OS NAVIOS SUICIDANTES - Conto Clássico de Terror - Horacio Quiroga (Com Versão em Áudio de Marcelo Fávaro).


OS NAVIOS SUICIDANTES

Horacio Quiroga

(1878 – 1937)

Tradução de Paulo Soriano

 

Acontece que há poucas coisas mais terríveis do que se deparar no mar com um navio abandonado. Se de dia o perigo é menor, de noite o navio não é visto e nem há aviso possível: a colisão leva um e outro.

Esses navios abandonados por “a” ou “b” navegam obstinadamente a favor das correntes ou do vento, se têm as velas desfraldadas. Percorrem, assim, os mares, mudando caprichosamente de rumo.

Não poucos dos vapores, que um bom dia não chegaram ao porto, depararam-se em seu caminho com um destes navios silenciosos, que viajam por conta própria. Sempre há a probabilidade de esbarrar-se com eles, a cada minuto. Ao acaso, as correntes terminam por enredá-los nos mares de sargaço. Os navios se detêm, por fim, aqui ou acolá, imóveis para sempre nesse deserto de algas. E assim vão, pouco a pouco, se desfazendo. Mas outros chegam a cada dia, ocupam o seu lugar em silêncio, de modo que o tranquilo e lúgubre porto nunca está vazio.

Os principais motivos desse abandono de navios são, sem dúvida, as tempestades e os incêndios, que deixam à deriva negros esqueletos errantes. Mas há outras causas singulares, entre as quais podemos incluir o acontecido ao María Margarita, que zarpou de Nova York em 24 de agosto de 1903, e que no dia 26, de manhã, se comunicou com uma corveta, sem acusar qualquer anormalidade. Quatro horas depois, um paquete, não obtendo resposta, enviou um escaler, que abordou o María Margarita. No navio não havia ninguém. As camisas dos marinheiros secavam na proa. O fogo da cozinha ainda ardia. Uma máquina de coser tinha a agulha suspensa sobre a costura, como se assim deixada um instante antes. Não havia o mínimo sinal de luta ou pânico e tudo estava em perfeita ordem. Mas não havia ninguém. O que teria acontecido?

Na noite em que soube disso, estávamos reunidos na ponte de comando. Íamos à Europa e o capitão nos contava a sua história marinha, perfeitamente adequada, aliás.

A concorrência feminina, resultante da sugestão das ondas sussurrantes, ouvia estremecida. Moças nervosas prestavam, a contragosto, inquieta atenção à voz rouca dos marinheiros. Uma senhora recém-casada ousou perguntar:

― Não teriam sido águias?

O capitão sorriu gentilmente:

― Como, senhora? Águias que levem toda uma tripulação?

Todos riram, até mesmo a jovem, um tanto envergonhada.

Felizmente, um passageiro sabia alguma coisa sobre isso. Olhamos para ele com curiosidade. Durante a viagem, fora um excelente companheiro, assuntando por sua conta e risco, e falando pouco.

― Ah!  O senhor poderia nos contar? ― suplicou a jovem das águias.

―  Claro que posso ― assentiu o discreto indivíduo. ― Em duas palavras: nos mares do Norte, como o María Margarita, do capitão, encontramos certa feita um veleiro. O nosso rumo ― viajávamos também a vela ― quase nos levou ao seu costado. O singular ar de abandono ― de resto indisfarçável ― a um navio chamou a nossa atenção, e diminuímos a marcha, observando-o. Por fim, descemos um escaler. A bordo, não encontramos ninguém, e tudo estava em perfeita ordem. Mas a última anotação do diário de bordo datava de quatro dias, de modo que não experimentamos maiores sensações.  Chegamos mesmo a rir um pouco das famosas desaparições repentinas.

“Oito de nossos homens ficaram a bordo para conduzir o novo navio. Viajaríamos de comboio. Ao anoitecer, o navio adiantou-se um pouco de nós. No dia seguinte, nós o alcançamos, mas não vimos ninguém sobre a ponte de comando. Descemos de novo o escaler, e os homens que embarcaram nele esmiuçaram em vão o navio: todos haviam desaparecido. Nem um objeto fora de lugar. O mar conservava-se absolutamente plano em toda a sua extensão. Na cozinha, ainda fervia uma panela com batatas.

“Como os senhores compreenderão, o terror supersticioso da nossa gente chegou ao ápice. Finalmente, seis de nós animaram-se a ocupar o navio e eu fui com eles. Chegando a bordo, os meus novos companheiros decidiram beber para afugentar toda preocupação. Estavam sentados em círculo e, passada uma hora, a maioria já cantava.

