KEHINDE - Conto de Terror - Henry Evaristo

KEHINDE
Henry Evaristo
(1975 - 2010)
"Give us
time... Let the girl die... I am no one... I am no one... Fear the priest...
Fear the priest..."
The Exorcist
Encontrei
no Saara uma menina possuída por um demônio. Por cinco longos anos o mal a dominava
e a fazia vagar entre os animais agrestes, nos ermos, e estar entre eles como
um igual. Pelas cercanias ela corria com seus vestidos esvoaçantes em meio às
manadas de quadrúpedes dos beduínos; e os atormentava durante a noite com seus
uivos, que emitia das vastidões do deserto por onde andava. Seus cabelos
desgrenhados formavam uma aura negra em torno de sua cabeça e encobriam
parcialmente os olhos, que eram como duas pedras negras incandescentes. De sua
língua não saiam senão impropérios e blasfêmias e seu corpo, corrompido por
pedaços de pau e outros artefatos pontiagudos, exalava um cheiro pútrido, misto
de urina, fezes e suor; um suor inumano, de cavalo, de camelo. Diziam que sua
boca emanava um odor de coisas velhas, mofadas, mortas.
Quando
a vi, no fundo do quintal, ela estava a perseguir pequenas criaturas que
mergulhavam na areia quente; como um cão ou um gato que tenta brincar com sua
presa antes de devorá-la, ela os abocanhava e os atirava para cima antes de
quebrar suas espinhas. Em verdade já devia estar farta, pois seus lábios
retorcidos apresentavam uma tonalidade vermelha, como sói acontecer às bestas
assim que acabam de se alimentar.
"Kehinde!"
Gritou sua mãe no lusco-fusco do dia que findava. Mas a menina não ligava,
andava a correr em busca de um animalzinho sobrevivente que insistia em
resistir.
"Kehinde,
venha ver o padre branco que lhe falei, da capital!". A mãe, do umbral da
porta de sua casa, buscava com os olhos, sempre que podia, uma imagem de nosso
senhor postada na parede da sala humilde.
A
menina, ao ouvir que eu era um padre, de imediato, parou de perseguir o animal
e se virou para mim. Ao longe sua silhueta recortada contra o poente lembrava
muito mais um horripilante espantalho.
De
repente aquela criatura desengonçada e esquálida avançou para mim e foi como se
o próprio diabo estivesse dominando seus pequenos pés. Antes que eu pudesse
esboçar qualquer reação ela me alcançou e pude então ver com clareza o nível
das mazelas que a entidade já provocara em seu corpo franzino.
Sua
carne estava coberta de cortes a arranhões. Havia feios hematomas por todo o
corpo, pois eles eram tantos que saíam de debaixo da roupa para as partes
expostas da pele. As mãos e pés eram grossos de cavalgar entre os animais e
seus dentes eram amarelos de comer entre os bichos em todos os lugares; por um
instante me pareceu, na penumbra do início da noite, que eles estavam mais
compridos e pontiagudos do que o aceitável.
A
menina ficou parada na minha frente, oscilando lentamente. Tinha no semblante
uma expressão risonha, mas desligada de tudo. Como se estivesse a se divertir
com algo que só ela via em algum lugar que não aquele em que estávamos. Coisa
estranha! De algum lugar dentro de seu corpo brotava uma música nauseante que
dava arrepios; uma espécie de sibilar harmonioso.
Ela
ergueu o dedo indicador para mim e eu me mantive quieto para ver o que ia
fazer. De súbito o dáctilo começou, como se num movimento involuntário, a
descrever sinais no ar. E ele se contorcia de forma horrenda, e estalava ao
encostar a ponta da unha no meio da mão pelo lado de cima. Depois todos os
outros começaram a fazer os mesmos movimentos e foi então que veio a coisa mais
terrível que já tive que presenciar. Pareceu primeiro um ruído de engrenagem
velha entrando em movimento e, depois, aquilo foi tomando forma como uma voz
que saía da barriga da menina.
"O
padre! O padre! O padre!" Repetia sem parar enquanto o sorriso da criança
aumentava quase a ponto de rasgar sua boca. "Tem muito espaço aqui para o
senhor também, padroco!". Com um arrepio vi a língua de Kehine pender para
fora da boca. Ela ou o demônio havia lacerado o órgão com algum objeto cortante
de forma a fazer com que ficasse bifurcado; dividido em dois como as línguas
dos répteis. E havia, junto ao sangue, um limo branco que escorria dela e que a
menina tentava lançar em mim, agitando a cabeça convulsivamente.
Depois
ela começou a andar em círculos com extrema rapidez, e segurava as mãos para
trás. A sua mãe, petrificada na porta da casa, chorava copiosamente em meio às
ladainhas que as velhas africanas rezavam no interior da moradia. Todas
esperavam que eu, o padre inglês, resolvesse o horror da mocinha e a dor de
todos. Mas eu, por mim, estava acabado. Tudo o que queria era ficar longe dali;
ir embora imediatamente daquele lugar danado. Foi com esta intenção que apertei
firme a valise que trazia entre as mãos.
A
entidade então parou de correr em círculos e se virou de novo para mim. Já
estava totalmente escuro neste momento, mas pude ver as duas brasas vermelhas
em que se haviam tornado seus olhos assomando em meio à massa de cabelos negros
desgrenhados e espessos. E então falou, enquanto o frágil corpo que habitava
parecia estar à beira de um colapso de cansaço.
