A COISA NA ESTAÇÃO GRANVILLE - Conto de Terror - Sonia Re Rocha Rodrigues

 


A COISA NA ESTAÇÃO GRANVILLE

Sonia Re Rocha Rodrigues

 

Emília não sabia até então que há dias em que tudo parece estar distorcido. Às vezes tudo muda tão de repente que a gente é até capaz de acreditar no sobrenatural. Claro, uma coisa é manter a mente aberta para discussões sobre portais para outras dimensões, comunicação com os mortos e outros temas assim, mas sempre no domínio do pensamento, tudo abstrato e comportadamente filosófico. Emília era cética.

Emília viveu essa experiência em um dia singular de outono. Singular, sim, porque nada parecia estar no lugar. O vento, a névoa, a chuva, tudo enfim. Claro que em Vancouver chove muitas vezes, mas nada parecido com aquele aguaceiro de gotas grossas que envolveu a cidade em nuvens escuras que rolaram subitamente pelos céus. Nem galocha nem capa impediam os pobres pedestres de se encharcar, mas para Emília, que tinha de sair do trabalho àquela hora, foi como voltar no tempo e regressar a seu país natal, onde as tempestades equinociais são uma constante e sua ilha ficava literalmente abaixo do nível do mar duas vezes ao ano. Claro, em seu país de origem a chuva não cai gelada a penetrar os ossos, pelo contrário, tudo em seu país era muito quentinho.

A moça correu como pôde pelas ruas que eram paisagens de aquarela até entrar no metrô. Respirou aliviada ao descer as escadas. Lá embaixo, para sua surpresa, não havia ninguém. Ela olhou para os dois lados da plataforma, cujos contornos estavam apagados pela neblina. Eram apenas duas da tarde, cedo demais para estar tão escuro, ela pensou, apertando o casaco contra o peito. Parecia que os frequentadores habituais preferiram esperar até que a chuva diminuísse para pegar o trem.

Emília estava tremendo, as meias úmidas dentro das botas, as luvas geladas pelo contato com o vento. Ela retirou as luvas e colocou as mãos nos bolsos. Do lado esquerdo ela pode sentir mais do que ver o metrô que se aproximava, envolto pelos tons de cinza da neblina que ficava mais forte a cada minuto. A luz estava fraca, amarelada, desfocada, parecendo irreal.

As portas do metrô se abriram e ela entrou. O vagão estava vazio. “Esta é a primeira vez”, ela pensou, “que eu entro em um vagão do metrô vazio.” Este era mesmo um dia bem bizarro. Das seis da manhã até à meia noite, o metrô de Vancouver costuma estar lotado, ou, pelo menos, cheio de gente. O primeiro pensamento dela foi que aquele dia ela podia escolher onde sentar, e esse pensamento a fez sorrir.

Ela deixou a cabeça cair para trás e fechou os olhos, aliviada por estar protegida do mau tempo.

Quando as portas se fecharam, no entanto, ela sentiu a presença de algo sinistro que estava ali a espiar. Abriu os olhos, sobressaltada, e encarou aquilo. Das sombras escuras em frente a ela, percebeu um vulto encoberto pela penumbra. Os olhos pretos e intensos aproximaram-se até quase tocarem seu rosto.

“Daqui até a próxima estação,” ele pensou, ou ela pensou, Emília não saberia afirmar, “são cinco minutos, e muita coisa pode ser feita em cinco minutos.”

A moça ficou parada, hipnotizada pelo olhar mau que parecia ler seus pensamentos mais secretos, e pelo riso rouco e prolongado que arrepiou suas orelhas, sussurrando baixinho palavras que ela não ousaria repetir em voz alta.

A coisa tocou nela. Um toque ávido que penetrava embaixo das roupas, que procurava a pele, que raspava de leve nos locais mais sensíveis de seu corpo. Fascinada, Emília tentava definir os contornos daquele rosto, que mudavam à medida que a coisa explorava sua pele.

Uma hora era um homem de barba cerrada, de repente era um jovem imberbe de riso cruel, então mudava para um ser disforme, careca, sem pálpebras, sem dentes, com uma língua comprida que se insinuava pelos orifícios todos de seu corpo.

As mãos eram quentes e espertas, sabendo exatamente quais os pontos ela mais gostava de explorar nos momentos de intimidade com os namorados.

A coisa falou, rindo, “moleca curiosa, tem muita coisa que você ainda não sabe, mas agora vai saber”. Um calor arrepiou sua espinha, e pontadas de prazer percorriam os seus órgãos.

A coisa ria, gritava, rouca, feroz, uivando e gemendo, movimentando-se em um frenesi para dentro e para fora de Emília, que, indefesa, assistia apavorada sua participação naquele insano delírio.

Para frente e para trás, cada vez mais rápido, cada vez mais forte, a coisa ia desvendando para Emília seus desejos mais secretos, até mesmo aquelas curiosidades que ela nunca ousaria confessar para si mesma.

Emília tentava empurrar a criatura, mas aquela coisa parecia feita de sombras.

Ela sentia-se em ebulição, a pele cada vez mais quente, a respiração cada vez mais ofegante, a pele ardente a derreter com o atrito daquelas mãos diabolicamente espertas.

Gemidos e gritos tornaram-se mais fortes, porque agora não vinham da coisa, mas dela mesma, que suava, gemia, retorcia-se, gritava, ria, rosnava e proferia os palavrões mais cabeludos agarrando-se naquele ser maligno que se divertia em apossar-se de sua mente.

O metrô parou.

A coisa lambeu as orelhas dela, comentando que se tivessem sorte, haveria mais cinco minutos até a próxima parada.

Emília levantou-se, cambaleando, fraca, e não viu ninguém. As portas do vagão se fecharam de novo e o delírio recomeçou, dessa vez com o capiroto mostrando para ela um corpo ora mutilado, ora apolíneo, e orientando-a a realizar as mais estimulantes brincadeiras.

Aquilo a envolvia em ondas de desejo e gozo, e foi assim, aos gritos, tremendo e suando, que ela desceu na estação seguinte, com as roupas em desalinho, o rosto vermelho, os olhos bem abertos.

Um rapaz que entrava a amparou, perguntando se ela estava passando mal.

“Fui atacada.”

Algumas pessoas entraram, mas não viram ninguém no vagão.

Ela fugiu.

Ao sair da estação, deparou-se com o céu azul, pássaros cantando, cartazes que falavam da festa de Halloween e do Dia de Ação de Graças.

Emília apoiou-se em um poste e vomitou. Começou a sentir-se suja, enojada por aquele odor pútrido que exalava por sua boca e por cada um de seus poros.

Socorrida e levada a um hospital, ela falou aos médicos sobre o ataque que sofreu no trem. Isso foi um íncubo, exclamou um dos médicos lembrando-se do que havia estudado na sua juventude com um rabino, ou um dementor, sugeriu um interno leitor de Harry Potter, para jogar um pouco de humor no momento. Depois a equipe a encaminhou para a psiquiatria.

Emília, que não acredita no sobrenatural, suspeita que há muita coisa neste mundo que a humanidade ainda está longe de entender.


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