O VELÓRIO DO MEU AVÔ - Crônica Fúnebre-Humorística - Luiz Raimundo
O VELÓRIO DO MEU
AVÔ
Luiz Raimundo
Itagiba
Marcondes, meu avô, pai da mãe, era uma pessoa muito bem relacionado em sua
cidade, Jequeri, onde também nasci. Era um homem de estatura mediana, peito
largo e braços fortes. Entretanto, tinha um defeito físico: tinha as pernas
arqueadas; era cambota, como se dizia na época. Mas isso nunca o incomodou.
Era, nos fins de semana, caçador e pescador emérito e tinha o prazer de
distribuir com os amigos o produto da caça e pesca sempre que voltava de uma
empreitada, reservando para sua numerosa família o que vinha de melhor, é
claro. Era alfaiate dos bons. Pessoas iam de longe a Jequeri para encomendar um
terno confeccionado por ele, que tinha como seus auxiliares os filhos Zequinha,
Dinorah e Dimano, além de outros funcionários. Dois outros tios – Tão e Luiz
(que carinhosamente chamávamos de Nezinho), eram voltados para os serviços de
saúde, trabalhando com medicamentos, na farmácia do Senhor Antônio Martins.
Quando
Deus entendeu que estava na hora de meu avô partir, mandou-lhe um infarto
fulminante, antes mesmo que ele se levantasse para a lida daquela segunda-feira
cinzenta.
Logo
a notícia se espalhou, e a rua (hoje Rua Pe. Pinheiro) virou uma verdadeira 25
de Março. As pessoas se aglomeravam em frente ao casarão do meu avô, procurando
confirmação da infausta notícia.
Por
conta das pernas arqueadas, ao prepararem o corpo para o velório, tiveram que
amarrá-las com uma fita de seda para evitar que ele ficasse, dentro do caixão
de pinho, com um aspecto esquisito.
Às
seis da tarde, o movimento na casa de cinco janelas já era intenso; a rua
lotada – tinha mais gente no velório dele do que no do Pe. Benevenuto. E dentro
da casa, com era comum, a “festa” estava animada: na sala era servido broa de
fubá, cuscuz, bolinho de chuva e café-com-leite à vontade, naquela fria noite. Lá
pelos lados da cozinha o “cardápio” era outro: pinga da boa, costelinha de
porco e lambari frito, que havia sido pescado um dia antes do infarto.
Tudo
corria bem. Gente entrando e saindo o tempo todo; mas a casa não esvaziava...
Lá pelas duas da matina, depois de um dos vários terços que foram puxados pelas
beatas – incluindo aí as filhas do finado, fez-se um período de silêncio e
conversa quase sussurrante.
E
foi nessa hora que a coisa esquentou! A fita (de seda) que prendia as pernas do
de cujus soltou-se de uma vez; as pernas abriram-se com ligeireza e as botas
bateram com força nas laterais da urna funerária; as flores que cobriam o corpo
saltaram para fora; o susto foi geral e causou pânico imediato. Foi um furdunço
só. O Professor Josapha e Donana estavam sentadinhos junto ao féretro,
proseando quase em sussurro, e com o susto tombaram pra trás e desmaiaram, só
acordando no final da confusão, com minha tia Diu fazendo compressa de água
fria na testa dos dois. As pessoas da sala, apavoradas e temerosas de o defunto
tivesse acordado, tentavam sair como podiam; pela porta, que cabiam dois,
queriam passar cinco de cada vez; Zé de Sô Bento, no expreme-expreme acabou
deixando um pedaço de orelha no prego que segurava, no portal, uma ferradura da
sorte; os cinco janelões da frente vomitavam gente de tudo quanto é jeito.
Sô
T, homem de dois metros de altura por um meio largura, vestindo sua
indefectível capa preta, vendo da cozinha a confusão, veio “de galope” pelo
corredor e levou consigo, no peito, cinco pessoas que estavam entaladas na
porta. Ao se estatelarem na rua, uns ralaram o nariz na poeira, um outro
quebrou um dente e Sô T cortou o supercílio direito no choque com a cabeça de
Chiquinho dos balaios.
O
pessoal da parte de trás da casa, vendo aquela confusão, não quis nem saber do
que se tratava, e “deram no pé” pelo terreiro afora, rompendo a cerca e vazando
lá na rua 10 de novembro, passando pelos quintais vizinhos. O pessoal que
estava na rua, uns correram para a praça e outros no sentido do campo de
futebol, indo parar lá na rua da Coréia, sem mesmo saber porque estavam
correndo...
Depois
de um certo tempo a coisa acalmou. Minhas tias e minha mãe, que se aquartelaram
num dos quartos do fundo da casa, foram saindo aos poucos, quando reinou o
silêncio no ambiente. Minha tia Jacira, mas resoluta, chegou até a sala onde
estava o corpo do pai e deparou-se com um verdadeiro caos: bolos e salgados por
todo o canto, bules de café-com-leite derramados pelo assoalho, cadeiras
tombadas, flores pra todo lado e... Itagiba Marcondes, quietinho no seu lugar.
Tia Jacira, com ajuda das irmãs, amarrou novamente a fita nas pernas arqueadas
do falecido, recolocaram as flores e puseram ordem no ambiente.
Fora
dali, a farmácia do Seu Antônio Martins virou um verdadeiro pronto- socorro.
Ele, o farmacêutico, o Dr. Timóteo – médico da cidade, auxiliado pelos meus
tios Tão e Nezinho, faziam os reparos nos feridos: escoriações nos braços,
pernas, nariz, testa, etc. O caso que requereu mais cuidado foi o de Toninho,
que ao pular a janela da casa na hora da confusão, caiu sobre a mão direita,
ficando com fratura exposta no pulso. Não tinha como levar para Ponte Nova
àquela hora, e, se ficasse como estava, corria o risco de gangrena e morte. A
opção foi amputar a mão do coitado, que a partir desse dia, até o fim da vida,
ficou conhecido como “Toninho Munheca”.
Meu
tio Dimano, que na hora da correria estava descalço, ao cruzar por uma pequena
ponte que cobria um córrego que passava na rua, deixou o dedo mindinho do pé
direito agarrado entre as ripas. Um curativo resolveu o problema, e não teve
maiores consequências.
Depois
de quase duas horas as pessoas começaram a chegar de mansinho até a porta da
casa, e, como o corpo continuava estirado na urna, sereno, com um leve sorriso
nos lábios, continuaram o velório, até às nove da manhã, quando o féretro,
acompanhando de uma verdadeira multidão, seguiu para o seu descanso eterno, no
Campo Santo da cidade.
Ilustração: Nani.
Mineiro de Jequeri, Luiz Raimundo de Oliveira, há muito radicado na vizinha Ponte Nova, é advogado, jornalista, divulgador cultural e escritor. Foi diretor da Faculdade de Ciências Humanas do Vale do Piranga e Secretário Municipal de Cultura da cidade que adotou. Publicou “Páginas de Prosa” (2007) e Reencarnação (2009). A presente narrativa integra a sua nova antologia de contos e crônicas — “Vagalume” —, recentemente publicada.
Muito bom, divertidíssimo.
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