LIGEIA - Conto Clássico de Terror - Edgar Allan Poe

 


LIGEIA

Edgar Alan Pöe

(1809 – 1949)

 

Há nisto uma vontade que não morre. Quem

conhece os mistérios da vontade e a sua força?

Porque Deus não é mais que uma grande

vontade, penetrando todas as coisas com a

intensidade que lhe é própria. O homem só

cede aos anjos e só se submete por completo à

morte pela fraqueza da sua pobre vontade.

— Joseph Glanville

 

 

Eu juro pela minha alma que não me lembro quando, nem onde vi, pela primeira vez, Lady Ligeia.

Passaram-se longos anos desde esse dia e um grande sofrimento debilitou a minha memória. Ou talvez eu não possa recordar-me, porque, realmente, o temperamento da minha amada, a sua rara cultura, a sua espécie de beleza tão singular e tão plácida, e a aliciante e subjugadora eloquência das suas palavras musicais e profundas, tenham penetrado no meu coração de maneira tão sub-reptícia, constante e furtiva, que eu não dei conta disso.

 No entanto, suponho que a encontrei pela primeira vez, e que depois

voltamos a ver-nos muitas outras, numa cidade antiga às margens do Reno.

Quanto à sua família, se alguma vez me falou nela, deve ter sido numa data tão longínqua que não tenho a mínima ideia.

Oh, Ligeia, Ligeia!

Abismado em estudos cuja natureza amortece as impressões do mundo exterior, basta-me esta palavra tão doce — Ligeia! — para evocar ante os olhos do pensamento a imagem do que já não existe. Mesmo agora, enquanto escrevo, ilumina-me como uma luz a ideia de que nunca soube o nome da família de que foi, primeiro minha amiga e minha prometida, depois minha companheira de estudos e, por fim, a esposa do meu coração.

Foi um capricho de Ligeia? Foi uma prova da força do meu afeto jamais lhe ter pedido informação alguma a esse respeito? Ou, então, abnegação, qualquer coisa como a oferenda romântica de um culto apaixonado? Não sei. Mas se alguma vez o espírito romântico, o pálido Ashtophet do Egito idólatra — o das asas tenebrosas — presidiu, como dizem, a bodas de sinistro augúrio, foi, com certeza, às minhas.  Apesar de tudo, há um ponto claro na minha memória. É a pessoa de Ligeia.

Ela era alta, um pouco delgada, e, nos últimos dias, essa magreza aumentou extraordinariamente. Tentaria, inutilmente, pintar a majestade, a tranquila desenvoltura do seu andar e a incompreensível leveza e elasticidade dos seus passos. Ia e vinha como uma sombra. Não me apercebia da sua entrada no meu escritório a não ser pela música querida da sua voz doce e profunda, ou quando ela colocava a sua mão de mármore sobre o meu ombro.

Quanto à beleza do rosto, nenhuma mulher jamais se igualou a ela. Ela era como a visão de um sonho de ópio, uma visão aérea, enfeitiçadora, mais estranhamente celeste que as quimeras que revoluteiam nas almas submissas das filhas de Delos. No entanto, os seus traços estavam muito longe de ser vazados nesses moldes falsamente regulares que deram as obras clássicas do paganismo.

 “Não existe beleza atraente — afirmou Bacon, Lorde Verulam, falando com exatidão de todas as formas de beleza — sem certa estranheza nas proporções” .

Embora estivesse convencido de que os traços fisionômicos de Ligeia não eram de uma regularidade clássica; embora me apercebesse de que a sua beleza era verdadeiramente excêntrica e fortemente penetrada de estranheza, em vão me esforcei por descobrir uma irregularidade, mas não consegui jamais decifrar o mistério dessa estranheza. Examinava a sua fronte alta e pálida, uma fronte sem defeito — que frias são estas palavras aplicadas a uma majestade divina! — a pele que rivalizava com o mais puro marfim, a amplidão imponente, a calma, a graciosa curvatura das fontes, os cabelos negros como as asas de um corvo — luxuriante, ondulada, justificando a expressão homérica: cabeleira de jacinto.

