O XEQUE-MATE DO DIABO - Conto Clássico de Terror - Curt Hansen

 


O XEQUE-MATE DO DIABO

Curt Hansen

(Início do séc. XX)

 

Quando George Loughran foi pela primeira vez a Paris, tinha liquidado duas heranças — a que lhe deixou seu pai e a que recebeu sua mulher. Tinha desbaratado tudo. Era um ébrio e um perdulário. Só não mergulhava nas ondas do crime porque lhe faltavam iniciativa e ação. Era um indolente. Vagava de um lugar para outro, parasita de casas de jogo, desonrando, por toda a parte, o nome honrado da família irlandesa a que pertencia, cujas armas, segundo dizia por toda a parte, poderia usar, se assim o quisesse.

O único gosto requintado que ainda conservava, dos bons tempos de sua vida de bem-estar e fartura, era a sua paixão pelo jogo de xadrez, no qual era mestre, um dos grandes mestres da Europa.

Mesmo no fundo da sua degradação, jamais esqueceu a técnica do difícil jogo. Dez anos antes. George Loughran era, certamente, um tipo completamente diferente daquela figura imunda e repugnante que agora inspirava asco e piedade.

Naquela ocasião, uma mulher chorava por ele, abandonada, na Inglaterra, enquanto ele fazia seu quartel-general em Nice e Monte Carlo. Certa vez, foi de tal força a orgia em que ele se meteu, e a tais desatinos se entregou que, para não ser preso pela polícia, foi obrigado a gastar alguns milhares de libras esterlinas.

Em Nice, noutra ocasião, sucedeu-lhe algo que ele jamais pôde esquecer em toda a sua vida.

Havia certo lugar que ele frequentava de preferência. Uma noite, estava sentado a uma mesa, cercado de dez ou quinze pessoas que, havia mais de um mês, quase viveram à custa de suas extravagâncias.

Loughran estava bebendo demais, e um dos seus companheiros o advertiu de que se estava excedendo.

—Quê! — protestou Loughran. — Eu, bêbado?! Eu?

 —Não está ainda, mas ficará, se facilitar...

Loughran se mostrou indignadíssimo.

—Bêbado? Pois fique sabendo que não há, na casa, homem algum que esteja com a vista tão segura como eu. Para que eu me embriague, é preciso beber duas vezes mais do que qualquer outro. Bêbado! Você está vendo aquele quadro, lá, seu idiota?

O quadro a que ele aludia era uma oleografia representando a crucificação.

—Quer ver como eu sou capaz de acertar nele, daqui, desta distância?

Soltando uma gargalhada, I.aughran ergueu o copo e o despediu pelo ar, com toda a violência. O copo atingiu em cheio o quadro, inundando-o de vinho.

Um estremecimento de terror percorreu a assistência.

 —É sangue! Está saindo sangue do quadro! — exclamou alguém.

Cambaleando, Loughran aproximou-se do quadro e o examinou.

 —Idiotas! Embusteiros! — exclamou. — Não estão vendo que é vinho?

Todos percebiam, entretanto, que o jogador de xadrez estava num estado de nervos deplorável.

Sim, era verdade que Laughran tinha provado que não estava embriagado. Mas o que ele fez, para demonstrar isso, encheu de horror todos os presentes e ninguém quis continuar em sua companhia. Somente um de seus amigos, um tal Langwell, ficou e acompanhou-o ao sair.

Quando ambos voltavam pela rua St. Nicole, Loughran esbarrou com um homem vestido com um hábito de frade. Era um hábito antigo, todo pardo, terminando por um capucho que cobria inteiramente a sua cabeça.

Loughran começou a pedir desculpas.

—Não se incomode, Loughran — disse o desconhecido. — Você fez pior do que isso, há alguns momentos.

Loughran se deteve subitamente, com os olhos arregalados. E, então, sem motivo aparente, todo seu corpo começou a tremer e foi necessário um grande esforço para ele se dominar.

—Desculpe-me... — disse ele, mas... o senhor me conhece?

—Sim. Somos velhos conhecidos. Não me atrevo a dizer que somos amigos, mas...

Estavam, agora, frente a frente. Langwell tinha ficado alguns passos para trás. Loughran sentia um grande aperto no coração.

