OS VERTES-VELLES - Conto Clássico de Terror - Edmond Bocquier
OS VERTES-VELLES
Edmond Bocquier
(1881-1948)
Tradução de Paulo Soriano
O
marinheiros Vincent e Jacques voltavam do mar em uma bela noite de junho,
desembarcando no porto de La Guérinière, na ilha de Noirmoutier, por volta das
onze horas da noite.
A
pesca não tinha sido nada má. Os dois marujos reservaram em sacos o que queriam
levar para a família e o resto, dividido em dois lotes, ficou na cantine,
onde o estalajadeiro mantinha vigília, aguardando a volta dos últimos barcos.
Para festejar a boa pesca e fortalecer as pernas — porque é difícil andar com
as costas vergadas sob o peso na areia que cede sob os pés — viraram um copo de
vinho branco e partiram.
A
noite estava bela. O céu fervilhava de estrelas e a Lua brilhante flutuava no
azul escuro como um véu prateado em um mar remansoso. Era uma daquelas noites
calmas, em que toda a brisa morre sob as dunas, em que as vagas desfalecem nas
margens do Arée, e o último marinheiro se surpreende ao ouvir os seus passos
ecoarem na dignidade do vasto silêncio, que se expande sobre todas as coisas.
Era uma daquelas noites de solene calmaria, como se feita para morrer suavemente,
muito suavemente, no grande céu azul cheio de estrelas douradas.
Os
marinheiros seguiam para L'Épine, onde o meu avô
Vincent morava na época. Ambos caminhavam pensativos, em silêncio, pois não
ousavam perturbar, com suas vozes, o grande silêncio da noite. Embora nunca
fossem vistos na igreja, tinham esses homens de outrora uma alma religiosa. E,
na noite de junho, eles se sentiram maravilhados com tanta grandiosidade no céu
azul, com tanta paz na terra, mas seus corações de lobo do mar estavam
estranhamente abalados, e o silêncio que faziam parecia a obscura prece de suas
almas comovidas diante do mistério do infinito.
Primeiramente,
caminharam ao longo da praia; depois, seguindo direto na direção de L'Épine,
cortaram a duna e percorreram as suas fraldas, para caminhar mais à vontade na
areia fina mesclada com terra ocre. Era cerca de uma hora — os dois homens não
iam rapidamente, bem se nota — quando eles viram, meia milha à frente, toda
branca, como uma cabana de prata sob a luz intensa que caía da Lua em zênite, a
casa baixa do mestre Corvou.
—
Mestre Corvou não poderá nos pregar uma peça esta noite — disse finalmente Jacques
—, nem nos fazer perder a pescaria ou nosso caminho nas dunas...
—
E por que está dizendo isso, rapaz?
—
Você não sabe que o Corvou está muito mal?
—
Ah! Agora estou entendendo, Jacques — disse Vincent. — Lembro-me de que ontem,
ao largar o cabo de amarração e tomar o leme para sair do porto, o velho
Piarou, capitão do Fleur des Vagues, gritou-me, passando-me a toda a
velocidade, como se o diabo estivesse nas suas velas: ‘Acho que em breve serei dono
de mim mesmo: Corvou está partindo’. Naquele momento, eu não compreendi o
significado daquelas palavras; então, porque navegamos e pescamos demais,
esqueci-me de tudo isto. Mas, agora, me
lembro de que Piarou conservava um sorriso maroto sob a sua grande barba
cinzenta. É porque o Corvou o fez ver todas as cores e, especialmente, o preto.
Houve uma época de adversidades para este bom Piarou: perdeu o seu grande
companheiro no regresso da frota, justamente quando esperava ter um bom imediato
no comando; a pesca foi má durante vários anos e, de infortúnio em infortúnio,
foi necessário, num dia de mares agitados, que o seu barco colidisse com as rochas
do Le Vieil, não muito longe do Cabo. O pobre homem já não tinha dinheiro, por
isso pediu emprestado a Corvou e deu-lhe uma parte no barco reparado, mas desde
então o feiticeiro se aproveitou para ludibriá-lo na maior parte dos ganhos.