Observava as linhas delicadas do seu nariz e não me recordava de tê-las visto iguais a não ser nos graciosos medalhões hebraicos. O mesmo desenho, a mesma superfície soberbamente unida, a mesma imperceptível tendência para a forma aquilina, reveladora de um espírito claro. Olhava para a boca encantadora e via nela um triunfo de todas as coisas celestiais: a curva gloriosa do lábio superior — um pouco curto —, o ar docemente, voluptuosamente repousado do lábio inferior, e os dentes que refletiam, como um relâmpago, cada raio da luz bendita que caía sobre eles o seu sorriso plácido e sereno, mas radiante e triunfal.

Via a forma do queixo cheio de força e majestade, com aquela espiritualizada plenitude grega, aqueles contornos que Apolo revelou em sonhos a Cleómenes, filho de Cleómenes de Atenas.

Por fim, olhava para os grandes olhos de Ligeia. Nem na mais remota

antiguidade se encontraria o modelo de semelhantes olhos. Talvez neles se ocultasse o mistério de que fala Lorde Verulam. Eram maiores que os olhos de qualquer criatura humana, mais rasgados que os olhos de uma gazela dos vales de Nurjahad, mas só em certas ocasiões, em certos momentos de excessiva animação essa particularidade me surpreendia. Nesses momentos, a sua beleza era, ou, pelo menos, o meu espírito inflamado assim o supunha, como a beleza das famosas huris turcas. As pupilas possuíam um negro brilhante e as pestanas, longas e igualmente negras, tinham a negrura profunda das suas sobrancelhas ligeiramente irregulares. A estranheza dos seus olhos era, no entanto, independente da forma, da cor e do brilho, e devia, portanto, atribuir-se à expressão deles.

Mas esta palavra não tem sentido e não é mais que um som de vaga significação com que a nossa ignorância se defende dos mistérios espirituais.

A expressão dos olhos de Ligeia! Quantas horas (e que longas!) eu meditei sobre ela! Quantas vezes, nas noites estivais, eu tentei sondá-la! Que era esse algo desconhecido, essa qualquer coisa mais profunda que o fogo de Demócrito que existia no fundo das pupilas da minha bem-amada? Eu não sabia. Mas estava possuído pela obsessão de descobri-lo.

Oh, os seus olhos! As suas largas, brilhantes e divinas pupilas! Chegaram a ser para mim como as estrelas gêmeas de Leda e, por elas, fui o mais apaixonado dos astrônomos.

Entre as numerosas e incompreensíveis anomalias da ciência psicológica não há nenhuma tão interessante, tão excitante como querer a gente recordar-se de uma coisa esquecida há muito tempo, encontrarmo-nos à beira mesmo da recordação, sem a atingir completamente.

Desta maneira, quantas vezes, ao tentar a análise ardente dos olhos de Ligeia senti, aproximar-se o completo conhecimento do segredo da sua expressão! E, no entanto, nunca consegui apoderar-me dele, pois acabava por desaparecer de todo.

No entanto (oh, estranho; oh, mais estranhos dos mistérios!), sempre encontrei nos objetos mais comezinhos e vulgares do mundo uma série de analogias com essa expressão. Desde a época em que a beleza de Ligeia se introduziu no meu espírito e se instalou ali como num relicário, muitos seres do mundo material me provocaram uma sensação análoga à que eu sentia flutuar sobre mim, ou em mim, sob a influência das suas enormes e luminosas pupilas.

Mas nem por isso eu deixei de ser incapaz de definir exatamente esse sentimento e de analisá-lo. Reconheci-o muitas vezes no rápido crescimento de uma vinha, na contemplação de uma falena, de uma borboleta, de uma crisálida, ou numa corrente de água borbulhante. Encontrei-o no oceano e na passagem de um meteoro. Pressenti-o no olhar de alguns velhos centenários.