De repente, mal podendo conter um grito de espanto, recuou, assombrado. Debaixo daquele capuz negro tinha visto brilharem não dois olhos, mas dois fachos de fogo vermelho.

Instintivamente, levantou uma mão, defensivamente. Quis fazer o sinal da cruz. Mas sua mão chegou, apenas, até à altura do pescoço.

Não foi possível levantá-la mais alto.

Horrorizado, soltou um gemido.

—Vamos, rapaz! — exclamou o desconhecido. — Vamos, faça o sinal da cruz, se puder! Se você fizer isso, desaparecerá, desfeito numa nuvem de vapor. Vamos, Experimente!

O pobre Loughran tremia de pavor.

—Nunca mais, nunca mais você poderá fazer isso, ouviu? Sim, é certo que você bateu, que acertou no quadro com seu copo! Belo golpe, para quem já tinha tomado três grandes copos de vinho!

Fez uma pequena pausa e concluiu:

— Talvez eu esteja enganado, meu amigo. É possível que você ainda consiga, algum dia, fazer o sinal da cruz, novamente. Entretanto, seria muito bom que não o tentasse, nunca mais, George Loughran. Porque isso o mataria. Você não poderia evitar de cair morto, no dia em que fizesse o sinal da cruz.

Loughran ouviu, logo depois, soar uma gargalhada, que ele não podia ver de onde partia. Quando ergueu os olhos, procurando o desconhecido, não o viu mais. Tinha-se evaporado.

Langwell se aproximou naquele momento e encontrou-o ainda atordoado, com a mão na garganta.

—Onde... onde está ele? — perguntou Loughran. —Onde está...

— Quem? — perguntou seu amigo, segurando-lhe no braço. —Meu velho, o que você precisa, neste momento, é um banho frio e cama.

Loughran acabou convencendo-se de que, realmente, tinha sonhado tudo aquilo, conforme Langwell estava procurando convencê-lo.

Um mês depois tinha esquecido o incidente... ou pensou que o tivesse esquecido. Infelizmente, as duas coisas são muito parecidas.

De qualquer modo, Loughran deu cabo, rapidamente, de sua fortuna, naquele lugar em que havia estabelecido seu permanente quartel-general. Com os restos de seu dinheiro, andou vagando algum tempo pelas capitais da Europa, para ir bater, afinal, em Paris. Lá, divertiu-se, conversou, mentiu, bebeu, lutou, jogou xadrez e empregou-se nos mais curiosos trabalhos de que o encarregavam.

E desenvolveu-se, nele, um bem acabado caso de endocardite, com inflamação na membrana interna do coração. O médico que fez o diagnóstico era, acidentalmente, um fanático, também, do jogo de xadrez. Recomendou a Loughran que levasse uma vida metódica, vivendo simplesmente, evitando toda a emoção, tendo, sempre, o maior cuidado consigo.

— Tome as coisas, sempre, com maior calma, porque uma emoção forte pode matá-lo instantaneamente.

Loughran agradeceu-lhe, de todo o coração. Não se poderia dizer, a rigor, entretanto, que modificasse sua maneira de viver.

Nunca mais tentou fazer o sinal da cruz. E nunca entrou em casa alguma em que a cruz estivesse em exibição.

Sua paixão pelo jogo de xadrez crescia de tal maneira que acabou carregando consigo uma bolsinha de couro contendo todas as pedras. Nunca se separava delas.

Enquanto lhe foi possível vestir-se decentemente, frequentou um clube de xadrez da cidade, assombrando os habitués com a sua técnica. Era formidável para resolver os problemas mais difíceis do xadrez.

Numa dessas ocasiões, Loughran encontrou-se diante de um amador chamado Telka. Aquele homem, da Boêmia, vestia corretamente, tinha finíssimo trato e era evidentemente pessoa possuidora de fortuna. Simpatizando com Loughran, conversando com ele tão longamente que parecia ter esquecido a sua condição de aventureiro vagabundo, admitido por muito favor na sociedade de gentlemen.

Dois ou três parisienses que conheciam alguma coisa do passado de Loughran contaram o sabiam a Telka. E aquilo pareceu redobrar o seu interesse pelo aventureiro.

