A ARMA E O ESPECTRO - Conto Clássico de Mistério - H. Shaper

 


A ARMA E O ESPECTRO

H. Shaper

(Início do séc. XX)

 

Charles Miller exalou um suspiro de intensa satisfação quando se viu, afinal, na estação ferroviária, após o longo dia que passara perante o júri, esperando o veredictum do tribunal.

Estivera preso e fora julgado como suposto autor do assassinato de James Rhodes, seu vizinho e, agora, isentado em um banco do trem, que ia reconduzi-lo à sua residência num longínquo subúrbio, sorria enlevado pela alegria de estar novamente livre e ser senhor de seus atos.

Recostou-se confortavelmente no banco e deu-se ao luxo de pensar tranquilamente em sua aventura; mas seus pensamentos não tardaram a ser interrompidos por um dos dois viajantes que tinham entrado para aquele vagão quase juntamente com ele. Era um homem alto e robusto de aspecto jovial. Miller recordou-se vagamente de o ter visto entre o público no tribunal.

—Desculpe, senhor — disse esse homem, voltando-se para ele. — Sabe me dizer se Miller foi absolvido? Se não me engano, era hoje que ele devia ser julgado.

A pergunta perturbou um pouco o rapaz, mas, dominando-se logo, respondeu:

 —Foi absolvido. Eu assisti ao julgamento.

— Ah! — fez o outro. — Caso curioso esse. Assassinar um vizinho, que o viera visitar... Eu estava convencido de que ele seria condenado. E o senhor?

— Eu não. Condenado por quê? Ao contrário; estava convencido de que ele havia de ser absolvido — respondeu Miller. — A polícia não encontrou revólver algum em sua casa... Ora, se ele não saiu dali até a chegada da polícia e se esta não encontrou em seu poder arma alguma, como poderia ele ter abatido com um tiro o pobre vizinho?

—Exatamente — opinou o segundo viajante que, até então, se mantivera silencioso. — Esse foi o principal argumento da defesa. Eu li nos jornais que a polícia revistou a casa minuciosamente, de cima a baixo. Ora, está provado que Miller não saiu dali desde o momento do crime até que os soldados acudiram ao estampido...

—Pois sim — disse o segundo viajante. — Eu também não sei explicar esse prodígio, mas continuo convencido de que o assassino foi mesmo o tal Miller.

—Ora, adeus! — disse o outro. — Isso é teimosia. Se o júri o absolveu, é porque não encontrou provas contra ele.

—Pois claro — exclamou Miller. — Ademais, como compreender que um homem mate um vizinho só porque se recusa a lhe vender um pedaço de terreno? O motivo seria de uma tal futilidade...

Depois, a conversação continuou entre os dois desconhecidos, enquanto Miller, fingindo ler um jornal, prestava grande atenção a suas palavras.

Um dos viajantes, o homem alto e forte, parecia não conhecer muito o caso e o outro prestava-se a relatá-lo com minuciosos detalhes, insistindo especialmente em descrever a cena do crime e o aspecto do assassinado.

Passado algum tempo, a conversa decaiu afinal e o homem alto dispôs-se para dormir. Estendeu as pernas, apoiou-se a um braço e disse, olhando para Miller:

—Tive hoje um dia muito agitado.

—Também eu — disse Miller, que deixou cair o jornal sobre o banco e fechou também os olhos.

Se não os tivesse fechado, teria visto que o viajante alto, agente de polícia encarregado do inquérito sobre esse caso, inclinava-se para seu colega e pronunciava a seu ouvido um nome, que o encheu de assombro.

 

*

 

Ao chegar em casa, Miller encontrou tudo no escuro. Solteiro, vivia sozinho com uma velha criada, que o abandonara desde o dia em que o vira preso. Talvez voltasse ao saber de sua absolvição; mas a notícia não podia ter-lhe chegado ainda. Além disso, ninguém poderia imaginar que ele voltaria tão depressa, porquanto tomara o trem uma hora depois de pronunciada a sentença.

 Na estação, algumas pessoas o tinham reconhecido, mas apenas o agente do correio o cumprimentara, dizendo:

—Tenho multo gosto em vê-lo livre.

Miller, por sua vez, limitara-se a agradecer com um gesto e não se detivera para falar com ninguém, tal era sua pressa de voltar para casa.

Entrou e fechou a porta. Tinha a certeza de não haver ali pessoa alguma; entretanto, foi logo envolvido pela sensação de que não estava só.

O rumor de seus passos ecoava pesadamente na sala fechada e a sombra lhe pareceu tão assustadora que ele se apressou a riscar um fósforo.

Olhou em torno de si e estremeceu, julgando ouvir rumor. Mas devia ser o vento.

Quis acender a luz. A lâmpada estava queimada. Foi buscar uma vela, acendeu-a e, sentindo fome, recordou-se de que não comera coisa alguma durante todo o dia.

Foi à despensa, abriu uma lata de sardinhas e dispôs-se a comer mesmo sem pão, tal o horror, que lhe causava a ideia de sair e falar com o padeiro, deixar-se ver pelas ruas...

Mas ouviu de novo rumor e ficou imóvel, à escuta. Dir-se-ia que passos cautelosos se aproximavam. Seria uma ilusão de seus ouvidos? Sim... devia ser. Era o estado de superexcitação nervosa em que tinha ficado pelas emoções daquele dia.

Deixou-se cair sobre uma cadeira e enxugou a testa orvalhada de suor. Tornou a ouvir os passos. Desta vez, não havia dúvida possível. Alguém estava ali. Quem poderia ser? Esperou trêmulo, inquieto...