Há no céu uma ou duas estrelas — sobretudo uma dupla e lucilante que se encontra próxima da grande estrela da Lira —, que, vistas com o telescópio, me produziram um sentimento análogo. Também experimentei a mesma sensação com certos sons de instrumentos de corda, assim como em algumas passagens das minhas leituras.

Entre outros inumeráveis exemplos, lembro-me bem de que em certo livro de Joseph Glanville encontrei qualquer coisa extraordinariamente expressiva e evocadora: “Há nisto uma vontade que não morre. Quem conhece os mistérios da vontade e a sua força? Porque Deus não é mais que uma grande vontade, penetrando todas as coisas com a intensidade que lhe é própria. O homem só cede aos anjos e só se submete por completo à morte pela fraqueza da sua pobre vontade”.

Reli e meditei muitas vezes sobre este parágrafo e acabei por estabelecer uma certa — embora longínqua — relação entre as palavras do filósofo e moralista inglês e o caráter de Ligeia. Uma intensidade singular no pensamento, na ação, na palavra, seria talvez o resultado, ou, pelo menos, o indício dessa gigantesca potência volitiva que, no decorrer das nossas longas relações, havia de dar outras e mais positivas provas da sua existência.

De todas as mulheres que conheci, a plácida Ligeia, de aspecto tão tranquilo, era a presa mais dilacerada pelos tumultuosos abutres da paixão cruel. Eu não podia avaliar essa paixão a não ser pelo milagroso eflúvio daqueles olhos caridosos e ao mesmo tempo assustadores, pela melodia quase mágica, a modulação, a nitidez e doce calma da sua voz profunda, e pela selvagem energia das estranhas palavras que habitualmente pronunciava e cujo efeito se duplicava contrastando com a forma como as proferia.

Já falei da cultura de Ligeia. Era imensa, não igualada por nenhuma mulher. Conhecia profundamente as línguas clássicas, e, no que diz respeito aos meus próprios conhecimentos das línguas modernas da Europa, nunca a surpreendi na mínima falta. No fim de contas, porém, a sua cultura não se revelava só na linguística, mas em qualquer tema de erudição acadêmica. Ligeia não tinha defeito. A conclusão da sua superioridade infinita fazia com que eu me resignasse, com a confiança de um estudante, e me deixasse conduzir por ela no mundo caótico das investigações metafísicas, pelas quais me fez interessar desde os primeiros anos do nosso matrimônio.

Com que delícia triunfal, com que esperança etérea eu via como Ligeia, inclinada sobre mim, desdobrava a admirável perspectiva, a ampla avenida esplêndida e virgem pela qual chegava ao fim de uma sabedoria demasiado preciosa e demasiado divina para não ser proibida! Com que terrível dor não vi depois, ao cabo de alguns anos, que todas essas esperanças fugiam voando rapidamente!

Sem Ligeia, eu não era mais que um menino às apalpadelas na noite. Só a sua presença, as suas lições, podiam iluminar com luz viva os mistérios transcendentes que aprofundávamos.

Privado do fulgor lustral dos seus olhos, toda aquela literatura alada e áurea, de começo, se tornava fastidiosa e pesada como chumbo.

Os seus olhos cada vez iluminavam menos as páginas que eu ia decifrando.

Ligeia caiu doente. Os seus olhos estranhos ardiam com uma luz brilhante de mais, os dedos pálidos tomaram a cor da morte, uma cor transparente e cerúlea.

As veias azuis da sua fronte palpitavam impetuosas. Compreendi que ela ia morrer e lutei desesperadamente contra o horrível Azrael.

Com grande espanto meu, os esforços dessa mulher apaixonada foram ainda mais enérgicos. A julgar pela seriedade da sua natureza, supus que a morte chegaria para ela livre de terrores; mas não foi assim.

