AMPULHETA DAS ERAS - Conto de Terror - Flávio de Souza
AMPULHETA DAS ERAS
Flavio de Souza
Em algum lugar nas águas translúcidas da
Polinésia, uma pequena, porém robusta lancha rasgava o azul rumo a uma ilhota
mal desenhada no mapa. Os tripulantes, eram dois, não se entendiam quanto à
utilidade real da empreitada na qual se embrenhavam.
—É mais do que óbvio, Leonard, que a
essa altura nosso nobre, mas descabido amigo, Howard já tenha desaparecido nas
mãos daqueles aborígenes. Afinal, quase sete dias já se passaram desde seu
último contato.
—Paciência, Phillip, se há uma única
chance dentre milhões de encontrarmos Howard, nós temos a obrigação moral de,
pelo menos, tentarmos. Não podemos nos esquecer de que, mais de uma vez, ele
seguiu em nosso auxílio. Além do mais, em sua derradeira mensagem, ele deixou
claro que encontrou sinais inequívocos da existência do maior de todos os
Antigos e...
—Não seja ridículo, Leonard! Até quando
vocês seguirão em busca de algo que não existe? Ok, nas ocasiões em que podemos
tirar algum tipo de vantagem nessas viagens, sejam elas em espécie ou em
reconhecimento público, tudo bem, concordo. No entanto, isso é mais do que
loucura, é quase suicídio. Posso apostar os últimos fios dos meus cabelos que
Howard já foi subjugado pelos hábitos primitivos daqueles selvagens.
— Não temos tempo para discussão e, além
do mais, já chegamos. Olhe! Essa é o lugar!
A embarcação descreveu um semicírculo,
enquanto Leonard se preparava para lançar a poita ao fundo. A despeito do luar
resplandecente, a única iluminação no local respondia por um pequeno ponto
flamejante muito além das paredes espessas e negras formadas pela vegetação
agressiva que se apresentava logo após a estreita faixa de areia e cascalhos.
Não era preciso pensar muito para deduzir que era para lá que deveriam seguir.
Leonard foi o primeiro a tocar as águas
mornas. Phillip desceu logo em seguida. Ele movia o aparelho telefônico via
satélite em diversas direções, enquanto fazia caretas, conforme o ponto
avermelhado do led tremeluzia.
— Não adianta, parece que não podemos
contar muito com esse aparelho para pedir ajuda, se for o caso. Mesmo com o céu
aberto sobre nossas cabeças e uma engenhoca de milhões no espaço, o sinal
insiste em se mostrar intermitente.
— Não vamos perder tempo com isso,
Phillip. Acredito muito mais nesse auxílio ? Leonard exibia o metal polido de
uma Glock ? isso sim pode nos salvar.
Phillip deu de ombros e ambos seguiram
pelo interior da mata. A lâmina afiada de um facão de caça abria o caminho
oferecido pelas órbitas luminosas das lanternas. Caminharam por um par de horas
sem grandes dificuldades, até que o ritmo monótono da trilha foi subitamente
interrompido pelo rufar acelerado do que pareciam ser tambores. O homem que
seguia na vanguarda levou o dedo indicador da mão direita aos lábios — no
típico sinal de silêncio — algo parecia se esconder nos arbustos diante dos
olhos arregalados dos pesquisadores. Leonard suspirou e apertou as ranhuras de
madrepérola do cabo da pistola, um filete frio descia sinuoso pela fronte
salpicada de suor. Phillip se mantinha na retaguarda do amigo. Porém, antes que
o dedo apressado do doutor pudesse envergar o gatilho, sua cabeça fora alvo de
uma pancada oriunda de lugar algum, assim pensou, quando recobrou os sentidos.
Phillip também sofrera semelhante golpe, porém, diferente do companheiro, não
tentou formular explicações para o ataque. Sua mente tentava controlar a ação
das mãos em busca de uma saída.
Eles estavam numa situação delicada.