“Chegou o meio-dia e passou-se a sesta. Às quatro horas, a brisa cessou e as velas caíram. Um marinheiro aproximou-se da borda e olhou o mar oleoso. Todos haviam se levantado e agora vagueavam, sem vontade de falar. Um deles se sentou em uma corda enrolada e tirou a camisa para remendá-la. Costurou um pouquinho em silêncio. De repente, levantou-se e lançou um longo assovio. Seus companheiros se viraram para ele. O marinheiro os olhou vagamente, também surpreso, e se sentou de novo. Um momento depois, deixou a camisa na corda enrolada, avançou à borda e se atirou à água. Ao ouvir o ruído, os outros giraram a cabeça, com o cenho ligeiramente franzido. Em seguida, esqueceram-no, voltando à apatia comum.

“Um pouco depois, outro se espreguiçou, esfregou os olhos enquanto caminhava, e atirou-se à água. Passou-se meia hora. O Sol caía. Senti, de repente, que me tocavam o ombro.

“― Que horas são?

“― Cinco horas ― respondi.

“O velho marinheiro, que me fizera a pergunta, olhou-me desconfiado, com as mãos nos bolsos. Fitou por um bom tempo a minha calça, distraído. Finalmente, atirou-se à água.

“Os três restantes aproximaram-se rapidamente e observaram o redemoinho. Sentaram-se na borda, assoviando devagar, com o olhar perdido na distância. Um deles desceu e se deitou na ponte, cansado. Os outros desapareceram, um após o outro. Às seis horas, o último se levantou, ajeitou a roupa, dividiu o cabelo na fronte, caminhou ainda sonolento e se lançou à água.

“Então, fiquei sozinho, olhando como um idiota o mar deserto. Todos, sem saber o que faziam, haviam-se arrojado ao mar, envoltos no sonambulismo moroso que flutuava no navio. Quando um se atirava à água, os outros voltavam-se momentaneamente preocupados, como se recordassem de alguma coisa, para caírem no esquecimento, logo em seguida. Assim, todos desapareceram, e creio que a mesma coisa aconteceu aos homens do dia anterior, e aos outros antes deles e aos dos demais navios.  Isto é tudo.”

Ficamos a fitar a singular figura com justificável curiosidade.

― Mas o senhor, não sentiu nada? ― indagou o meu companheiro de camarote.

― Sim. Senti uma grande ausência de vontade e obstinação pelas mesmas ideias, mas nada mais. Não sei por que não senti mais nada. Presumo que o motivo foi este: em vez de esgotar-me numa defesa angustiante, e a todo custo, contra o que sentia ― como todos os outros devem ter feito, e mesmo os marinheiros, sem dar-se conta ―, aceitei singelamente essa morte hipnótica, como se eu já estivesse aniquilado. Algo muito semelhante se passou, sem dúvida, às sentinelas daquela guarda famosa que, a cada noite. se enforcavam.

Como o comentário era bastante complicado, ninguém respondeu. Passado um instante, o narrador foi embora. O capitão olhou-o por um momento, de esguelha.

― Farsante! ― murmurou.

― Ao contrário ― disse um passageiro enfermo, que retornava à terra natal para morrer. ― Se fosse farsante, não teria deixado de pensar nisso, e teria se atirado à água também.


VERSÃO EM ÁUDIO DE MARCELO FÁVARO:



Mais narativas de Marcelo Fávaro em:

 https://www.youtube.com/c/Contoumconto


 

Comentários

  1. Oi, Paulo. Tudo bem?

    Sou professor de literatura e de quando em quando gravo em áudio alguns contos. Estava procurando algum conto bom de terror e achei esse. A princípio pensei ser uma tradução antiga, como em geral são do Quiroga, acabei gravando e só agora vi que foi uma tradução sua desse mês, portanto, venho pra te dar uma satisfação, mostrando o trabalho que fiz. Caso não tenha gostado, tiro o conto do ar. De toda forma, no final do conto eu falo o seu nome como tradutor, e nos comentários eu divulguei seu site.

    Eis o conto que gravei.
    https://www.youtube.com/watch?v=SjgWB-lW_4w

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    1. Caro Marcelo. Muitíssimo grato. A sua narração está excelente. Meus parabéns. E muito grato por escolher a minha tradução. Um forte abraço.

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