HOMO DUPLEX - Narrativa Clássica Sobrenatural - Honoré de Balzac
HOMO DUPLEX
(Excerto do romance “Louis Lambert”)
Honoré de Balzac
(1799–1850)
Tradução de Paulo Soriano
Como
a leitura dos livros era proibida, dedicávamos as nossas horas de reclusão,
principalmente, às discussões metafísicas ou à narrativa de fatos singulares
ligados aos fenômenos da mente.
Um
dos fatos mais extraordinários é, certamente, o que irei relatar, não só porque
diz respeito a Lambert, mas, também, porque talvez o incidente tenha decidido
seu destino científico.
Segundo
o estatuto dos colégios, domingo e quinta-feira eram nossos dias de folga; mas
os serviços religiosos, aos quais comparecíamos com regularidade, tomavam tão
completamente os domingos que considerávamos a quinta-feira como nosso único
dia livre. Terminada a missa, tivemos tempo suficiente para fazer uma longa
caminhada campestre ao redor de Vendôme. O solar Rochambeau foi o objeto da
mais interessante das nossas excursões, talvez devido à sua distância. Raramente
os garotos faziam uma excursão tão extenuante. No entanto, uma ou duas vezes
por ano, os mestres ofereciam-lhes um passeio a Rochambeau como recompensa por
sua dedicação.
Em
1812, no final da primavera, lá iríamos pela primeira vez. A ansiedade de ver o
famoso castelo de Rochambeau, cujo dono, às vezes,
dava leite aos alunos, deixou-nos todos satisfeitos. Portanto, nada embaraçava
o nosso passeio. Eu e Lambert não conhecíamos o bonito vale do Loir, onde o
solar casa fora construído. Então, a nossa imaginação enchera-se de entusiasmo
na véspera desta caminhada, que era motivo de tradicional contentamento no colégio.
Conversamos sobre isso ao longo da noite, prometendo gastar em fruta e leite o
dinheiro que economizáramos, contra todos os hábitos da vida escolar.
No
dia seguinte, depois de cear, saímos ao meio-dia e meia. Todos levavam um
pedaço quadrado de pão, oferecido para o lanche da tarde. Depois, vivazes como
andorinhas, marchamos em formação ao famoso castelo, imbuídos dum ardor que, a
princípio, não nos permitiu sentir o cansaço.
Quando
chegamos à colina, pudemos contemplar o castelo, situado a meio caminho da encosta,
e o vale sinuoso, onde o rio reluz enquanto serpenteia por um prado
graciosamente recortado; paisagem admirável, daquelas que as vívidas sensações
da juventude, ou do amor, emprestam um tão extraordinário encanto que jamais se
repetirá.
Louis
Lambert disse-me:
—
Ora, eu vi tudo isso ontem à noite, num sonho!
Ele
reconheceu o aglomerado de árvores sob o qual estávamos, a disposição dos
bosques, a cor da água, as torres do castelo, os acidentes, as distâncias,
enfim, todos os detalhes do lugar que via pela primeira vez.
Éramos
crianças; pelo menos eu, que tinha apenas treze anos; pois, aos quinze anos,
Louis poderia ter a profundidade de um homem de gênio. Mas, naquela época,
éramos ambos incapazes de mentir nos mais triviais assuntos de nossa de
amizade. Se Lambert percebeu, além disso, pela onipotência de seu pensamento, a
importância de tais fatos, ele estava longe de adivinhar, a princípio, seu pleno
significado: surpreendeu-se, assim, com este incidente.
Perguntei
se ele não tinha vindo em Rochambeau quando pequeno. Minha pergunta o melindrou.
Mas, depois de consultar suas memórias, ele respondeu negativamente.
Esse
evento, que encontra analogia nos fenômenos do sono em muitas pessoas,
ilustrará os primeiros talentos de Lambert. Na verdade, ele foi capaz de
deduzir um sistema inteiro a partir deste evento, ao apreender um fragmento de
pensamento — como Cuvier[1] fizera
em outra vertente de investigação — como ponto de partida para a reconstrução de
uma criação inteira.