"Não
vais usar as bugigangas que trouxeste aí dentro desta pasta, padre?"
E
me encarou esperando qualquer afirmação minha. Tinha um semblante feroz,
terrível, que me fazia desviar o olhar quase que involuntariamente e me
arrepiava a pele. No entanto, por uma fração de segundo, pareceu que podia
temer que minha resposta fosse positiva mas eu nada mais podia falar; o medo me
dominara totalmente.
Então,
em meio a gritos pavorosos, o inimigo vociferou a mesma frase que havia dito
antes, porém agora em outras línguas, num arremedo canhestro e incômodo de
sotaques estrangeiros:
"¿Usted
no va a utilizar los adminículos que usted trajo dentro de esta cartera,
sacerdote?"
"Are
you not going to use the gadgets you brought inside this briefcase, priest?"
"Willst
du diese dinger die du in Tasche gebrach hast, nicht anwenden, Pater?"(1)
Da
casa próxima vinham os sons das rezas. O demônio sorriu.
"Velhas
frígidas! Vão rezar até o fim dos tempos! Daqui não saio. Posso fazer tudo
daqui. Posso te visitar na china, a qualquer hora, sem deixar livre esta
cadela!”
Eu,
de olhos arregalados diante daquela abominação, nada podia fazer a não ser
tentar conter o tremor que de mim se apossava.
"Toma!"
Esturrou a coisa com um som semelhante ao mugido de um boi. Ele levantara o
vestido da menina e começara a passar a língua pela pele lânguida; e aquilo,
que se assemelhava a um apêndice intumescido, estava tornando-se cada vez
maior. Na escuridão da noite pude ver insetos que corriam sobre a carne
lacerada; estava infestada de carrapatos e larvas cobrindo as bordas das
inúmeras feridas infeccionadas.
Para
mim isto teria sido a gota d'água se, logo em seguida, algo ainda mais
aterrador não tivesse tomado lugar na história.
O
ser dentro da menina Kehinde aproximou-se ainda mais de mim e me segurou pelo
pescoço como a me estrangular; ao que todos da casa acorreram gritando em meu
auxílio.
"Cobarde!
Cobarde!" Esbravejava a coisa. "Da próxima vez me mandem um homem,
suas malditas!"
Então,
sem que ninguém pudesse impedir, aquele horror saltou para o alto de uma árvore
próxima onde ficou a se jogar de um galho para o outro como o fazem os macacos.
E dava gargalhadas medonhas que mais se assemelhavam ao guinchar de manadas de
porcos num matadouro. Seus berros se desprendiam na noite africana como a
espalhar maus presságios por entre os ventos do deserto.
Aqui
eu desisti de tudo! Dando as costas ao povo simples daquela vila amaldiçoada eu
corri de volta ao meu veículo estacionado na entrada da propriedade. Corri dali
como um rato que abandona um navio afundando e a morte da pequena nativa já me
pesava nas costas.
Na
estrada eu parei e fiquei muito tempo meditando sobre tudo o que testemunhara.
Decidi que não tinha fé suficiente e, abrindo a porta do carro, atirei longe a
minha valise com um exemplar do Ritual Romano, da Bíblia Sagrada e outros objetos
pessoais como estola e crucifixo. Desde então não sou mais um sacerdote e
nenhuma igreja jamais logrou novamente avistar minha figura encurvada entre
seus fiéis.
A
última e terrível lembrança que guardei daquele lugar foi a de ter olhado de
volta em direção à grande árvore que dominava a propriedade da família da pobre
Kehinde e ter avistado o ser medonho que a assolava e a mataria em breve. Mesmo
na distância imersa na mais pétrea escuridão desértica aquele ser me fez ver
sua careta zombeteira ao mesmo tempo em que me mostrava mais uma vez sua língua
bifurcada. E passava suas mãos encardidas e carregadas de lascívia pelo corpo
debilitado de sua vítima fazendo-a erguer-se do meio dos galhos da copa da
árvore, mexendo com violência os quadris e os pequenos seios. Entrei novamente
no veículo, dei partida e me distanciei dali para sempre.
Hoje
sou um velho e vivo em solidão. Jamais me foi possível constituir família. Não
tenho fé em nada que venha do bem. Sou um estranho entre os outros homens. Não
tenho paz em nenhum segundo de minha vida e durmo, muito pouco, apenas durante
o dia. Faz 30 anos que tudo aconteceu e, desde então, toda noite, uma sombra
escura que emite um lamento pavoroso se esgueira pela casa e se posta em minha
cabeceira. Ela vem dos campos, dos descampados, dos cemitérios. Ela vem dos
desertos solitários e não me deixa esquecer. Parece que me vela, me vigia para
que eu não resolva tirar minha própria vida. É como se quisesse guardar minha
alma... Para outrem! Às vezes fico sentado na cama vendo-a e ouvindo seu pranto
dilacerante até o amanhecer. Já tentei falar, mas só fiz com que sua dor
aumentasse.
A
todo o momento lembro que minha hora está próxima. Diante da dor profunda do
espírito que é a sombra que me vigia, emerge à memória a frase que o demônio me
disse no deserto em minha juventude:
“Posso
te visitar na China, a qualquer hora, sem deixar livre esta cadela!”.
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(1) Agradecimentos especiais à Kate Weiss,
moderadora do site Recanto das Letras, pela tradução da frase para o
alemão. (N. do A.)
Adorei.
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