O MAUSOLÉU DE COBURG - Narrativa Clássica Fúnebre - Sabine Baring-Gould
O MAUSOLÉU DE
COBURG
Sabine
Baring-Gould
(1834–1924)
Na
extremidade leste do jardim da residência ducal de Coburg há um pequeno
mausoléu, construído com bom gosto, adornado com temas alegóricos, no qual
estão depositados os restos mortais dos duques falecidos. Perto do mausoléu,
ergue-se um carvalho imponente, além de bosquedos de rododendros, acácias, teixos
e salgueiros-chorões.
Uma
plantação de pinheiros jovens esconde o mausoléu do Castelo de Coburg.
Apenas
algumas semanas após seu retorno de Bruxelas, onde visitara seu filho,
recentemente coroado rei dos Belgas, a duquesa Augusta de Sachsen-Coburg morreu
no castelo aos setenta e seis anos[1], em
16 de novembro de 1831. Uma multidão,
atraída pela admiração e amor que a princesa inspirava, saiu em visitação a seu
corpo, tal como estava na residência de Coburg, antes do funeral, que ocorreu
no dia 19, antes do raiar do dia, à luz de tochas.
O
funeral contou com a presença de homens e mulheres de todas as classes,
ansiosos por expressar seu carinho à falecida e respeito pela família. Muita coisa
fabulosa foi dita sobre aquele funeral. Falava-se
e acreditava-se que a duquesa viúva tinha sido colocada no mausoléu da família
adornada com seus anéis de diamante e colares valiosíssimos.
Entre
os que estiveram presentes no funeral da duquesa Augusta havia um bávaro,
chamado Andreas Stubenrauch, um artesão, então residente em Coburg. Era filho
de um armeiro, que seguiu a profissão do pai e se estabeleceu em Coburg como
chaveiro. Era ele um homem peculiarmente feio, de sobrancelhas largas e caídas,
cabelos castanho-escuros eriçados, sobrancelhas grossas e ocelos cinzentos e astutos.
Seu nariz era achatado, muito largo, com narinas enormes; sua pele era pálida;
tinha uma boca grande e o lábio inferior caído. Sua baixa estatura, sua falta
de proporção na constituição corporal e suas feições incomuns davam-lhe a
aparência de um homem estúpido. Mas, embora não fosse inteligente, não era de
forma alguma um tolo. Seu caráter estava de acordo com sua aparência. Ele era
um homem taciturno, maldoso e dissoluto.
Stubenrauch
fazia parte da multidão que passou pelo leito em que repousava o corpo da duquesa.
Ao transitar, lançou olhares cobiçosos às joias que adornavam a falecida. Também
compareceu ao funeral e chegou à conclusão de que a duquesa fora sepultada com
todos os artigos preciosos que a guarneciam, conforme expostos à vista de
todos, e com muitas outras joias, colocados com ela no caixão, conforme diziam
os burburinhos populares.
O
pensamento de todo esse desperdício de riqueza aferrou-se à sua mente, e
Stubenrauch resolveu entrar no mausoléu para furtar o cadáver. A posição da cripta
adequava-se a seus planos, pois era muito afastada e escondida do palácio, e
ele pouco se importava com fechaduras e grades, que provavelmente seriam
obstáculo de pouca monta para um chaveiro talentoso.
Para
executar o seu plano, decidiu-se pela noite de 18 a 19 de agosto de 1832. Naquela
noite, bebeu numa taverna vulgar até as dez horas. De lá, voltou aos seus
aposentos, onde coletou as ferramentas que reputava úteis à façanha, uma vela,
pederneira e aço. Então, dirigiu-se ao mausoléu.
Em
primeiro lugar, achou necessário escalar um muro de tábuas que circundava a
parte do terreno onde ficava o mausoléu. Depois, quando se postou diante do edifício,
descobriu que, para efetuar uma entrada, seria mais difícil e demorado do que
imaginara.
O mausoléu de Coburg |
O
mausoléu era fechado por um portão de ferro, formado por fortes barras de 2,5
metros de altura que, guarnecidas de pontas afiadas, irradiavam de um centro em
forma de semicírculo. Stubenrauch considerou que seria impossível abrir a
fechadura e, portanto, seria obrigado a pular o portão, independentemente do
perigo de ferir-se nas hastes pontiagudas. Havia apenas um pequeno espaço entre
as pontas e o arco da entrada, mas, através dele, ele conseguiu se esgueirar e,
assim, chegar, sem se machucar, ao interior do edifício.
