CRÔNICAS MACABRAS DE D. PEDRO I DE PORTUGAL - Narrativas Clássicas Cruéis - Fernão Lopes

 



CRÔNICAS MACABRAS DE D. PEDRO I DE PORTUGAL

Fernão Lopes

(c.1380 - 1460)

 

1

COMO EL-REI MANDOU CAPAR UM SEU ESCUDEIRO PORQUE DORMIU COM UMA MULHER CASADA

 

Era ainda el-rei Dom Pedro[1] muito cioso, assim de mulheres de sua casa, como de seus oficiais e das outras todas do povo, e fazia grandes justiças em quaisquer que dormiam com mulheres casadas ou virgens, e isso mesmo com freiras d’ordem. 

Onde aqueeceu[2] que em sua casa havia um corregedor da corte a que chamavam Lourenço Gonçalves, homem mui entendido e bem razoado cumpridor de todas as cousas que lhe el-rei mandava fazer, e não corrompido por nenhuns falsos oferecimentos que trasmudam os juízos dos homens. E porque o el-rei achava leal e bem verdadeiro, fiava dele muito, e queria-lhe grande bem. E era este corregedor muito honrado de sua casa e estado, e muito praceiro e de boa conversação, e seria então em meia idade. Sua mulher havia nome Catarina Tosse, briosa, louçã e muito aposta[3], de graciosas manhas[4] e bem acostumada[5]. Em esta sazão[6] vivia com el-rei um bom escudeiro, e para muito, mancebo, e homem de prole, e naquele tempo estremado em assinadas bondades, grande justador[7] e cavalgador, grande monteiro e caçador, lutador e travador de grandes ligeirices, e de todas as manhas que se a bons homens requerem, chamado por nome Afonso Madeira, por a qual razão o el-rei amava muito e lhe fazia bem gradas[8] mercês. 

Este escudeiro se veio a namorar[9] de Catarina Tosse, e mal cuidados os perigos que lhe advir podiam de tal feito, tão ardentemente se lançou a lhe querer bem, que não podia perder dela vista e desejo: assim era traspassado do seu amor. Mas, porque lugar e tempo não concorriam para lhe falar como ele queria, e por ter aso de a requerer amiúde de seus desonestos amores, firmou com o aposentador[10] tão grande amizade que para onde quer que el-rei partia, ora fosse vila ou qualquer aldeia, sempre Afonso Madeira havia de ser aposentado junto, ou muito perto do corregedor. E havia já tempo que durava este aposentamento, sempre acerca[11] um do outro; tendo bom jeito e conversação com seu marido, por carecer de toda suspeita. 

Afonso Madeira tangia e cantava, afora sua apostura e manhas boas já recontadas, de guisa[12] que por aso de tal achegamento, com longa afeição e falas amiúde, se gerou entr’eles tal fruto, que veio ele a acabamento de seus prolongados desejos.  E porque semelhante feito não é da geração das cousas que se muito encubram, houve el-rei de saber parte de toda sua fazenda, e não houve d'elo menos sentido que se ela fora sua mulher ou filha. E como quer que o el-rei muito amasse, mais que se deve aqui de dizer, posta de parte toda benquerença, mandou-o tomar dentro em sua câmara, e mandou-lhe cortar aqueles membros que os homens em mor preço tem: de guisa que não ficou carne até aos ossos, que tudo não fosse corto[13]. E pensaram[14] Afonso Madeira, e guareceu[15], e engrossou em pernas e corpo, e viveu alguns anos engelhado do rosto e sem barbas, e morreu depois de sua natural morte. 

 

2

COMO EL-REI MANDOU QUEIMAR A MULHER DE AFONSO ANDRÉ E DE OUTRAS JUSTIÇAS QUE MANDOU FAZER.

 

Quem ouviu semelhante justiça, do que el-rei fez na mulher de Afonso André, mercador honrado, morador em Lisboa, andando justando na rua nova, como era costume, quando os reis vinham às cidades, que os mercadores e cidadãos justavam com os da corte, por festa?

Estando el-rei presente, e havendo informação certa que sua mulher lhe fazia maldade, entendeu que então era tempo de a achar e tomar em tal obra; e, por inculcas, muito escusamente foi ela tomada com quem a culpavam, e mandou-a queimar, e degolar a ele. E o marido, continuando a justa, quando cessou, soube disto parte, e foi-se a el-rei por se queixar do que lhe feito haviam. E el-rei, como o viu, antes que lhe ele falasse, pediu-lhe as alvíssaras do que mandara fazer, dizendo que já o tinha vingado da aleivosa de sua mulher e do que lhe punha as cornas, e que melhor sabia ele quem ela era, que ele.

Que diremos de Maria Roçada, mulher casada com seu marido, que dormira com ela por força, a que então chamavam roçar, por a qual cousa ele merecia morte? E tendo já dela filhos e filhas, viviam ambos em grão benquerença, e ouvindo-a el-rei chamar por tal nome, perguntou por que lho chamavam, e soube da guisa como tudo fora, e que se avieram que casassem ambos por tal feito não vir mais à praça: e el-rei, por cumprir justiça, mandou-o enforcar, e ia a mulher e os filhos carpindo trás ele.