Não conheço forma para exprimir a feroz resistência que ela desenvolveu nas suas lutas com a Sombra. Eu gemia de angústia ao presenciar aquele lamentável espetáculo. Desejaria acalmá-la, esgotar todos os raciocínios, mas perante a intensidade selvagem do seu desejo de viver — de viver, nada mais do que viver — qualquer consolação e qualquer raciocínio seriam o cúmulo da loucura.

No entanto, até o último momento, no meio das torturas e das convulsões do seu espírito, não desmentiu um só instante a aparente lucidez da sua conduta. A sua voz tornava-se mais doce, mais profunda, e eu ficava extasiado, a ouvir essa melodia sobre-humana, na qual havia ambições e aspirações que a humanidade não conheceu antes dela. Tive sempre a certeza da sua ternura e de que, num peito como o seu, o amor era uma paixão avassaladora; mas somente perto da sua morte compreendi toda a força e toda a grandeza do seu carinho.

Ela passava longas horas com as mãos nas minhas, desafogando o coração demasiado cheio e cujo amor por mim chegava até a idolatria. Ignoro o que fiz para merecer as suas confissões. Ignoro, também, qual foi o meu delito para que me castigassem arrebatando-me a minha adorada naqueles doces instantes. Não posso alargar-me muito sob este ponto. Só direi que no abandono mais que feminino de Ligeia a um amor não merecido e, no entanto, concedido gratuitamente, reconheci enfim a razão da sua ardente, da sua selvagem dor por abandonar a vida tão precocemente. Não poderia descobrir esse ardor desordenado, essa veemência no seu desejo de viver, apenas na vida.

Na noite da sua morte, chamou-me para junto do seu leito e obrigou-me a recitar uns versos que compusera uns dias antes. Obedeci:

   

Vejam a noite engalanada,

Depois de tantos anos desolados,

E esse coro angélico e alígero

Que oculta as suas lágrimas nos véus.

Sentai-vos no teatro para ver

Um drama de esperanças e temores

Enquanto a orquestra suspira

A música das esferas.

Os adores, tal como o deus que os criou,

Simulam as palavras, em silêncio,

E giram de um extremo a outro extremo

Como pobres bonecos que obedecem

Ao mandato dos seres invisíveis,

Os seres estranhos que os cenários mudam,

E que com asas de condor espalham

A desgraça invisível.

Oh, drama estranho que de ninguém

Poderá ser esquecido,

Com seu fantasma eternamente perseguido

E inatingível para a multidão!

Há um círculo que gira, gira sempre,

Sempre em torno, na mesma direção,

E muito de loucura e de pecado,

Que são os fios trágicos da intriga.

Mas olhem: através dos adores,

Um ser rasteja e no recinto entra,

Vermelho e ensanguentado ele contorce-se

E lá do fundo do cenário avança...

Como estremece! Com que mortais ânsias,

Os adores em suas fauces se debatem!

E os serafins soluçam de tristeza.

Vendo que dos seus dentes

Escorre sangue humano.

Já se extinguem as luzes,

Já se apagaram todas,

E sobre a forma trágica e tremente

Desce como um sudário

O pano.

E eis que os anjos, soluçando pálidos,

Erguem-se e revelam

Que este drama é o Homem,

E o seu herói é o Verme.

 

— Meu Deus! — exclamou Ligeia soerguendo-se e estendendo os braços para o céu num movimento espasmódico quando terminei de recitar os versos.

— Oh, meu Deus! Pai celestial! É possível que se cumpram irremissivelmente todas estas coisas? O verme não será nunca vencido? Não somos uma parte de Ti mesmo? Quem conhece os mistérios da vontade e a sua força? O homem só cede aos anjos e só se submete à morte pela fraqueza da sua pobre vontade.

E, de súbito, esgotada pela comoção, deixou cair bruscamente os braços, e entre os seus últimos suspiros ouvi que saía dos seus lábios, como um murmúrio, o final do pensamento de Glanville: “O homem só cede aos anjos e só se submete à morte pela fraqueza da sua pobre vontade” .

