O BEIJO - Conto de Terror - Paulo Soriano


O BEIJO

Paulo Soriano

 

Quando finalmente me aproximei de Camilla – oh! como hei de me esquecer? – algo de invisível sustinha as nuvens adensadas, pesadas e sinistras. Havia uma dança macabra num céu de chumbo. Uma massa de vapores escuros contorcia o firmamento, onde a Lua adernava na correnteza atroz dos cúmulos-nimbos convulsos. Num último espasmo, algo rompeu a tênue película que separava o tumulto do céu da tranquilidade da terra. E uma torrente fria, caudalosa como um rio que se precipita em cascatas, desabou violentamente sobre nós.

Olhei para Camilla, admirada. A água, que penetrava em seus cabelos como agulhas regeladas, escorria por sua face em múltiplos e estreitos córregos, e velozmente diluía o halo sombrio que embaçava o seu lindo semblante. O que se revelava era algo que transcendia a beleza. Algo mágico e violento, que fez o meu coração cintilar, pôs minha voz a estremecer; e que induziu as minhas mãos a expulsarem gestos involuntários.

Eu não percebia que a tocava. Mas sentia os seus dedos molhados afundarem em meus cabelos delicadamente. Nossas faces estavam juntas, encharcadas de água e de delírio.

Nossos lábios se tocaram. Ela sussurrou o meu nome

 (Carolline...)

e eu o dela  

(Camilla...).

Seu espírito penetrou em minha boca e eu me vi dentro de sua alma.

 

Era o beijo.

Era o precipício.

Era a delícia.

Era o horror.

 

 



Mergulhei na alma de Camilla. Percorri o antro adensado de sombras e de miasmas. Vaguei pela delícia dos vales lodosos e pela volúpia de pântanos desolados. Muito de minha essência dissolvia-se naquele labirinto tenebroso e deixava-se capturar pelas viscosidades dos caminhos tortuosos. E nos confins de sua alma eu experimentei a aspereza doce dumas asas negras, que alçavam voos nas profundezas e se recolhiam sobre mim num abraço fatal.

Meu corpo estremeceu. Algo de muito precioso me fora furtado naquele beijo!  

Aos poucos, minha alma voltava ao corpo com uma súbita sensação de estranheza. Aquele não mais era o mesmo corpo que servira de morada à minha alma... E nem era aquela a alma que dantes animava o meu corpo. Porque a minha alma, contaminada pelos vales lodosos e pântanos desolados, mergulhara num corpo lacerado pela decrepitude.

O abraço de Camilla afrouxou. Minhas mãos, arruinadas, tombaram inertes. E o que veio foi a queda; veio  o desprezo, veio a desolação...

Vi, das profundezas de meus olhos opacos, que Camilla se afastava de mim. E se ia mais bela do que antes! E levava de mim a minha juventude e a minha formosura, que avidamente acrescentara à sua beleza deslumbrante, alongando os seus anos vindouros na proporção da minha juventude irremediavelmente perdida!

Ó, belo demônio! Súcubo encantador, que nos rouba o encanto da face e nos impõe o semblante de um demônio! Por que não acreditei em tua existência?

  Pois já não era sobre a maciez da minha pele que a torrente despejava toda a sua fúria. Ela percorria velozmente a miríade de rugas crespas, agora irremediavelmente escavadas na face. A água fria enchia e transbordava as órbitas duns olhos fundos, fluindo e rastejando como víboras para o poço profundo em que se transformara a minha boca.

Camilla se foi. 

Agora serão outras as belas jovens que sentirão o estigma de um beijo doce e traiçoeiro, e provarão a delícia do furto imediato da própria beldade.

E, em meio ao horror que era a visão de minhas mãos e braços enrugados, eu alongava os olhos cavernosos, procurando capturar-lhe pela última vez a bela imagem, até escravizá-la no fundo das retinas.  Porque, se pudesse ter de volta a beleza e a juventude tão subitamente arrebatadas, eu as daria novamente por outro beijo de Camilla. 

 

Comentários

  1. "...se pudesse ter de volta a beleza e a juventude tão subitamente arrebatadas, eu as daria novamente por outro beijo de Camilla. "
    Uaaau! Que beijo! Alguns beijos são mesmo enganosos.

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