MR. JEKYLL E DR. HYDE - Conto de Terror - Paulo Soriano
MR.
JEKYLL E DR. HYDE
Paulo
Soriano
Mr.
Hyde, o crápula de Whitechapel, pôs a cartola, vestiu o sobretudo preto e saiu
para a noite. Não levava consigo a maleta de couro negro, que roubara do Dr.
Jack Seward, e em cujo interior escondia caprichosamente os lindos apetrechos
de tortura e morte. Desde que retalhara Mary Jane Kelly na madrugada da última
sexta-feira, sentia-se feliz e saciado. Contentava-se, pois, em agarrar uma
bengala maciça, que antes parecia um bastão, com sua cabeça de lobo esculpida
em marfim à guisa de empunhadura.
A
noite era fria, nebulosa, mas Mr. Hyde fazia pouco caso da aspereza do fog. Seguia com passos rápidos e
elásticos, cantarolando canções obscenas, em direção à Shepherd Street. Ao
passar pela Dorset Street, experimentou uma sensação inefável, certamente de
júbilo, talvez mesmo de nostalgia. Podia, num breve esforço de reflexão, sentir
nas mãos o coração ainda pulsante de Mary Jane, a viúva puta. Ela fora a melhor
de todas. Não diria que Mary Ann Nichols, a primeira, tenha sido o fracasso que
foi Elizabeth Stride. Mas a sua arte — um verdadeiro primor em Annie Chapman e
Catherine Eddowes — alcançou o apogeu em Mary Jane Kelly. Seria eternamente
lembrado por esta obra-prima, não havia dúvida. Quem, doravante, perplexo de
tanta brutalidade, se atreveria a olvidar o assassino de Whitechapel? Mas a
verdade é que o facínora se cansara das prostitutas. Agora, queria Mr. Hyde
galgar novos horizontes.
O
fog fazia-se especialmente espesso e
nem mesmo as luzes dos lampiões a gás conseguiam devassá-lo. O que se via à
frente era um nevoeiro aqui e ali rajado de cores soturnas, moles, que
cintilavam num fulgor fantasmagórico por uns poucos instantes, antes de
desaparecerem completamente nas goelas escuras da noite fria de novembro. Mesmo
assim, Mr. Hyde não diminuía o ritmo acelerado dos passos. E assim continuou,
cantarolando e agitando no ar a sua pesada bengala de madeira de lei, até que
sentiu — sim, sentiu, já que Mr. Hyde
era muitíssimo esperto — um par de olhos gelados cravar-se na base de seu
crânio.
Mr.
Hyde virou-se prontamente e brandiu no ar a bengala. Ouviu, prazeroso, o ruído
de ossos quebrando. Ao primeiro golpe sucederam-se outros, rápidos, pesados,
intensos, todos desferidos sobre o crânio da criança, do monstrinho larápio que
Mr. Hyde agora entrevia sob a epiderme da bruma opaca. Hyde tinha uma especial
predileção pelo último golpe, aquele no qual reunia e concentrava toda a sua
força física e moral, a força que irradiava do fundo de sua medula, e era
expulsa violentamente, triunfante, rumo a uma conclusão apoteótica e
especialmente agradável.
Mr.
Hyde limpou o lobo esculpido com o lenço, agitou o pano no ar para remover o
excesso de fragmentos ósseos, massa encefálica e sangue, e meteu-o no bolso do
sobretudo. Depois, retomando o fio da meada da canção obscena, mergulhou como
uma flecha no fog gosmento. Acabara
de ouvir um longo silvo. O apito infernal de um alarme de polícia. Mas não foi
longe. Crê-se que tropeçou em alguma coisa, emitiu um ganido selvagem e caiu. Então
tudo se lhe escureceu completamente.
Quando
Mr. Hyde despertou, não abriu os olhos. Ele era sagaz o suficiente para
permanecer de olhos cerrados enquanto, com os ouvidos apurados, devassava o
ambiente a seu redor. Ergueu as pálpebras cuidadosamente, mas apenas o
suficiente para certificar-se de que estava mesmo de volta ao manicômio. As
tiras de couro que cingiam as suas pernas, abdome e peito não deixavam espaço a
qualquer dúvida. E a visão do enfermeiro corpulento, de cara de poucos amigos,
ratificou definitivamente as suas primeiras impressões.