Morreu. E eu, esmagado, pulverizado pela dor, não pude suportar muito tempo a espantosa desolação daquela casa na sombria cidade, cheia de ruínas, às margens do Reno.

Não me faltava aquilo que o mundo chama fortuna. Além disso, Ligeia dera-me muito mais do que possui a maioria dos mortais. No entanto, passados alguns meses de uma vida de vagabundagem inútil, refugiei-me no fundo de uma abadia, cujo nome não direi, e que adquiri com o fim de me isolar numa das províncias mais incultas e menos frequentadas da bela Inglaterra. A sombria e triste grandeza do edifício, o aspecto quase selvagem dos arredores, as melancólicas e veneráveis recordações ligadas a ele, estavam de acordo com o sentimento de completo abandono da minha alma, que me obrigara a procurar aquela longínqua e solitária região.

Conservei à abadia o seu aspeto exterior, o seu caráter primitivo, e não quis arrancar sequer o musgo que lhe atapetava os muros arruinados. Mas tentei distrair-me, com infantil desejo, das minhas amarguras, espalhando dentro dela magnificências verdadeiramente régias.

Desde muito novo que tive certa tendência para o fausto e, agora, como consequência da minha dor, regressava aos meus primitivos sentimentos. Ai, de mim! Em todos aqueles esplêndidos e fantásticos tapetes, nas solenes esculturas egípcias, nas talhas medievais e nos móveis de extravagantes arabescos não era difícil descobrir um começo de loucura. O ópio tinha-me escravizado entre as suas garras, e os meus atos e as minhas ideias estavam como que impregnados da cor dos meus sonhos. Jamais esquecerei aquele refúgio, mil vezes maldito, onde num momento de alienação mental tomei por esposa, depois da inolvidável Ligeia, a Lady Rowena Trevanion de Tremaine, a dos louros cabelos e olhos azuis.

Não esqueci nem um só pormenor daquela alcova nupcial que terei sempre presente ante os meus olhos. Como pôde a altiva família de minha noiva consentir que uma filha tão ternamente amada entrasse naquela casa decorada de tão estranha maneira?

Aquele quarto fazia parte de uma das torres da abadia, fortificada como um castelo, e tinha a forma de um pentágono de grandes dimensões. O lado sul do aposento era uma enorme e única janela formada por um imenso cristal de Veneza, de uma só peça e de cor sombria, que deixava passar o sol e a lua com sinistros fulgores. Por cima dessa enorme janela prolongavam-se os ramos de uma velha parreira abraçada e retorcida sobre os maciços da torre. O teto era de carvalho enegrecido pelo tempo, excessivamente alto e cheio de extravagantes arabescos, semigóticos e semidruídicos.

No centro do artesonado estava suspensa uma lâmpada de ouro. Tinha a forma de um incensório perfurado caprichosamente, de maneira que as luzes multicolores pareciam serpentinas. Algumas poltronas e candelabros orientais estavam dispersos pelo aposento e, no centro, ficava o leito nupcial, em estilo indiano, esculpido em ébano maciço e coberto por um baldaquino negro como o de uma câmara ardente. Em cada um dos cantos da alcova havia sarcófagos de granito negro, arrancados das augustas campas de Luxor e lavrados com primorosas esculturas. Mas onde a fantasia mais se manifestava era na tapeçaria. As paredes prodigiosamente altas, desproporcionadas até, estavam cobertas de cima abaixo com uma tapeçaria pesada, feita do mesmo tecido que recobria as poltronas, o baldaquino do leito e as sumptuosas cortinas que quase tapavam a janela. Era um tecido de ouro fino, bordado simetricamente com arabescos e grinaldas caprichosas, que se destacavam em negro sobre fundo doirado. Mas o que havia de curioso nesses desenhos era que, em virtude de um processo que já existia na mais remota antiguidade, mudavam de aspeto e de forma. Quando se entrava no aposento, pareciam apenas simples e caprichosas monstruosidades; mas, à medida que se avançava, desaparecia gradualmente esta característica e o visitante via-se rodeado por uma multidão de formas inquietadoras como os cortejos macabros criados pela superstição nórdica ou como os desfiles diabólicos que perturbam os sonhos culposos dos frades. O efeito fantasmagórico dessas figuras de pesadelo aumentava com a passagem de uma corrente de ar contínua, provocada artificialmente, que vinha de trás dos estofos e os fazia ondular em movimentos assustadores.

