como se algo o atraísse, moveu-se como uma massa de vapor em direção a uma janela semiaberta".

Excerto da confissão do Professor Berrich.

 

Adolf Berrich, um maníaco macilento, foi capturado pelo xerife e sua patrulha armada no mês passado, na pradaria, a nove milhas de Colorado Springs, Colorado. Para o médico do Condado de Gaol, aonde foi inicialmente conduzido, o preso tornou-se imediatamente um objeto de intenso interesse ao revelar-se um estudioso de física e química avançadas.

Informações fragmentárias indicavam, ainda, que o recém-capturado havia fugido de Boston, Massachusetts; que era o professor Adolph Berrich e que tinha matado a sua própria esposa no interesse da ciência. De uma maneira incoerente, ele descreveu uma experiência que realizara com uma tela fluorescente, raios ultravioletas e outros aparelhos, além de uma alma humana flutuante.

As declarações de Berrich eram tão notáveis que realizaram uma busca na caverna, em que ele tinha levado uma vida de eremita durante anos, na esperança de que algo mais tangível pudesse ser encontrado do aparelho de visão da alma, a que ele se referira tantas vezes. 

Os pesquisadores não encontraram nada de importante, a não ser um muito longo manuscrito, por vezes bastante ilegível. Malgrado o documento não esteja assinado, o seu autor, com toda probabilidade, é o professor Berrich, pois relata, de forma ligeiramente menos fragmentária, os detalhes da sinistra experiência científica na qual reside, para sempre, a mente do maníaco.

Considerado isoladamente, o curioso manuscrito do professor Berrich pode ser categorizado como um documento sem qualquer fundamento, aparentemente destituído de valor, e merece ser descartado como um simples registo de delírios inconsequentes de um lunático. Mas assume uma enorme importância quando articulado às experiências que acabam de ser concluídas pelo professor Elmer Gates, cientista de Washington. Com o emprego de raios ultravioletas, um fluoroscópio e outros aparelhos, que Berrich descrevia incansavelmente, o professor Gates afirma ter repetido, dia após dia, a experiência de visualização da alma referida pelo louco professor Berrich. Ele utilizou um rato moribundo no bem-sucedido teste final, detectando, conforme declarou, uma sombra que passou por uma tela especialmente preparada e desapareceu quando o pequeno animal morreu.

Berrich afirma que viu a alma da sua própria esposa na sua experiência. A descoberta conduzida pelo cientista de Washington indica que não era impossível a Berrich realizar o prodígio.

 

A INCRÍVEL CONFISSÃO DE BERRICH

 

“Assim, pareceu-me que o que mais valeria nesta terra seria descobrir se existe — ou não — a vida após a morte. A minha formação em ciências levou-me naturalmente à investigação científica, mas durante anos os meus resultados foram absolutamente negativos. 

Então, anos atrás, convenci-me de que a ciência não tinha como solucionar a questão — e, na verdade, não naquela época. Deixei os Estados Unidos e passei vários anos em outros países. E mergulhei em todas aquelas relíquias de superstição conhecidas como artes negras.

Sete anos depois, apaixonei-me em Paris e casei-me com uma garota fútil e linda, muito mais nova do que eu. Resoluto, prometi desistir das minhas ideias tresloucadas e viver apenas para o presente, como todos os animais e a maioria das pessoas fazem.

Fomos muito felizes por seis meses, os quais passamos na Europa. Então, o meu velho desejo revisitou-me.

Todas as noites, a minha mulher ajoelhava-se ao lado da cama e orava. No início, ela rezava em voz alta pelos seus pais falecidos, por ela mesma e por mim. Não adiantava argumentar com ela que não existem evidências confiáveis da existência de uma alma, e que o além é apenas mito inventado por mentes simplórias. Ela teve de admitir a força dos meus argumentos, não ofereceu nenhum em troca, e continuou com as suas orações.

Assim que a oração terminou, ela caiu rapidamente no sono. Eu, porém, estava condenado a seguir até a madrugada a cadeia de dúvidas e pistas geradas pelas suas orações.”

 

Neste ponto, várias linhas são parcialmente apagadas pelas intempéries, mas o sentido torna-se evidente quando lidas as palavras restantes:

 

“A partir daquele momento, uma ideia me subjugou. Uma ideia fixa, como dizem os psicólogos. E a reconheci, lutei contra ela, critiquei-a. Os loucos não criticam as próprias ideias; portanto, eu não estava louco. No entanto, a ideia crescia a cada noite: se eu, estando devidamente preparado, pudesse matar um ser humano da forma adequada, poderia ver a alma humana.

Se eu pudesse ter um vislumbre da alma enquanto  abandonava o corpo morto, as minhas dúvidas e miséria chegariam ao fim. Senti que a minha vida seria pacífica para sempre, e que expiaria o assassinato divulgando a verdade da imortalidade por todo o mundo. Isso certamente valeria uma vida".