Voltou
a fechar cuidadosamente as pálpebras, concentrando-se nos sons que lhe chegavam
aos ouvidos. Escutou, alguns minutos depois:
—
Foi sobre este homem que eu lhe falei, Dr. Jekyll — começou uma voz jovem. —
Ele foi encontrado na Shepherd Street, sem sentidos, há dois dias. Como o
senhor pode ver, ele ainda guarda resquícios de uma contusão frontal, na testa
e no couro cabeludo. A alguns metros dele acharam uma criança, um menino, com a
cabeça e o rosto horrivelmente dilacerados. A arma do crime, uma bengala,
encontraram-na quase à mão do assassino, e num dos bolsos do sobretudo que ele
usava havia um lenço encharcado de sangue, polvilhado de partícula de ossos e
tecido cerebral. O Dr. Jack Seward, de quem — creio — ele foi paciente por
cerca de um ano, o teria reconhecido. Acredita-se que ele se chama Edward Hyde.
Se é ele mesmo, trata-se de um canalha astuto e furioso.
A
perspicácia de Mr. Edward Hyde era, como sabemos, extrema, e por isso ele
sentia o olhar de Dr. Jekyll deslizar sobre a sua face, percorrendo os longos
cabelos, o bigode e a espessa barba escura, que lhe cobriam quase todo o rosto,
para afundar, como tenazes, nas pálpebras cerradas, e era certo que estas
escondiam olhos muito bem despertos.
—
Onde está o Dr. Seward? — perguntou o Dr. Jekyll.
—
Na Holanda — respondeu o outro.
—
Uma de suas inesperadas visitas ao Professor Abraham van Helsing?
—
Creio que sim.
—
Mas você não me chamou aqui para substituí-lo, decerto.
—
Não — respondeu o jovem médico —, embora isto seja uma possibilidade. — Esse
homem, Edward Hyde, não está em coma. Às vezes cai num sono agitado e, o que é
incrível, não para de chamar por seu nome, doutor.
—
Acha, meu caro Dr. Watson, que há alguma relação entre ele e eu?
—
Era justamente isto que eu gostaria que você esclarecesse, Jekyll. Há? Não se
pode, além de tudo, negar que entre você e ele existe uma notável semelhança
fisionômica. Qualquer um juraria que, afora os pelos abundantes no assassino,
vocês se parecem como irmãos.
—
Creio que você deveria perguntar a ele, Watson. Ele está perfeitamente acordado
e bem desperto — disse o Dr. Jekyll, aproximando-se de Edward Hyde. — Vamos,
camarada, responda ao Dr. Watson.
Hyde
abriu os olhos. Watson deu um passo para trás, num reflexo de pura
autopreservação. Nunca havia visto um olhar tão abominável.
—
É possível que eu o conheça, Dr. Jekyll. É perfeitamente possível — disse Hyde,
dirigindo o pavoroso olhar para o médico, que não recuou um milímetro. — Passei
uma boa temporada neste hospício e nele há sempre médicos, até mesmo os que
vivem enfiados em laboratórios — Hyde prosseguiu, reforçando no olhar a
expressão de escárnio e desdém.
Desta
feita, o Jekyll teve um calafrio.
—
Para falar a verdade — prosseguiu Hyde, em tom sereno —, aprendi muito com os
médicos. Seria capaz de me passar por um psiquiatra com a facilidade de quem
furta um doce a uma criança.
—
Dr. Watson, doravante eu assumo o caso — disse, resoluto, o Dr. Jekyll. — Dê as
minhas lembranças a seu amigo Holmes. Mas, como neste caso não há mistérios,
não iremos precisar dos serviços do brilhante sabujo. Tenho um método infalível
para verificar se esse animal é mesmo o hediondo Hyde — concluiu, enquanto
preparava uma seringa carregada de soníferos.
Edward
Hyde não tinha qualquer memória da infância e da juventude. Até mesmo o passado
mais recente lhe parecia nebuloso. Mas hoje, ao ver, bem de perto, a face do
Dr. Jekyll, teve muito de seus sonhos noturnos esclarecidos. O vínculo que
existia entre ele o médico, cuja natureza desconhecia, mas que sabia portentoso
como aquela força que põe em perfeita sintonia as órbitas dos astros mais
longínquos, era, certamente, uma explicação bastante plausível para a inata
habilidade que tinha com facas e bisturis. Desde o instante em que afundou o
aço afiado na goela de Mary Ann Nichols, Mr. Hyde percebeu que era dono de uma
destreza incomum. A anatomia humana, de sua feita, não lhe era absolutamente
estranha. E a imensa semelhança entre ele e o doutor não passou despercebida
para o médico, que examinou detidamente as mãos de Edward, comparando-as em
seguida com as suas.