Tal era a câmara nupcial daquela mansão, onde passei com Rowena Trevanion as ímpias horas do primeiro mês do nosso matrimônio. Devo confessar que não sentia demasiada inquietação; apercebia-me de que minha esposa era taciturna e não nutria grande amor por mim. Mas isso quase me divertia. Eu sentia por ela um ódio quase diabólico e pensava constantemente — e com que intensidade! — em Ligeia, a amada, a augusta, a bela, a morta. Era uma orgia de recordações: comprazia-me com evocar a sua pureza, a sua sabedoria, a sua elevada e etérea natureza, o seu amor apaixonado e idólatra.

Consumia o meu espírito numa chama mais violenta que a que inflamou o seu.

No entusiasmo dos meus sonhos de ópio, eu gritava o seu nome em voz alta durante o silêncio da noite, durante o dia nos mais sombrios e recônditos refúgios do vale, como se a energia ressuscitasse a paixão solene, e o ardor do meu amor pela defunta pudessem fazê-la voltar àquela vida que abandonou; para sempre?

No começo do segundo mês do nosso casamento, Lady Rowena caiu doente. Durante a noite, aumentara-lhe a febre; no meio do delírio, falava de estranhos ruídos produzidos na alcova e que, sem dúvida, eram devidos às influências fantasmagóricas do mobiliário e da tapeçaria.

Mal se tinha restabelecido da sua enfermidade quando esta se agravou nova e subitamente, vendo-se obrigada a guardar o leito, e, desde então, todos os esforços da ciência foram inúteis para lhe devolver a saúde perdida. À medida que o seu mal, tornado crônico, aumentava, crescia nela uma irritação nervosa constante e uma excitação tal que as coisas mais vulgares adquiriam aos seus olhos um terrível aspeto. Nessa altura começou a falar, e cada vez com maior obstinação, em ruídos e movimentos insólitos atrás das cortinas.

Uma noite, no fim de setembro, insistiu com mais energia que nunca na sua preocupação. Despertou de repente, depois de um sonho agitadíssimo, e a modificação brusca do seu rosto enfraquecido encheu-me de ansiedade e de terror. Eu estava sentado à cabeceira da cama, numa das poltronas; minha mulher soergueu-se e, em voz baixa, tornou a falar-me de ruídos que ela escutava, mas que eu não podia ouvir, e de movimentos que ela percebia, mas que eu não podia perceber.

O vento continuava a correr atrás das tapeçarias e procurei demonstrar-lhe — embora, confesso-o, eu não estivesse muito certo disso — que aqueles suspiros meio articulados e aquelas mudanças quase insensíveis nas figuras negras não eram mais do que o efeito natural da corrente de ar. Mas a sua lividez, cada vez mais profunda, demonstrou-me que todos os meus esforços para a tranquilizar eram inúteis. Supus que perdia o conhecimento e aterrou-me a solidão em que estávamos. Como nenhum criado se encontrava ao alcance da minha voz, atravessei a alcova para ir buscar o remédio que o médico aconselhara para estes casos. Ao passar debaixo da luz da lâmpada senti que qualquer coisa de palpável, mas invisível tinha roçado levemente a minha pessoa e vi, sobre a tapeçaria dourada, no centro mesmo do clarão projetado pelo incensório, uma sombra — uma sombra débil, indefinida, de aspeto angélico — tal como poderia ser a sombra de uma sombra. Mas, como estava sob a ação de uma dose excessiva de ópio, não lhe dei a menor importância e não disse nada a Rowena. Encontrei o remédio, atravessei de novo o quarto e enchi o copo que levei aos lábios de minha mulher. Ela tinha recobrado um pouco as forças e bebeu a poção sem auxílio. Então deixei-me cair sobre o divã.

