A CONDESSA DOS CÁRPATOS - Narrativa Clássica de Terror - Franz Hartmann

 


A CONDESSA DOS CÁRPATOS

Franz Hartmann

(1838 – 1912)

Tradução de Paulo Soriano

 

Em 10 de junho de 1909, um importante jornal de Viena (o Neues Wiener Journal) publicou a notícia de que o castelo de B* tinha sido queimado pela população. A causa do incêndio residiria em que, havendo uma grande mortandade entre os filhos dos camponeses da região, acreditava-se que aquele infortúnio se devia ao assédio de um vampiro, supostamente o último conde B*, que, depois de morto, adquiriu semelhante reputação. O castelo, que fora outrora uma fortificação erigida contra os turcos, situava-se numa parte selvagem e desolada dos Cárpatos. Não era habitado, porque se dizia que era mal-assombrado, e apenas uma ala era usada como moradia para o caseiro e sua esposa.

Quando li a citada notícia, eu estava num café em Viena, na companhia de um velho amigo, que é um ocultista experiente e editor de um conhecido jornal, e que havia passado vários meses na vizinhança do castelo.

Dele obtive o seguinte relato, e parece que o vampiro em questão não era, provavelmente, o velho conde, mas sua linda filha, a condessa Elga, cuja fotografia, tirada da pintura original, eu obtive.

Disse-me o meu amigo:

 “Há dois anos, eu morava em Hermannstadt e, estando envolvido na construção de uma estrada, cujas obras se desenvolviam nas montanhas, muitas vezes aproximei-me do antigo castelo. Lá, conheci o velho caseiro e sua esposa, que ocupavam uma parcela de uma ala edifício segregada de seu corpo principal e, portanto, distante das aparições que os camponeses da Valáquia afirmavam ter visto quando vagavam pelas redondezas depois do anoitecer.

Tudo o que pude deduzir foi que o velho conde era viúvo e tivera uma linda filha, que um dia morreu de uma queda de seu cavalo. Logo depois, padeceu o velho conde de uma morte misteriosa. Pai e filha foram enterrados em um cemitério solitário, pertencente a uma aldeia vizinha.

Pouco depois da morte dos castelões, uma mortandade incomum foi notada entre os habitantes da aldeia: várias crianças e até alguns adultos morreram sem qualquer enfermidade aparente. Eles simplesmente definhavam. E assim começou o rumor de que o velho conde havia se tornado um vampiro após sua morte. Não resta dúvida de que ele não era santo, pois era viciado em bebida, e algumas histórias chocantes circulavam sobre sua conduta e a de sua filha. Todavia, se havia alguma verdade nisto, não estou em posição de afirmar.

Posteriormente, a propriedade passou à posse de ——, um parente distante da família, que é um jovem oficial de um regimento de cavalaria em Viena. Parece que o herdeiro tratou de aproveitar a vida na capital, sem se preocupar com o velho e desolado castelo. Sequer o visitou, limitando-se a dar instruções por carta ao caseiro, dizendo-lhe apenas para manter as coisas em ordem e fazer na construção os reparos que fossem necessários. Assim, o morador do castelo era realmente o senhor da casa e ofereceu sua hospitalidade a mim e aos meus amigos.

Certa noite, eu e meus dois assistentes — o Dr. E*, um jovem advogado, e o Sr. W*, um literato — fomos inspecionar as instalações. Primeiro, fomos aos estábulos. Não havia cavalos, pois haviam sido vendidos. Mas o que atraiu especialmente a nossa atenção especial foi uma carruagem antiga e estranha, com ornamentos dourados, que ostentava os emblemas da família. Em seguida, inspecionamos os quartos, passando por algumas galerias e corredores sombrios, que podem ser encontrados em qualquer castelo antigo. Não havia nada de notável na mobília; mas, em um dos corredores, pendia em uma moldura uma pintura a óleo representando uma dama com um grande chapéu e vestindo um casaco de pele. Todos nós ficamos involuntariamente surpresos ao ver este retrato, não tanto por causa da beleza da senhora, mas por causa de a expressão misteriosa que havia em seu olhar. E o Dr. E*, depois de olhar para a foto por um momento, de repente exclamou:

—Que estranho! A imagem fecha os olhos e os abre novamente, e agora começa a sorrir!

Pois bem, o Dr. E* é uma pessoa muito sensível, que mais de uma vez teve alguma experiência no espiritismo, e decidimos formar um círculo com o propósito de investigar este fenômeno. Assim, na mesma noite, sentamo-nos a uma mesa em uma sala contígua, formando uma corrente magnética com as mãos. Logo a mesa começou a se mover e o nome Elga foi soletrado. Perguntamos quem era essa Elga e a resposta foi esta:

— A dama cuja foto vocês viram.

— A senhora está viva? — perguntou o Sr. W*.

Esta, pergunta, em vez de respondida, foi contornada.

—Se esta for a vontade do Sr. W*, aparecerei a ele, fisicamente, esta noite, às duas horas.

W* consentiu, e agora a mesa, que parecia dotada de vida,  manifestava grande apego por W*: ergueu-se sobre duas pernas e pressionou contra seu peito, como se pretendesse abraçá-lo.

Perguntamos ao castelão quem aquele quadro representava. Mas, para nossa surpresa, ele não sabia. Disse que era a cópia de um quadro pintado pelo célebre pintor Hans Markart[1], de Viena, e que fora comprado pelo velho conde, porque seu aspecto demoníaco o agradava muito.

Saímos do castelo e W* retirou-se para o seu quarto numa estalagem a meia hora de viagem de distância daquele lugar. Ele tinha uma mentalidade um tanto cética: embora não acreditasse firmemente em fantasmas e aparições, não negava prontamente a sua possibilidade. Ele não estava com medo, mas ansioso para ver o que resultaria do pacto que fizera na sessão espírita e, com o propósito de se manter acordado, sentou-se e começou a escrever um artigo para um jornal.