 

Cansado das viagens que suportara no Velho Mundo, esse narrador de um crime revoltante voltou para casa, "mas seria melhor que eu tivesse tirado lições das lendas de Vanderdecken, o Holandês Voador" — escreve ele — “e de Abasuerups, o Judeu Errante, amaldiçoado com a juventude perpétua, e sempre buscando um elixir da morte. “

 

“Em minhas noites insones” — prossegue Berrich — , “era terrível a tentação de matar a mulher que, deitada, respirava silenciosamente a meu lado. Ela, com as suas orações, era, em parte, a causa da minha miséria.

Por fim, vi que tinha de ceder à minha obsessão e decidi preparar-me para ela. A ciência havia progredido poderosamente nos oito anos em que renunciei a ela. Grandes descobertas haviam sido feitas com a ampla gama de raios de luz no lado invisível do espectro. A partir da pequena oitava de luz visível a olho nu, elas crescem e sobem como as notas de um piano, mas apenas aos tons infinitamente mais altos.

Há muito tempo que estava ansioso por fazer experiências com esses novos raios. Em nosso regresso a Boston, equipei a nossa casa com diversos instrumentos.

A minha mulher — um doce de pessoa, mas fútil e de escassa  bagagem intelectual — demonstrou antipatia pelo meu trabalho. Recusava-se a entrar no meu laboratório e parecia estremecer diante de meu inofensivo fluoroscópio e das lâmpadas.

Uma noite, a minha ideia fixa cresceu em seu poder gradualmente adquirido, e terminou por dominar-me completamente. A minha esposa tinha acabado de regressar de um baile da moda.

Ela queixava-se de uma terrível dor de cabeça e aceitou a minha oferta para aliviá-la. Eu dei-lhe uma injeção de morfina.

Deliberadamente, apliquei-lhe uma sobredose, mas não fatal. Os efeitos da droga manifestaram-se instantaneamente. A dor de cabeça passou; ela, sonolenta, me agradeceu e logo ficou inconsciente, deitada com seu vestido de baile, respirando profundamente.

Com um cuidado elaborado, eu trouxe meus instrumentos do laboratório e tratei de montá-los. O meu coração batia como nunca. Não era uma palpitação, mas uma forte batida que enviava o sangue para o cérebro num fluxo mais constante e mais intenso do que o habitual. As minhas faculdades pareciam excepcionalmente aguçadas, como deveriam estar, pois senti que seria o primeiro cientista — e talvez o primeiro homem — a ver uma alma humana.

Finalmente, os instrumentos foram montados e testados. Funcionavam perfeitamente. Atrás de mim estavam os tubos que emitiam a luz ultravioleta. Foram colocados às minhas costas porque eu acreditava que podia ver a alma na luz refletida como ela realmente se parece, e não uma mera sombra, como ela apareceria entre mim e a luz. A minha tela fluorescente tinha um acessório de lente para focar a imagem, o que — acredito — era uma ideia inteiramente nova.

Abri uma gaveta secreta na minha escrivaninha e dela e tirei o mais letal de todos os agentes da morte silenciosa: uma seringa hipodérmica cheia de ácido cianídrico. São suficientes apenas duas gotas, injetadas na veia, para que se produza uma morte instantânea, sem que se deixem manchas roxas ou vestígios de qualquer espécie.

A princípio, uma sombra indistinta parecia formar-se justamente acima do corpo, assumindo rapidamente os contornos da forma humana, em sua mais perfeita simetria. As feições assemelhavam-se às da morta e eram indescritivelmente belas. O ser delicado, claro e etéreo flutuou suavemente no ar com os olhos fechados, até que o processo da natureza se cumpriu. Então, aqueles olhos se abriram e uma inteligência sublime assomou naquele rosto. O ente etéreo flutuou no ar por um momento e, depois, como se algo o atraísse, moveu-se como uma massa de vapor em direção a uma janela semiaberta, esvaneceu e desapareceu para sempre da minha vista.

Por um instante, aqueles olhos pareceram olhar para mim. Não era a raiva, nem a censura, senão um espanto absoluto o que aquele semblante diáfano retratava ao sair do alcance de minha tela.

Durante algum tempo, fiquei como um idiota estupefato. A enormidade do crime que eu havia cometido veio como uma avalanche sobre o meu cérebro. Repetidamente, chamei o nome da minha mulher, mas apenas um eco de voz lamuriante veio-me em resposta.

Destruí todas as provas da minha culpa e fugi da cidade de Boston, seguindo para as montanhas do Oeste. Aqui, há dois anos, vivo em reclusão, muitas vezes meditando sobre minha própria vida, mas sempre desistindo do meu propósito, porque queria primeiro provar o que eu tenho investigado durante todo este tempo:

 

‘A morte é apenas o início da vida?’

 

Enquanto escrevo isto, sinto a mente débil e enevoada, e as minhas recordações estorvam-me. Provavelmente, estou ficando louco, se já não o estou completamente.

Bem, que seja. Também estou feliz por experimentar a insanidade: na verdade, vou adiar a morte e ver como ela é".

 

(O estranho manuscrito termina neste ponto. Não há assinatura, e acredita-se que pode ter havido outras folhas escritas).

 

 

Conto de autor desconhecido, originariamente publicado no “The Chicago American”, c. 1906; republicado no “The Sunday Times, Sydney, em 15 de junho de 1906. Título original: “A Weird Story: What did Berrich Really See?”

Tradução de Paulo Soriano.

 

 


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