Os passos se aproximaram mais. Sem coragem para volver os olhos, Miller teve a certeza de que alguém entrara na sala pela porta dos fundos. Voltou-se de súbito e viu entre os umbrais a figura de um homem. Num sobressalto terrível, Miller estendeu os braços e gemeu com voz rouca.

—Não!... Pelo amor de Deus Vai-te.  Não entres, Rhodes.

Porém, James Rhodes continuou a se adiantar. Com os olhos desvairados, Miller fitava o rosto do assassinado, rosto pálido, lívido, com uma mancha vermelha destacando-se nitidamente sobre uma das têmperas.

Miller gritou outra vez:

—Vai-te, Rhodes.

 Mas, impassível, com ar resoluto, Rhodes chegou até junto dele e sentou-se em uma cadeira em frente.

Por um longo momento, ficaram em silencio. Por fim Rhodes falou com voz surda:

— Por que negas que me mataste?

Miller, petrificado pelo horror, continuava a fitar aquele rosto imóvel.

—Foste hábil — continuou o espectro. —Mas a mim não podes negar.

Miller fez um esforço imenso para perguntar:

—Mas... tu não estás morto?

— Sim... Bem o sabes. Pois foste tu que me mataste.

E Rhodes apontava-o, implacável, com o dado estendido. Recuando para evitar seu contato, Miller caiu de joelhos, suplicando:

—Não me toques... Deixa-me.

— Que eu te deixe?... Não! Conseguiste iludir os jurados, mas a mim não podes mentir, covarde, assassino!

— Eu fui absolvido... — balbuciou o miserável.

— Porque não encontraram o revólver. Onde o escondeste?

— Oh! — exclamou Miller erguendo-se num assomo de revolta. Então pensas que sou tão tolo que te vá que te vá dizer? Se tivessem encontrado o revólver eu estaria, a esta hora, condenado.

—Onde o escondeste? — repetiu o fantasma.

— Tens que me dizer... Senão, não saio daqui.

—Não... nunca o saberás...

 — Onde está? Onde está?... — insistiu Rhodes, erguendo-se e caminhando para ele.

Miller refugiou-se atrás da mesa, tremendo e balbuciando:

—Sim... eu digo. Mas não te aproximes, não me toques...

A face cor de cera teve uma expressão de indizível triunfo.

—Dize imediatamente.

—Ali; naquele volume da Bíblia — murmurou Miller. — Naquela estante do lado direito.

Rhodes correu à estante, observou o ponto indicado e protestou:

—Queres enganar-me outra vez. Como pode um revólver caber dentro de um livro fechado?

A mão de Miller crispava-se sobre as costas de uma cadeira, com o propósito evidente de atacar o fantasma.

Rhodes, porém, parecia ler em seu pensamento e, com um sorriso infernal, disse:

—Larga esta cadeira, imbecil. Não se mata um homem duas vezes. Dize onde está o revolver... neste livro não pode ser.

—Isso não é um livro, é uma caixa. Abre-se pela lombada... Tem uma mola no canto inferior...

O rosto de cera voltou a sorrir.

—Foste hábil, não há dúvida; mas agora estás perdido.

Tirara o revólver do falso livro e apontava-o para Miller.

—Certamente, esta arma ainda está carregada e vou te fazer o que me fizeste. Quero que saibas o que eu sofri.

Levou o dedo no gatilho; mas, nesse momento, a vela apagou-se. Aproveitando essa oportunidade, Miller fugiu a correr; porém, Rhodes perseguiu-o e, quando ele alcançava a porta, segurou-o com as mãos geladas.

—Larga-me, Rhodes, larga-me — gritou Miller com a voz desfalecente...

 

*

 

Nesse momento produziu-se em torno dele um movimento estranho.

Miller abriu os olhos e viu-se no vagão. Os dois viajantes fitavam-no atentamente.

O miserável endireitou-se no banco e perguntou, receoso:

—Tive um pesadelo. Não sei se disse alguma coisa....

— Sim, Miller — disse gravemente o viajante, alto e forte. — Pelo que ouvimos, o senhor disse o bastante.

—Foi um pesadelo — repetiu Miller. — Quando se sonha, diz-se tanto disparate...

 —Não... o senhor só disse coisas muito lógicas e razoáveis.

— Ora qual! Só podiam ser disparates — interrompeu Miller, quase com cólera.  — Pois, se não sonhei senão tolices, que posso ter dito de razoável?

—Falou num revólver e num volume da Bíblia. Mas, por enquanto, não vale a pena levar mais além essa explicação...

— Ah! — exclamou Miller, lívido de susto. — Por enquanto não vale a pena... Por enquanto... O senhor  quer dizer que voltará a discutir este ponto... Pretende, então, tornar a me prender, a me julgar...

E antes que os dois agentes de polícia pudessem adivinhar suas intenções, ergueu-se num salto, abriu a portinhola e precipitou-se do trem, entre os vagões.

Por um instante, os dois homens ficaram imóveis, fitando-se estupefatos. Depois, um deles ergueu-se, precipitadamente, e puxou violentamente a maçaneta de alarme.

Pouco depois, o trem se detinha bruscamente; mas o corpo do assassino estava tão desfigurado que só foi possível identificá-lo pela roupa e documentos que havia no bolso.

 

Fonte: Vida Policial, 13 de junho de 1925.

Tradução de autor desconhecido.  


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