O
médico voltou com tinta nanquim embebida em algodão e espalhou-a no polegar de
Edward. Depois, empurrou o dedo do facínora contra uma folha em branco
repetidas vezes. Com uma lupa, sobre a mesinha, examinou as estampas,
cotejando-a com algumas outras, colhidas de seu próprio dedo.
—
Sabe o que eu estou fazendo? — perguntou o Dr. Jekyll, enquanto examinava as
impressões deixadas sobre o papel.
Quando
concluiu o exame, que era uma aplicação prática da teoria desenvolvida pelo
amigo Francis Galton, Henry Jekyll já se esquecera completamente da pergunta
que acabara de fazer. Um súbito frio percorreu a sua espinha e todos os pelos
do corpo se eriçaram.
—
Parece que o doutor não gostou do que viu — disse Jekyll, em voz baixa e lenta,
para acentuar a ironia.
—
O seu patíbulo, Hyde — e agora não tenho mais qualquer resquício de dúvida de
que você é mesmo Edward Hyde —, já está sendo armado. Amanhã será julgado e
condenado. E será executado sem demora.
—
Você não me deixaria morrer, Jekyll — objetou Hyde, piscando maliciosamente os
olhos abomináveis. — Algo me diz que você é um ilustre cientista e que eu sou
um precioso objeto de estudo para você. Se me deixa ir para a forca, por causa
de um molequinho ladrão de Whitechapel, perderá o seu tesouro.
—
É o que veremos — respondeu Jekyll, secamente.
Não
foi nada difícil para Mr. Hyde — que era muito esperto — livrar-se das
correias, enquanto Jekyll dormitava numa cadeira ao seu lado.
Levantou-se
devagar, sem fazer um ruído sequer, e achou, rapidamente, na mesinha do doutor,
o que queria: um peso de papéis. Um seixo repousava placidamente sobre os
papéis manchados por impressões digitais.
Com
a habitual destreza, desferiu um golpe preciso na fronte do Dr. Jekyll, que foi
ao chão.
Depois
de vestir em Jekiil roupas de paciente, encorreando-o na maca onde estava,
meteu no próprio corpo as roupas do médico, que lhe caíram como luvas. Quando
voltou, tinha a barba feita e os cabelos cortados. Olhou-se novamente no
espelho da janela: lá estava a imagem perfeita do Dr. Jekyll. E, antes do
amanhecer, apanhou na mesinha do doutor o sonífero que não há muito este lhe
havia preparado, e injetou vagarosamente, com habilidade profissional, na veia
do médico desmaiado.
Quando
chegou o dia, e veio o enfermeiro, acompanhado por dois agentes de polícia,
Hyde disse:
—
Ele está bem sonolento e poderá parecer bem confuso. Podem levá-lo, mas não
deem ouvidos a ele: não passa de um louco violento e muito, muitíssimo perigoso.
Os
recém-chegados ficaram admirados com a semelhança que havia entre aqueles
homens.
Hyde
disse, retirando-se:
—
Sem dúvida ele irá querer tirar vantagem desta infeliz coincidência. Tentará
passar-se por mim, o esperto.
Sem
dúvida que Mr. Hyde se comprouve imensamente com a execução de Dr. Jekyll. No
julgamento, saiu-se muito bem no papel de psiquiatra, enquanto o médico,
entorpecido pelo efeito da pancada e do medicamento, parecia não entender o que
lhe ocorria. Era delicioso ver Dr. Jekyll atônito, quase delirante,
esforçando-se em provar, perante juízes algozes, entre balbucios e inócuas
palavras, que ele não era de fato o cidadão Hyde, que Edward Hyde era o seu
duplo, nascido de experiências tão revolucionárias quanto absurdamente
nefandas.
Como
médico oficial do executando, Mr. Hyde solenemente assistiu ao enforcamento.
Depois, ao lado do carrasco, constatou a morte do médico infeliz com serena
gravidade, como é de mister a um profissional respeitável em tais circunstâncias.
Mr.
Hyde já não mais precisa sair às ruelas imundas de Whitechapel para praticar a
sua sublime arte. Hoje, como médico renomado, exerce com afinco a psiquiatria
e, por escolher entre os loucos as suas vítimas, sabe desempenhar com maestria
a sua arte — o reflexo de seu imenso talento —, sem deixar rastro algum ou
inspirar quaisquer suspeitas.
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