Telka era rico e gostava de prestar assistência financeira a seus amigos menos favorecidos da fortuna. Lembrou-se de auxiliar Loughran, mas refletiu que o dinheiro que lhe desse nada lhe adiantaria, pois acabaria por torná-lo um parasita, habituando-o a viver à custa de terceiros.

— Ele não aceitaria, mesmo, dinheiro nenhum — disse alguém.

 —Por que não? É um pobre diabo...

—Talvez. Mas ficou-lhe, do seu tempo de abastança, um orgulho que jamais o abandonou. Eu sei que ele vive miseravelmente, mas que não aceitaria, sequer, um teto para se abrigar. É um homem que seria capaz de roubar para comer, mas que jamais se curvaria a pedir auxílio.

E era assim mesmo. Loughran era homem que, em certos momentos, seria capaz de apunhalar um homem por um copo de bebida, mas jamais havia pedido auxílio a ninguém e muito dificilmente o faria.

Entretanto, sentado, muitas vezes, diante de Telka, ele o contemplava com um olhar cheio de tristeza, quase chorando pela sua situação de miséria e pela ânsia de voltar à vida decente de outrora.

Com alguns milhares de francos, poderia trazer sua mulher da Inglaterra para sua companhia, seguindo para estabelecer-se, afinal, no Canadá. E que eram alguns milhares de francos para aquele homem?

Entretanto, jamais se animou a pedir-lhe um cêntimo que fosse. Os outros amigos de Telka podiam pedir, ele, não.

Entretanto, um prêmio, numa aposta, não há quem recuse — nem, mesmo, o homem mais orgulhoso do mundo. Ora, Loughran tinha a maior facilidade para resolver os problemas do xadrez. Era uma faculdade quase fenomenal. Certa vez, um anônimo ofereceu um prêmio de cinco mil francos a quem solucionasse três problemas de xadrez, cujas condições seriam previamente publicadas.

E essas condições foram publicadas, finalmente. Os problemas seriam apresentados na mesma tarde da prova. O prazo, meia hora para a solução dos três.

Todos sabem que os problemas de xadrez, como todos os outros, podem ser fáceis ou difíceis. E os difíceis, não raro, exigem muita atenção e muito esforço cerebral. Não há quem possa resolver três problemas difíceis em meia hora, a não ser que se trate de um verdadeiro gênio. Praticamente, pois, as condições estabelecidas tinham sido preparadas para um só candidato — Loughran.

Ninguém se surpreendeu, pois, ao verificar que apenas Loughran se apresentou. Sim, a rigor, foi ele o único, porque os outros dois que também concorreram fizeram-no, apenas, pró-forma, sabendo, antecipadamente, que não poderiam vencer.

Loughran, porem, tinha a mais absoluta confiança na vitória final. Uma estranha exaltação se havia apoderado dele. Era a primeira ponte que colocavam entre ele e a sociedade de que havia saído e estava disposto a transpô-la com passo firme e seguro. A vida recomeçava para ele.

Telka apresentou o primeiro problema. Era um mate, em três movimentos, dificílimo. Os outros concorrentes receberam o problema e deram, cada um, uma orientação diferente ao seu raciocínio.

Alguns espectadores faziam apostas sobre o tempo que levaria cada um a resolver. Loughran descobriu a chave em menos de dez minutos. Uma trovoada de aplausos cobriu as palavras que anunciaram a solução.

Telka apresentou o segundo problema. Este exigiu mais tempo. Quine minutos se passaram, completamente, antes que Loughran o solucionasse. Por fim, já se estava tornando impaciente e foi sob verdadeira excitação nervosa que anunciou a sua solução. Então, pediu o último problema.

— O último — disse Telka — é o problema denominado "o xeque mate do diabo”. Este, creio que o senhor não conhece, Mr. Loughran.

Telka colocou as peças no tabuleiro e disse:

— Este problema tem uma lenda, que me contaram, quando ele me foi ensinado. Vamos interromper por um momento a prova, enquanto faço a narrativa.

Os outros concorrentes também se aproximaram. Nenhum deles tinha conseguido resolver sequer o primeiro problema, por mais que dessem tratos à bola.