Pendurados pelos tornozelos, ambos tentavam entender o estranho cenário que os
cercava. Os cipós que os prendiam estavam centralizados sobre um lago de águas
escuras, uma mancha negra e plácida como a retidão de um espelho. Inúmeros
homens de vestes e atitudes selvagens os observavam hipnotizados, mas, ao mesmo
tempo, se mostravam ansiosos. Mesmo dominado pela urgência que os ameaçava,
Leonard foi tomado por uma imagem impossível de passar despercebida. Uma
estátua entalhada em pedra negra insinuava os contornos de uma entidade
familiar, algo que ele estava mais do que acostumado a ver em seus estudos: uma
criatura grotesca. As asas abertas, como as de um morcego mutante, lançavam uma
sombra ameaçadora além das luzes quentes das poderosas tochas que ladeavam o
monólito. Os braços macabros abraçavam as pernas arqueadas, enquanto dezenas de
tentáculos repugnantes se espalhavam ao redor da desproporcional cabeça do
monstro. Dois rubis enfeitavam a face macabra da fera. Leonard conhecia aquele
ser. Sim, ele o conhecia muito bem. Por conta disso, os dizeres sob os pés da
estátua, diante do lago, escrita numa linguagem há muito perdida, se mostrariam
desnecessários.
— “Ascensão do Grande Cthulhu!”
— O quê? — perguntou, intrigado,
Phillip.
— “Ascensão do Grande Cthulhu!” — respondeu,
convicto, o amigo. — Mas não é isso o que me preocupa.
Phillip ficou sem entender, e formulava
uma nova pergunta quando foi interrompido por Leonard.
— A frase seguinte é o que me deixa
temeroso. Ela diz: “Portal para R’Lieh.” — Com uma seta apontada para o lago,
exatamente onde estamos.
—Meu amigo — disse Phillip —, nunca levei muita fé nessa sua obsessão por
essas crenças perdidas, mas não sou de pôr em dúvida a minha vida, portanto...
Fazendo muito esforço, Phillip envergou
o tronco e alcançou uma improvável arma? ele era normalmente avesso a esse
tipo de solução? disparando três vezes, ele conseguiu acertar o nó do cipó que
o prendia, indo de encontro ao toque gelado do lago negro, quebrando, assim, a
calmaria do espelho d’água. Com dificuldade, ele desprendeu as amarras dos pés
e nadou da melhor maneira que pode para a margem.
Assustados com a inesperada ação do
invasor, os selvagens demoraram a reagir e, quando perceberam, o homem branco
já estava em terra firme apontando a arma em todas as direções. Foi quando ele
notou uma nova vítima do estranho culto, alguém que ele julgava já estar morto:
o velho amigo Howard!
O primeiro aborígene tentou atacar
Phillip, mas, com um tiro certeiro, fora removido do caminho. Os outros se
assustaram e recuaram.
—Para trás! Para trás! —ordenava o
aventureiro, com o nervosismo saltando pelos poros.
— Phillip! Phillip! Vocês vieram me
salvar! Você e Leonard. Solte-me para que possamos tirá-lo do lago!
Rapidamente, as amarras foram desfeitas
e, imediatamente, as mãos libertas surpreenderam um desprevenido Phillip, que
deixou a arma cair por conta do ataque repentino. Uma vez desarmado, Phillip se
viu subjugado novamente pelos selvagens, enquanto Howard era amparado pelos
mesmos.
— O que significa isso, Howard? Nós
viemos aqui para...
— Cale-se! Você está prestes a
contemplar o renascimento do Maior dos Antigos! Eles, os selvagens, sabem como
chamá-lo e vocês — apontou para Phillip e Leonard, no lago — farão parte disso!
Os homens, em transe, entoavam um
cântico quase esquecido ao longo das eras. Mas ele, aquele que repousa em
R`Lieh, nunca renega o chamado e, mais uma vez, se mostra disposto a atendê-lo.
Um sinuoso redemoinho se abre logo abaixo de Leonard que, desesperado, grita em
vão quando um pegajoso tentáculo o leva para baixo.
— Sim! Sim! Renasça, Grandioso — gritava
de forma histérica Howard.
Outro tentáculo surge e arrasta um
resignado Phillip para as profundezas.
— Ele voltou! Ele voltou! Ele...
Mas, a estupefação de Howard se conteve
quando inúmeros tentáculos surgiram do negrume do lago e tocaram cada ser vivo
daquela ilha, levando todos para uma inevitável morte. Eles, meros insetos
incrustados na podridão do mundo não sabiam, mas aquele que dorme em R`Lieh apenas
debocha de sua vil existência. Sem distinção. Sem predileção. Com o mesmo
desprezo. Ele manipula a ampulheta das eras, e somente ele domina as areias que
a compõe.
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