—
Corvou! — Jacques disse, com um tremor em sua baixa voz, como se temesse ser
ouvido. — Que nome! Corvou! Corvou!
—
Sim, Corvou, o Corvo! Nome do pássaro negro! Sobrenome de infortúnio! Ente amaldiçoado!
Corre à noite como uma coruja, escuta à porta, ronda as casas onde gemem os
moribundos. Corvou da morte, provedor de luto!
—
Dizem que ele é muito rico, embora nunca tenha trabalhado.
—
Sim! O seu pai se chamava Corvou, seu
avô também. Todos eles. Corvou, sobrenome que passou de pai para filho; todos
Corvos, de fato, em suas vidas, passando adiante a maldita herança de suas
práticas abomináveis; todos eles semeadores de infortúnios e luto, exploradores
de gente pobre como este bravo Piarou. Aves de rapina sinistras, sempre à
espreita, aterrorizando a todos, têm sobrevivido à custa das lágrimas e suores
daqueles que sofrem e trabalham. Ah, se pudéssemos reunir todas as vítimas do
Corvous num amplo espaço, ficaríamos chocados com a imensidão dessa multidão
abalada pelos soluços, por essa multidão de seres desolados, com seus lábios
trêmulos, contendo as mais implacáveis maldições. Corvo de mau-agouro, o seu
tempo, como o nosso, está marcado no mostrador do céu!
—
Corvou está sozinho em casa — continuou Jacques. — Ele não quer médico, nem acompanhante,
nem padre.
—
É que estas pessoas morrem como cães. Esses Corvou moribundos, nunca tendo
conhecido o bem, não podem obtê-lo quando chegam ao fim de suas existências, e
são os demônios, seus irmãos, que os levam embora. Isso é o que as pessoas
sempre dizem, e eu acredito nisto. E devem ser os gritos de morte dos Corvou o que
ouvimos à noite, na tempestade, quando um de nós morre no mar e devolve a Deus a
sua alma.
Fez-se
silêncio, e esses dois homens, que não iam à igreja, pareciam meditar, enquanto
falavam de coisas tão grandiosas no mistério da noite.
Enquanto
conversavam, aproximaram-se da casa de Corvou. Eles não o temiam naquela noite;
mas, mesmo assim, por um resquício de desconfiança, cuidaram de evadir-se, abafando
os seus passos sob uma sebe de tamarindos. Atrás dela ficava o pátio de Corvou,
depois sua casa, que podia ser vista, toda branca sob o luar, entre os débeis galhos
dos arbustos.
De
súbito, os dois homens escutaram um ruído no pátio. Com um salto, eles se
agacharam sob a sebe, apavorados, prendendo a respiração... Mas que coisa!
Seria Corvou caminhando por ali, a algumas braças deles? Seria o bruxo Corvou,
que diziam estar em agonia? Iria passar diante deles, envolto em preto, com seus
olhos vermelhos, e passear, à noite, a sua sinistra silhueta? Então o bruxo os
veria, olharia para os marujos com seus olhos perversos, tão duros quanto uma espada,
e eles seriam enfeitiçados e infelizes para sempre. Eles e os seus filhos!
Os
ruídos continuavam, mais altos, e, também, mais nítidos: eram na maioria
passos, pois os tamancos de madeira podiam ser ouvidos, estalando no chão firme
da eira. Então vieram o rangido de um eixo e o movimento brusco de uma carroça.
Depois, de repente, duas venezianas se abriram violentamente, batendo nas
paredes, e os dois homens intuíram que uma janela estava sendo escalada. Vincent
ergueu-se um pouco e, tremendo, febril — e era ele um homem que não teria
estremecido diante da morte no mar —, ousou olhar por entre os tamarindos.
—
Ah, Deus, o Vertes-Velles! — sussurrou.
Jacques
também olhou.
Lá
no pátio, inundada pelo luar, estava uma carroça toda pintada de preto. Ao
lado, um homenzinho parecia estar esperando. Era um anão, um verdadeiro
esqueleto. Mas no rosto ossudo e lívido, encimado por um capuz preto, dois
grandes olhos brilhavam como carvão em brasa nas órbitas profundas. Sob os
lábios desgastados, os dentes pareciam longos e brancos; um sorriso terrível,
enrugando a pele amarela das bochechas até as orelhas, tornava a expressão daquela
figura infernal mais horrenda e perversa.