Não valeu, estando el-rei em Braga, rogo de quantos com ele andavam, que pudesse escapar a vida a Álvaro Rodrigues de Grade, um dos bons escudeiros de entre Douro e Minho, e bem aparentado, porque cortou os arcos de uma cuba de vinho a um pobre lavrador, que lhe logo el-rei não mandou cortar a cabeça, tanto que o soube?

E porque o seu escrivão do tesouro recebeu onze libras e meia sem o tesoureiro, mandou-o enforcar, que lhe não pude valer o conde, nem Beatriz Dias, manceba d'el-rei, nem outro nenhum.

E foram aquele dia, com estes dois, onze mortos por justiça, entre ladrões e malfeitores.

Não fique por dizer de um bom escudeiro, sobrinho de João Lourenco Bubal, privado d'el-rei e do seu conselho, alcaide-mor de Lisboa, o qual escudeiro vivia em Avis, honradamente e bem acompanhado. E foi à sua casa, por mandado do juiz, um porteiro, para o penhorar, e ele, por cumprir vontade, depenou-lhe a barba e deu-lhe uma punhada.

O porteiro veio-se a Abrantes, onde el-rei estava, e contou-lhe tudo como lhe adviera. El-rei, que a de parte ouvia, como acabou de falar, começou de dizer contra o corregedor que aí estava:

– Acorrei-me aqui, Lourenço Gonçalves, cá um homem me deu uma punhada no rosto, e me depenou a barba!

O corregedor, e os que o ouviram, ficaram espantados porque o dizia. E mandou à pressa que lh'o trouxessem preso, e não lhe valesse nenhuma igreja. E foi assim feito, e trouxeram-lho a Abrantes, e ali o mandou degolar, e disse:

– Dês que me este homem deu uma punhada e me depenou a barba, sempre me temi dele que me desse uma cutelada, mas já agora sou seguro que nunca ma dará!

 

3

COMO EL-REI MANDOU DEGOLAR DOIS SEUS CRIADOS PORQUE ROUBARAM UM JUDEU E O MATARAM.

 

Assim adveio que, pousando el-rei nos paços de Belas, que ele fizera, dois seus escudeiros que grão tempo havia que com ele viviam, sendo ambos parceiros, houveram conselho[16] que fossem roubar um judeu que pelos montes andava vendendo especiaria e outras cousas. E foi assim, de feito, que foram buscar aquela suja presa, e roubaram-no de tudo, e, o pior disto, foi morto por eles. Sua ventura, que lhe foi contraria, azou de tal guisa que foram logo presos e trazidos a el-rei, ali onde pousava.

El-rei, como os viu, tomou grão prazer por serem filhados, e começou-os de perguntar como fora aquilo. Eles, pensando que longa criação e serviço que lhe feito haviam, o demovesse a ter algum jeito com eles, não tal como tinha com outras pessoas, começaram de negar, dizendo que de tal cousa não sabiam parte.  

Ele, que sabia já de que guisa fora, disse que não haviam por que mais negar, que ou confessassem como o mataram, senão, que a poder de cruéis açoutes lhe faria dizer a verdade. Eles em negando viram que el-rei queria pôr em obra o que lhe por palavra dizia, confessaram tudo assim como fora; e el-rei, sorrindo-se, disse que fizeram bem, que tomar queriam mister de ladrões e matar homens pelos caminhos, de se ensinarem primeiro nos judeus, e depois viriam aos cristãos.  

E em dizendo estas e outras palavras, passeava perante eles de uma parte a outra, e parece que lembrando-lhe a criação que neles fizera, e como os queria mandar matar, vinham-lhe as lagrimas aos olhos, por vezes. Depois, tornava asperamente contra eles, repreendendo-os muito do que feito haviam. E assim andou por um grande espaço.

Os que aí estavam, que aquesto[17] viam, suspeitando mal de suas razões, afincavam-se muito a pedir mercê por eles, dizendo que por um judeu astroso[18] não era bem morrerem tais homens, e que bem era de os castigar por degredo ou outra alguma pena, mas não mostrar contra aqueles que criara, pelo primeiro erro, tão grande crueza.  

El-rei, ouvindo todos, respondia sempre que dos judeus viriam depois aos cristãos. Enfim destas e outras razões, mandou que os degolassem.  E foi assim feito.        

 



[1] Dom Pedro I de Portugal (1329 – 1367), chamado O Justiceiro, O Cruel ou O Cru.

[2] Aconteceu.

[3] Elegante.

[4] Desenvoltura.

[5] Dotada de bons costumes.

[6] Época, conjuntura.

[7] Praticante das jutas, combates medievais.

[8] Grandes.

[9] Enamorar-se.

[10] Aposentar: fazer pouso, permanecer junto a alguém; aposentador: que permanece sempre junto a alguém; aposentamento: proximidade frequente.  

[11] Perto, próximo.

[12] Modo, maneira.

[13] Cortado.

[14] Aplicaram curativos.

[15] Curou-se.

[16] Combinaram; ajustaram.

[17] Isto.

[18] Nascido sob a má influência de um astro; desventurado; desgraçado.

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