A LENDA DO CÓLERA - Conto Clássico Fantástico - Aurélien Scholl
A LENDA DO
CÓLERA
Aurélien Scholl
(1833 – 1902)
I
Como
é belo o país dos sonhos, com suas misteriosas cidades, povoadas de fadas e
silfos radiantes! Quantas vezes, em minhas noites felizes, tendo-me recolhido
com a lembrança do um meigo sorriso, percorri, com os pés em uma nuvem, essas
estranhas imensidades que patenteavam a meus olhos o Sol enganador!
Ora,
eram luxuriantes campinas, bosques de magnólias e verdes tapetes de musgo,
cavernas profundas, leitos de rosas desfolhadas, canções e suspiros!
Ora,
báquicos folguedos e burlescas folias, céus rubros, árvores azuis, abóbadas de
cristal, e ardentes oceanos de opala. E eu prostrava-me em presença desse
gigante desconhecido! As flores extasiavam-se em amorosos delírios e os
pássaros, salpicados de pérolas, balouçavam-se com celestes harmonias. Vi, em um
país deslumbrante de luzes, sublimes palácios, cujos pórticos eram arco-íris,
vi templos vivos, formados de mulheres nuas, em pé, deitadas, direitas,
curvadas, abraçadas, formando mágicas colunatas e arcos que se riam! De
repente, sob um céu de cobre, elevavam-se alpes ameaçadores, contendo, em suas
vertentes de granito, terríveis potências. O esqueleto da Terra rangia
horrivelmente e, entre rugidos dos elementos desencadeados, blasfêmias e ranger
de dentes, abismava-se o mundo em um mar de betume, de enxofre, de gelo e
obscuridade...
II
Julga
que não existem esses mundos, por onde tantas vezes passeia a nossa alma? Não
são os sonhos aspirações à uma região etérea, de que ainda nos resta a
lembrança? Respondam-me, planetas desconhecidos, estrelas brilhantes, que
enfeitam cada noite o céu, como se fosses um toucado de baile, nuvens brancas,
que flutuam de um a outro hemisfério, respondam-me; e, se não for assim, serei
um louco, como algumas vezes me chamam. Mas, quem sabe? Talvez seja a loucura
uma mui poderosa aspiração da alma, em que ela, retida apenas por um fio, e já
prestes a voar, vai abandonando a metade brutal do homem, o corpo, que deve
extinguir-se pouco a pouco.
Seja
o que for, conta-se que, em consequência de um cataclismo, um desconhecido caiu
um dia um uma planície da Arábia pétrea. Nunca um filho do homem foi mais alvo
e mais belo. Seu olhar era tão brilhante como um raio do Sol. Uma moça, filha
do país, dele apaixonou-se loucamente. A seus pés, arrebatada em êxtase,
passava ela seus dias a contemplá-lo. E ele, com seus olhos de chama, queimou-lhe
a vista. E a pobre, cega, conservava os olhos mortos sempre fixos nas pupilas
diamantinas do gênio. Ele aspirava-lhe a vida como o Sol aspira o nevoeiro. Ela
em breve morreu.
III
O
gênio, desesperado, percorreu toda a Terra, sem achar outra mulher que lhe
agradasse. Semeava a morte por onde passava. Seu olhar fulminava os homens e
murchava as plantas.
Muitos
soberanos mandaram exércitos inteiros para o destruir. Mas, logo que ele olhava
em derredor de si, caíam os soldados, como a erva sob o gume da foice.
IV
Continuou
assim as suas peregrinações vagabundas, e continua ainda. Chamam-no cólera.
Talvez você tenha visto, de noite, um jovem alto, pálido e magro, eternamente
envolvido em um largo manto! Desgraçado daquele a quem ele contemplou um só
instante, porque é fulminado pela morte. O homem ignora sempre como um só olhar
seu pôde envenenar-lhe o gérmen da vida.
É
um erro ter-se dado o nome de cólera a uma moléstia que nunca existiu. Talvez
que em outro planeta fôssemos também dotados de alguma propriedade singular.
Não
há enfermidade que a um tempo nos torne amarelos, verdes, azuis — cores essas
tão agradáveis à vista.
Tradução de autor
desconhecido.
Fonte: “A Abelha” (RJ),
edição de 12 de janeiro de 1856.
Comentários
Postar um comentário