A LEBRE - Conto Clássico Sobrenatural - Charles Nodier
A LEBRE
Charles Nodier
(1780-1844)
Tradução de Paulo Soriano
Um
amigo meu, um honesto agricultor, era um caçador determinado. Era visto, desde
o nascer do dia, a saltar valas, galgar colinas e perseguir a sua presa até as
suas últimas trincheiras.
Certa
tarde, vergado pelo cansado e muito mal-humorado, o meu amigo tomou, tristonho,
o caminho de casa com o bornal vazio. Uma lebre fugiu-lhe aos pés. O caçador
disparou, mas errou o tiro. O seu mau humor redobrou, mas desapareceu assim que
ele viu a lebre escondendo-se a cem passos de distância. Recarregou a escopeta,
disparou e perdeu mais dois tiros. Não podia entender como como havia sido tão
inábil. Justamente ele, que jamais disparou em vão.
Resmungando,
retomou o caminho e viu a lebre sentada sobre as patas traseiras, cofiando
tranquilamente os bigodes.
—
Desta vez – disse o caçador —, não mais me afrontarás!
Então,
mirando com aquela precisão que jamais o decepcionou, faz o disparo, certo de
que abatera a vítima. Vã ilusão. A lebre fugiu alguns passos de distância,
parecendo escarnecer de seu inimigo. Arrebatado pela ira, o intrépido caçador
jurou persegui-la até os confins da Terra. Cumpriu a sua palavra, de modo que,
ao cabo de algumas horas, havia esgotado toda a munição que levava, malgrado
ainda visse o malicioso animal a provocá-lo, a poucos passos adiante.
Sem
mais conter-se de tanta raiva, o meu amigo revolveu o fundo do saco e encontrou
uma carga de pólvora. Mas não havia chumbo. Já não sabia o que fazer quando lhe
ocorreu a ideia de vergar moedas de seis liards e de seis sous e fazer
projéteis com elas. À custa de muito empenho e paciência, conseguiu recarregar
a escopeta, e já se dispunha a disparar, quando a lebre mudou repentinamente de
aspecto e foi substituída por uma figura humana, que dirigiu ao caçador estas
palavras:
—
Deixa de perseguir-me, desgraçado! O céu me permitiu retomar a forma de uma
criatura humana para impedir que cometas um crime. Saiba que eu sou o teu avô.
Há cinquenta anos, vivo nesta planície sob a forma de uma lebre e minha
penitência deve prolongar-se por mais cinquenta. Se queres sofrer a mesma pena,
evita teus pecados.
Quando
concluiu tais palavras, converteu-se novamente em lebre e deixou o seu neto
estupefato, a tremer de pavor.
Desde
este dia, o meu amigo jamais ousou atirar numa lebre.
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