CORCUNDA - Conto Macabro Humorístico - Luiz Raimundo
CORCUNDA
Luiz Raimundo
1ª
Parte
Não
que eu tenha sido um menino prodígio, mas desde muito novo era muito
comunicativo. Aprendi a falar e a andar precocemente e por isso fiz muitas
amizades, desde muito criancinha, com jovens e adultos do meu tempo, e tenho
histórias interessantes, que aos poucos vêm vindo à minha mente, e um dia
contarei.
Contava dez anos quando conheci Totó Birigui. Era um moreno forte, alto, a pele
tostada pelo sol e as mãos calejadas pelo trabalho. Ele era sapateiro; trabalhava
com meu padrinho Mozart Chaves, ao lado de onde meu pai fazia reparos em rádios
e outros eletrodomésticos. Televisão, só anos mais tarde, em suas oficinas que
ficavam coladas na sinuca do Sr. Marcos Rodrigues, na esquina de José Mariano
com Francisco Vieira Martins.
Totó
carregava, com muita resignação, uma corcunda bem avantajada e incômoda, mas
que não lhe tirava a autoestima (naquele tempo eu nem sonhava o que vinha a ser
isso!). Coisa que todo mundo tinha medo de fazer era passar perto de cemitério,
principalmente, nas sextas-feiras da quaresma. Totó Birigui não tinha
alternativa. Morava no Bairro de Fátima (que depois virou São Pedro), bem no
alto, tendo como único caminho até sua casa, a lateral direita do cemitério de
Palmeiras.
Lá
ia ele, numa sexta-feira da quaresma, nos fins dos anos 50, caminhando lento,
mercê das pingas que havia tomado e do peso da corcunda. Como sempre fazia, na
porta do cemitério rezou o “Padre Nosso”, o “Credo” e a “Salve Rainha”.
Continuou a subida. Quando estava a uns vinte metros antes de passar pelo
cemitério, ouviu uma voz cavernosa e grave:
—
Ô de fora... Ô passante!
Seu
corpo gelou. Sua boca secou. Suas pernas bambearam e ele não conseguiu dar um
passo sequer. E a voz continuava:
—
Ô de fora, tens alguma coisa aí pra me dar?
Reunindo
toda a coragem de homem macho que era, respondeu num fio de voz:
—
Tenho, não, mas posso trazer amanhã...
—
Tens, sim. Me dá essa corcunda...
Naquele
instante, Birigui sentiu uma mão gelada em suas costas e imediatamente um
alívio. Sentiu seu corpo se aprumar e sua camisa, apertada, folgar no seu
corpo. Levou a mão às costas, não sentiu mais a corcunda.
Sem
saber onde encontrou forças, alegre, chegou em casa num segundo. Logo que
entrou, acendeu o candeeiro e acordou sua velha mãe, contando-lhe e
mostrando-lhe a novidade. Para Dona Cleumesinda, aquilo só podia ser milagre.
Ajoelharam-se os dois, e rezaram em agradecimento a Deus até os primeiros raios
do sol daquele sábado feliz de 12 de abril de 1958.
2ª
Parte
"Waltim
(Walter Ambrósio de São José) Carreteiro" era, como o próprio apelido
indica, carreteiro. Trabalhava de sol-a-sol com sua carroça de burro, de
segunda a sexta-feira. No sábado, já naquele tempo, ele fazia “semana inglesa”: só trabalhava até o
meio-dia. Era nas tardes de sábado e manhãs de domingo que ele cuidava com
esmero de sua casinha, onde morava sozinho, lá no final da Rua Santo Antônio de
Palmeiras, na Volta da Banana, quase chegando na Cerâmica; “era uma casinha modesta”, como cantou
Pedro Zaidan, toda amarelinha, com um lindo jardim em volta dela, onde
predominavam as azaleias e as açucenas, cujo perfume encantava a todos que por
ali passavam.
Waltim
Carreteiro, no fim da lida de uma semana, escovava o seu burro Chumbinho –
companheiro de trabalho, quando o muar se assustou e deu-lhe um coice certeiro
no joelho direito. A medicina da época era muito rudimentar, principalmente na
área da ortopedia. Em razão disso, meu amigo ficou coxo, o que lhe rendeu o
apelido (também) de “deixa-que-eu-chuto”.
Para os engraçadinhos que teimavam em irritá-lo, tinha sempre um palavrão novo,
na ponta da língua.
Waltim
Carreteiro era amigo de Totó Birigui, e sempre tomavam uns goles juntos. Uma,
ou talvez duas semanas depois do sucedido com Totó, estavam os dois, mais
alguns amigos na venda do Sô Lauro Soares – na esquina da “Zé Mariano” com
Caraíbas, ouvindo o relato de Birigui sobre como ele perdeu a corcova. Todos
ouviam atentos. Waltim também ouvia, mas seu pensamento estava longe. O “palavredo” dos circundantes soava como
uma cachoeira nos seus ouvidos. E ele pensava: “hoje é sexta-feira; ainda é
quaresma; é quase meia-noite. Esse meu joelho... quem sabe?”
Deu
a hora de fechar a venda e todos foram saindo, cada qual para o seu rumo. Dez e
quarenta e cinco da noite. Waltim Carreteiro zanzou pelas imediações até por
volta de onze e quarenta e cinco, quando iniciou sua caminhada rumo ao
desconhecido. Subia o morro com a dificuldade que a perna direita lhe impunha,
mas com muita fé e ansiedade. Na porta do cemitério ouviu as doze badaladas
pelo sino da Matriz de São Pedro. Como Totó Birigui rezou o “Padre Nosso”, o
“Credo” e a “Salve Rainha”. Sem medo, e determinado, continuou subindo¸ só que
pelo lado esquerdo do cemitério. Uns dez passos à frente, ouviu a voz cavernosa
e grave:
—
Ô de fora... Ô passante!
Parou
sem medo. Alegre, até, pois era o que ele esperava.
E
a voz perguntou:
—
Tens aí algo para dar-me?
Seu
corpo não gelou. Seus músculos não enrijeceram; sua boca não secou; suas pernas
não bambearam. Respondeu com garbo:
—
Hoje não, mas posso trazer amanhã!
E
a voz retrucou:
—
Se não tens nada para dar-me, leva contigo esta corcunda...
Mineiro de Jequeri, Luiz
Raimundo de Oliveira, há muito radicado na vizinha Ponte Nova, é advogado,
jornalista, divulgador cultural e escritor. Foi diretor da Faculdade de
Ciências Humanas do Vale do Piranga e Secretário Municipal de Cultura da cidade
que adotou. Publicou “Páginas de Prosa” (2007) e Reencarnação (2009). A presente narrativa integra a sua nova
antologia de contos e crônicas — “Vagalume” —, recentemente
publicada.
Muito bom! Deu dó, mas como não rir? Rsrrs
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