Nesse
momento, estávamos ambos sentados sob um velho carvalho. Então, após alguns
momentos de reflexão, Louis me disse:
—
Se a paisagem não veio a mim, o que seria um absurdo imaginar, então eu devo
ter vindo a este lugar. Se eu estava aqui, enquanto dormia em minha alcova,
esse fato não constitui uma separação completa entre meu corpo e meu ser
interior? Isto não prova algum tipo de faculdade locomotiva do espírito, ou a
produção de efeitos equivalentes aos da locomoção? Ora, se minha mente e meu
corpo foram capazes de separar-se durante o sono, por que eu não poderei
divorciá-los, também, durante a vigília? Não vejo nenhum meio-termo entre essas
duas proposições.
“Mas,
se formos mais longe, entrando em detalhes, temos: ou esses fenômenos se devem
à ação de uma faculdade que traz à tona um segundo ser, de quem meu corpo é
apenas um invólucro — já que eu estava em minha alcova e via a paisagem, e isto
subverte muitos sistemas —, ou esses fatos ocorreram nalgum centro nervoso,
cujo nome ainda está para ser descoberto, e onde as nossas sensações residem e
se movem, ou, então, no centro cerebral, onde as ideias são formadas. Esta
última hipótese levanta alguns estranhos questionamentos. Eu andei, eu vi, eu
ouvi. O movimento não pode ser concebido sem o espaço, o som age apenas nos
ângulos ou nas superfícies, e a cor consubstancia-se apenas por meio da luz. Se,
durante a noite, de olhos fechados, eu vi objetos coloridos dentro de mim, se
ouvi ruídos no mais absoluto silêncio — e, tudo isso, sem que houvesse as condições
exigidas para que o som se formasse, pois na mais absoluta imobilidade cruzei
os espaços —, é porque teríamos faculdades internas independentes das leis
físicas externas. A natureza material seria penetrável pela mente.
“Como
é possível que os homens tenham meditado tão pouco sobre os acidentes de sono,
que acusam uma vida dupla no homem? Não haverá campo a uma nova ciência neste
fenômeno? — ele acrescentou, batendo forte na testa. — Se o fenômeno não
fornece a base para uma ciência, certamente revela os enormes poderes do ser
humano; pelo menos, anuncia a frequente ruptura de nossas duas naturezas, fato sobre
o qual venho meditando há muito tempo. Então, finalmente encontrei um
testemunho da superioridade que distingue nossos sentidos latentes de nossos
sentidos aparentes! Homo duplex!
“Mas
— continuou ele após uma pausa e deixando escapar um gesto de dúvida — talvez
não haja em nós duas naturezas. Talvez sejamos simplesmente dotados de
qualidades íntimas e perfectíveis, cujo exercício e desenvolvimento produz em
nós fenômenos de atividade, penetração e visão que ainda não foram observados.
“Em
nosso amor ao maravilhoso, paixão engendrada pelo nosso orgulho, traduzimos
esses efeitos em criações poéticas, porque não os compreendemos. É tão
conveniente divinizar o incompreensível! Ah, admito que devo lamentar a perda
de minhas ilusões. Desejei acreditar em uma natureza dupla e nos anjos de
Swedenborg[2]!
Essa nova ciência os mataria, então? Sim, o exame de nossas propriedades
desconhecidas envolve uma ciência aparentemente materialista, pois a mente
emprega, divide, anima a substância; mas não a destrói.”
Ele
permaneceu pensativo, quase triste. Talvez ele tenha visto seus sonhos de
infância como retalhos dos quais teria de desfazer-se brevemente.
[1] George Cuvier
(1769 – 1832), zoólogo e zoólogo francês, considerado o pai da Paleontologia,
estabeleceu a anatomia comparada como método de investigação dos seres vivos.
[2] Emanuel Swedenborg (1688 ― 1771)
foi um grande sábio sueco, dedicado à filosofia e a vários campos da ciência,
como a astronomia, a biologia, a física, a química, a matemática, a psicologia
e a geologia. Foi, igualmente, um teólogo e espiritualista notável.
Nossa
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