— Parece, começou Telka, que certo feiticeiro da Idade Média chamou o diabo e fez com ele o tradicional acordo — o diabo lhe daria todos os bens terrenos por determinado prazo. Em troca, o homem lhe empenharia a alma. Havia, porém, uma condição: se o diabo, em determinado dia, não conseguisse solucionar um problema de xadrez, que lhe seria apresentado, perderia a aposta e o homem que lhe havia empenhado a alma ficaria livre. Naturalmente, o diabo é o maior de todos os jogadores de xadrez e concordou imediatamente. Os termos do acordo foram aceitos, pois, parte a parte. Por fim, o dia fixado chegou e o diabo se apresentou a reclamar a alma que lhe deviam. O feiticeiro colocou diante dele um tabuleiro com as peças dispostas da maneira como estão, neste momento, as que temos diante de nós.  O diabo não levou mais do que dez minutos para descobrir a solução. Era um mate em quatro movimentos e, como todos nós, os que entendemos de xadrez, muito bem sabemos, muito mais fácil do que em de três movimentos. O diabo, conforme eu já disse, descobriu a chave imediatamente e fez o primeiro movimento. Depois, fez o segundo e o terceiro. E, quando se preparava para fazer o último e já tinha a pedra suspensa no ar, soltou um berro e desapareceu. A alma do feiticeiro estava salva.


 


 

Uma gargalhada geral cobriu o final da história. Loughran parecia impaciente e muito nervoso, quando voltou ao tabuleiro. Anunciaram-lhe que tinha apenas cinco minutos.

— É possível que Loughran seja mais hábil do que o diabo, comentou alguém.

Na verdade, o problema era de fácil solução. Era evidente que ele dependia de uma série de sacrifícios de peças. Loughran fez o primeiro movimento, sacrificando um bispo, sem hesitar. Os outros movimentos se seguiram, sempre fatais. O segundo sacrificou uma torre; o terceiro, a rainha. O último movimento, de que resultaria o xeque-mate, consistia, apenas, num pequeno deslocamento de um bispo. O problema estava resolvido. Os espectadores aplaudiram.

— Um momento — disse Telka. — Mr. Loughran ainda não fez o movimento final. Compreende, agora, Mr. Loughran, por que razão o diabo não pôde vencer o jogo?

 —Não compreendo — respondeu Loughran.

— Faça o favor de olhar para o tabuleiro.

Loughran olhou. E, então, segurou-se à mesa, com os olhos arregalados de espanto. Com o movimento que tinha que fazer, as pedras formariam uma cruz sobre o tabuleiro

O jogador se recostou na cadeira. Uma estranha sensação se apoderava dele. Sentiu escorrer-lhe um suor frio por todo o corpo, como naquela noite, dez anos antes, quando havia ultrajado a imagem de Cristo

—Por que não faz o movimento? — perguntou Telka.

Pelo cérebro de Loughran passou, naquele momento, a recordação das palavras pronunciadas pelo estranho desconhecido de olhos de fogo: “Se você fizer o sinal da cruz, morrerá imediatamente”.

 Levantou-se e murmurou:

—Vou-me embora. Não me sinto bem.

—Sem fazer o último movimento? — gritou Telka. — Você está maluco? Restam-lhe ainda alguns segundos. Movimente a pedra e ganhe seus cinco mil francos.

Com o coração aos saltos, Loughran estendeu a mão para as pedras, tomou o bispo entre os dedos e fez o movimento.

—No bolso interno do meu casaco — disse com voz trêmula — há um endereço. Mandem o dinheiro para minha mulher.

E, depois de dois segundos de silencio:

—Xeque mate.

Novamente uma trovoada de aplausos agitou a sala. Telka estendeu a mão para felicitá-lo. Nas pontas dos dedos havia um papelzinho quadrangular.

—Aqui está o cheque — disse. — Que é que você quer dizer com essa história de mandar o dinheiro para sua mulher?

Loughran não respondeu.

Apenas respirou profundamente. Sim, tinha feito a cruz e nada lhe havia acontecido!

Mas apenas deu um passo à frente, levou a mão ao coração e desabou no soalho.

Quando correram em seu socorro, estava morto.

 

Tradução de “The Devil’s Checkmate” por autor desconhecido.

Fonte: “A Cigarra”, edição nº 107, 1943. Conto originalmente publicado em “The Popular Magazine”, fevereiro de 1916.

 


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