    De súbito, ouvi distintamente um leve ruído de passos sobre o tapete, perto do leito, e, um segundo depois, no preciso instante em que Rowena levava o copo à boca, vi — talvez o sonhasse — vi cair, no copo, como de uma fonte invisível suspensa no ar, três ou quatro gotas de um fluido brilhante, cor de rubi.

Rowena não viu nada: engoliu o líquido sem hesitar e eu não pensei em falar-lhe de uma circunstância que, no fim de contas, talvez fosse filha da autossugestão da minha imaginação excitada, cuja influência mórbida só poderia aumentar o terror de minha mulher — e era porventura o resultado do ópio e das altas horas da noite.

Não posso ocultar, no entanto, que imediatamente após a queda das três gotas vermelhas se deu uma transformação fatal na enfermidade de minha mulher. De tal forma que, na terceira noite, as mãos dos seus servidores a amortalharam e eu fiquei só, com o seu corpo envolto no sudário, nessa câmara fantástica que a recebeu como segunda esposa.

Estranhas visões, que o ópio provocava, voltejavam como sombras em torno de mim. Olhava com olhos inquietos para os sarcófagos, para os cantos escuros do quarto, para as figuras móveis da tapeçaria, para as luzes vermiculares e furta-cores da lâmpada. E, de súbito, o olhar voltou a fixar-se naquele ponto do círculo luminoso onde vira passar a sombra ligeira de uma sombra. Mas desta vez não vi nada; e, respirando já mais livremente, olhei então para o lívido e rígido rosto imóvel sobre o leito. Então acudiram ao meu pensamento todas as recordações de Ligeia. Senti afluir ao meu coração, com a tumultuosa violência da maré, toda aquela dor inefável que sentira ao vê-la a ela também envolta num sudário. A noite avançava e eu continuava com os olhos fixos sobre o corpo de Rowena e com o coração cheio dela, essa ela única que foi o meu amor supremo.

Cerca da meia-noite, ou talvez depois da meia-noite, porque perdi a noção do tempo, um soluço muito tênue, muito leve, mas muito distinto, despertou-me do meu sonho. Senti que vinha do leito de ébano, do leito da morta; apurei o ouvido com a angústia do terror supersticioso. Concentrei o olhar com angustiado esforço, procurando descobrir o menor movimento do corpo. O corpo, porém, jazia imóvel. E, no entanto, era impossível que eu me tivesse equivocado. Tinha a certeza de ter ouvido o soluço e fixei a minha atenção obstinadamente sobre o cadáver. Passaram alguns minutos, e, pouco a pouco, uma ligeira coloração muito débil, quase imperceptível, aqueceu as faces e estendeu-se ao longo das pálpebras cerradas. Sob a ação de um horror e de um terror profundos, senti que as pulsações do meu coração paravam e que os meus membros arrefeciam.

Imaginei logo que tínhamos sido precipitados ao fazer os preparativos fúnebres. Rowena ainda vivia. Era necessário agir imediatamente, mas a alcova estava tão separada da parte da abadia onde dormiam os criados que não podia pedir a ajuda deles sem abandonar a câmara mortuária.

Decidi-me, portanto, a agir sozinho, mas ao olhar novamente para o cadáver notei que a cor desaparecera das pálpebras e das faces: a lividez era mais profunda, os lábios crispavam-se ainda mais com o ríctus espectral da morte. Uma frialdade e uma viscosidade repulsivas estenderam-se rapidamente sobre toda a superfície do corpo, sobrevindo, depois, uma completa rigidez cadavérica. Voltei a cair no divã e abandonei-me novamente ao sonho e à apaixonada evocação de Ligeia.