A
janela da casa de Corvou estava aberta e se ouviam, lá de dentro, ruídos, pisoteios,
farfalhar de lençóis, suspiros e imprecações. Os dois pobres marinheiros, paralisados
como blocos de pedra, não desviaram os olhos do horrendo espetáculo. Coisas
terríveis iriam acontecer! O anão parecia estar ficando impaciente no pátio. Achegou-se
à janela e, inclinando-se para dentro, gritou com uma voz seca e fina como uma
lâmina de aço vibrante:
—Depressa,
irmãos! Pois o caminho é longo, a noite avança e o galo logo cantará!
Eram
duas da manhã.
De
repente, mais dois anões, muito semelhantes ao que os
marinheiros observavam no pátio, apareceram no parapeito da janela. Eles erguiam
um fardo muito pesado. Um deles, passando por cima da soleira, pulou à eira,
agarrou o fardo com os dois braços e carregou-o para a carroça. Os dois
marinheiros ficaram como se morressem...
Os
Vertes-Velles arrebataram o Corvou! E o Corvou estava morto! Sim, o
fardo era ele, com sua boca zombeteira, perverso até a morte; era ele, com seu
nariz de bico de falcão, sua grande fronte, sua cabeça calva, suas longas mãos
de ave de rapina. Mas ele não tinha mais seu olhar animalesco à espreita, e sua
cabeça tombava, inerte, sobre os largos ombros. Os anões o colocaram de pé na
carroça e ataram-no com cordas, pois os fardos devem ser amarrados para evitar
que caiam no caminho. Então, os três anões atrelaram o veículo aos seus lombos.
—
Vamos lá!
A
carroça, puxada pelos anões, movia-se graças a um triplo esforço, enquanto o
cadáver, em suas amarras, balançava aos solavancos, como aqueles pássaros nos
campos, mortos e fincados na ponta de postes altos, fortemente agitados pelos
ventos. E a Lua lançava sobre tudo aquilo a luz branca de uma mortalha.
Os
marinheiros só tiveram tempo de encolher-se um pouco mais sob os tamarindos
inclinados: os Vertes-Velles, com a carroça funerária e o fantasma de
Corvou, galoparam pela estrada, seguindo a toda velocidade, rumo à estrada
principal da ilha, e passaram como sombras da morte diante dos pobres
marinheiros petrificados.
Num
piscar de olhos, eles passaram pelos homem sem virar a cabeça, as costas
dobradas pelo esforço que faziam, seus tamancos enormes batendo na terra como
se ela estivesse congelada, a carroça sacolejando aqui e ali sobre os
pedregulhos. E o grande corpo, pendendo sobre as cordas, balançava ao ritmo
desordenado dos choques e dos solavancos. Era assustador, lívido, o cadáver; e mais
lívido e mais assustador se tornava sob o luar. Em menos de um minuto, nada
mais se via, mas ainda era possível ouvir, ao longe, muito longe, o rolar da
carroça e o estalar dos enormes tamancos na estrada solitária.
De
repente — e falando um com o outro apenas meias palavras —, os dois marinheiros
correram para o Thorn. Já raiava o dia sobre Anse Rouge, quando chegaram ao
presbitério para contar ao padre o que tinham visto. Assim que o Sol nasceu, o
padre caminhou, acompanhado por alguns circunstantes, em direção à casa de Corvou.
Tudo estava fechado na casinha, até a janela, e Corvou, com as pálpebras
fechadas sobre os olhos vermelhos, parecia dormir em seu leito de morte.
Todavia,
se os Vertes-Velles haviam deixado o corpo em sua cama, é porque eles
haviam levado consigo aquela alma amaldiçoada. Fugindo da luz crescente do dia,
eles ainda tinham que fazer rolar uma carroça preta ao longo de estradas
sombrias e desconhecidas dos seres humanos.
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