Por volta das duas horas, ele ouviu passos na escada e a porta do corredor se abriu. Ouviu-se o farfalhar de um vestido de seda e o som dos pés de uma senhora andando de um lado para o outro no corredor.

Pode-se imaginar que ele ficou um tanto assustado. Mas, tomando coragem, disse a si mesmo: “Se esta é Elga, deixe-a entrar”. Então a porta da sala se abriu e Elga entrou. Vestia-se elegantemente e parecia ainda mais jovem e sedutora do que no retrato. Havia uma sala do outro lado da mesa onde W* escrevia, e lá a dama se postou silenciosamente. Não falava, mas seus olhares e gestos não deixavam dúvidas quanto a seus desejos e intenções.

O Sr. W* resistiu à tentação e permaneceu firme. Não se sabe se o fez por princípio, timidez ou medo. Seja como for, ele continuou a escrever, olhando de vez em quando para a visitante e desejando silenciosamente que ela fosse embora. Por fim, depois de meia hora, que lhe pareceu imensamente longa, a senhora partiu da mesma maneira que havia chegado.

Esta aventura não tirou a paz de W* e, por conseguinte, organizamos várias sessões no velho castelo, onde uma variedade de fenômenos estranhos aconteceram. Assim, por exemplo, quando a criada foi acender o fogo do lareira, a porta do cômodo se abriu e Elga apareceu. A jovem, apavorada, saiu correndo do quarto e, tomada de terror, caiu da escada com a lamparina na mão, que se quebrou e quase incendiou as suas roupas. Lamparinas acesas e as velas se apagavam quando aproximadas do quadro, e tantas outras manifestações aconteceram que seria tedioso descrevê-las. O seguinte incidente, contudo, não deve ser omitido.

Na época, o Sr. W* almejava o cargo de coeditor de um certo jornal e, alguns dias após a aventura acima narrada, ele recebeu uma carta na qual uma nobre senhora, de alta posição social, lhe oferecia, a este propósito, o seu patrocínio.  Pedia ao escritor que fosse a um certo lugar, naquela noite, onde encontraria um cavalheiro que lhe daria mais detalhes. Lá chegando, foi recebido por um desconhecido, que lhe disse que vinha em nome da condessa Elga, e esta dama o convidava a um passeio de carruagem. Disse-lhe que ela o esperaria à meia-noite em num lugar onde duas estradas se cruzavam, não muito longe da aldeia. O estranho, então, desapareceu de repente.

Todavia, parece que o Sr. W* teve algumas dúvidas quanto ao encontro e o passeio. Assim, contratou um policial para ir, à meia-noite, ao local designado e ver o que aconteceria. O policial acorreu ao local e relatou, na manhã seguinte, que nada vira senão a conhecida e antiquada carruagem do castelo, com dois cavalos negros, parados ali como se esperassem por alguém, e que, como não teve ocasião de interferir, apenas esperou até que a carruagem se pusesse em movimento. Quando interrogaram o morador do castelo sobre o caso, jurou que a carruagem não tinha saído naquela noite e, na verdade, não poderia tê-lo feito, pois não havia cavalos para puxá-la.

Mas não é tudo. No dia seguinte, encontrei um amigo, que é um grande cético e descrente de fantasmas, e sempre zombava dessas coisas. Agora, porém, ele parecia estar muito sério. Disse-me:

— Ontem à noite algo muito estranho me aconteceu. Por volta da uma hora desta manhã, voltei de uma visita tardia e, quando passei pelo cemitério da aldeia, vi uma carruagem com ornamentos dourados parada na entrada. Fiquei a imaginar por que aquilo estaria acontecendo em uma hora tão incomum e, curioso para ver o que aconteceria, esperei. Duas senhoras, elegantemente vestidas, saíram da carruagem. Uma delas era jovem e bonita, mas lançou-me um olhar diabólico e desdenhoso quando as duas passaram e entraram no cemitério. Ali, foram recebidos por um homem bem vestido, que saudou as senhoras, e assim falou com a mais jovem:

—Ora, dona Elga!  De volta, tão cedo?

Tive uma sensação tão estranha que saí abruptamente e corri para casa.

Este assunto não foi explicado; mas certas experiências que subsequentemente fizemos com o retrato de Elga revelaram alguns fatos curiosos.

Olhar a foto por um certo tempo me causou uma sensação muito desagradável na região do plexo solar. Comecei a não gostar do retrato e me propus destruí-lo. Fizemos uma sessão na sala ao lado; a mesa manifestou grande aversão à minha presença. As batidas disseram que eu deveria sair do círculo e que a imagem não deveria ser destruída. Ordenei que trouxessem uma Bíblia e li o início do primeiro capítulo de São João. Em sequência à leitura, o Sr. E* (o médium acima mencionado) e outro homem presente afirmaram ter visto o rosto da imagem se contorcendo. Virei a moldura e espetei a parte de trás do retrato com meu canivete em diferentes lugares, e o Sr. E* e outro homem sentiram todas as picadas que eu fizera, embora tivessem se retirado para o corredor.

Eu fiz o sinal do pentagrama sobre a imagem e, novamente, os dois cavalheiros afirmaram que a imagem na moldura contorcia terrivelmente a sua face.

Pouco depois fomos chamados e deixamos aquele país. De Elga, nada mais ouvi falar.”

 

Fonte: Vampires and Vampirism, de Dudley Wright.
Imagem: Hans Makart.

 



[1] Hans Makart (1840 – 1884), pintor austríaco.


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