Decorrera aproximadamente uma hora quando — seria possível, grande Deus? — tive novamente a sensação de que um rumor vago vinha até a mim do leito mortuário. Escutei atentamente e voltei a ouvir um suspiro. Então precipitei-me sobre o corpo e vi, vi claramente que os lábios estremeciam. Um minuto depois abriram-se, descobrindo a linha brilhante dos dentes rosados. Senti que a vista se me obscurecia, que a razão me abandonava, e só por um violento esforço de vontade tive a coragem de dominar os nervos. Agora, sobre a fronte, as faces e a garganta estendia-se uma imperfeita coloração. O corpo fora penetrado por um calor sensível e até se começaram a notar as pulsações do coração. Minha mulher vivia, e eu, cheio de terror, procurei ajudar a ressurreição com fricções e por todos os processos que a experiência e as numerosas leituras médicas me sugeriam.

Mas tudo foi inútil. Subitamente, a cor desapareceu, as pulsações cessaram, o ríctus da morte voltou-lhe aos lábios, e um momento depois todo o seu corpo recobrava a frialdade gelada, o tom lívido, a rigidez completa de um corpo que jazesse na campa há vários dias. Novamente voltei a cair no sonho de Ligeia e de novo — compreendereis que eu trema ao escrever estas linhas? —, de novo um soluço afogado saiu do leito de ébano.

Mas para que narrar minuciosamente os inefáveis horrores daquela noite? Bastará dizer que até madrugada se repetiu muitas vezes o terrível drama da ressurreição. A cada nova queda, a morte era mais rígida e mais irremediável; cada nova agonia parecia uma luta contra um adversário invisível e cada luta era seguida de estranhas alterações na fisionomia de Lady Rowena.

Já perto da madrugada, a morta moveu-se mais distintamente, embora revelando uma morte mais irreparável. Há muito já que eu cessara todo o esforço e todo o movimento e permanecia desesperadamente enterrado na poltrona.

O corpo, como disse, movia-se; as cores voltaram ao rosto com uma energia singular; os membros perderam a sua rigidez, e, exceto o fato de as pálpebras continuarem pesadamente cerradas e o sudário comunicar ao seu rosto o aspeto sepulcral, dir-se-ia que Rowena sacudira por completo as cadeias da morte. Mas a suposição não tardou em transformar-se em certeza. Não pude duvidar por mais tempo quando, levantando-se do leito, vacilante, com passos débeis, os olhos fechados, como uma pessoa perdida num sonho, aquele ser envolto no sudário avançou audazmente até meio do aposento.

Eu não sentia medo, não me movia sequer, porque inúmeros pensamentos inexplicáveis, causados pelo aspecto, pela estatura do fantasma, entraram de improviso no meu cérebro, paralisando-o e petrificando-o. Não me movia, mas contemplava a aparição. Era realmente a viva Rowena que estava na minha frente? Aquilo podia ser realmente Rowena, Lady Rowena Trevanion de Tremaine, a dos canelos louros e olhos azuis?

Por que duvidava? O pano branco tapava-lhe a boca. Porque não havia de ser a boca respirante de Lady Rowena? E as faces? Não eram as rosas meridionais da sua vida? E o queixo, com as suas graciosas covinhas, não era o seu?

Mas crescera ela depois da sua enfermidade? Que inexplicável delírio se apoderou de mim perante esta ideia! De um salto, caí a seus pés. Ela fugiu ao meu contato e libertou a cabeça do horrível sudário. Então, espalhou-se no ar pesado da câmara mortuária uma massa enorme de longos e desordenados cabelos. Eram mais negros que as asas da meia-noite, a hora que tem a plumagem do corvo.

E no rosto que tinha na minha frente abriram-se lentamente, lentamente, os olhos.

— Oh! Enfim! — exclamei. — Como pude enganar-me?

Eram os olhos, os olhos adoravelmente rasgados, os olhos estranhos do meu amor perdido — os olhos de Lady Ligeia.

 


Tradução de autor desconhecido do séc. XIX. Fizeram-se breves adaptações textuais.

 


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