Encontrou uma porta dupla, robusta, de carvalho, no vão que dava acesso à
cripta. As duas folhas eram tão exata e estreitamente encaixadas uma na outra
que ele encontrou a maior dificuldade para colocar uma ferramenta entre elas.
Tentou, em vão, introduzir as suas chaves falsas na fechadura e, por muito
tempo, seus esforços para abri-la com uma alavanca foram igualmente inúteis.
Por fim, por meio de uma cunha, ele conseguiu abrir um caminho através da
junção das portas, na qual poderia inserir uma barra, e, então, puxou uma das
folhas com toda força, jogando seu peso sobre a alavanca. Levou uma hora
inteira antes que pudesse arrombar a porta. A meia-noite soou quando a porta, rangendo
nas dobradiças, foi jogada para trás. Mas, agora, uma nova e inesperada
dificuldade se apresentou. Não havia lance de escada descendo para a cripta,
como ele havia previsto.
Mas
Stubenrauch não era homem para se amesquinhar com as dificuldades. Escalou de
volta os portões de ferro para a área livre e procurou uma vara longa e robusta
com a qual poderia sondar as profundezas, a fim de saber que medidas tomar para
descer. Correndo ao pomar ducal, ele amarrou e arrastou um galho partido de uma
árvore frutífera até o mausoléu e, com considerável dificuldade, conseguiu
passar pelo portal, que ele novamente superou com cautela e sem se ferir.
Então,
inclinando-se sobre a abertura, segurando o galho com as duas mãos, esforçou-se
em sentir a profundidade da cripta. Contudo, ao fazê-lo, perdeu o equilíbrio e
o peso do galho o arrastou para baixo. Ele caiu entre dois caixões, cerca de
quatro metros abaixo do piso da câmara superior. Lá, ele ficou algum tempo
inconsciente, atordoado com a queda. Quando voltou a si, sentou-se, tateou com
as mãos para verificar onde estava e meditou sobre o que deveria fazer em
seguida.
Sem
pensar em como sairia daquela situação, pois, sem dúvida, dela se safaria,
conhecedor que era da própria agilidade e aptidão para engendrar novos expedientes,
pôs-se a trabalhar para cumprir seu desiderato. Com compostura, Stubenrauch fez
lume e acendeu a vela. Feito isso, examinou o interior da cripta e os caixões
que lá havia, para selecionar o correto. Os da duquesa Augusta e de seu marido,
o falecido duque, eram muito parecidos, tanto que o rufião teve alguma
dificuldade em decidir qual era mesmo o certo. Ele escolheu, no entanto,
corretamente, o que lhe parecia mais novo e arrancou a capa preta. Embaixo dela,
encontrou o ataúde muito sólido, fechado por duas fechaduras, que estavam tão
enferrujadas que suas ferramentas não giravam sobre elas. Agora, ele não tinha
consigo a barra de ferro e outros instrumentos, que ficaram na câmara superior.
Com grande dificuldade, ele finalmente conseguiu quebrar uma das dobradiças e,
então, logrou romper a fechadura inferior, porquanto a de cima resistira a
todos os seus esforços. No entanto, a dobradiça e a fechadura quebradas
permitiram que ele levantasse a tampa o suficiente para vislumbrar o interior
do féretro. Pretendia inserir a mão e
remover todas as joias que, supunha, faziam companhia à senhora morta. Para sua
grande decepção, ele não viu nada, exceto os restos mortais da duquesa,
cobertos por um bolor branco cintilante, que lhe parecia fosforescente. O corpo
estava em veludo negro e as mãos — brancas e luminosas — cruzadas sobre o peito.
Stubenrauch não era homem para sentir respeito pelos mortos ou medo de qualquer
coisa sobrenatural. Com as duas mãos, ele sustentava a pesada tampa do caixão,
enquanto olhava para dentro, e a necessidade de usá-las para suportar o peso
evitou que sua mão profana tocasse os restos mortais de uma princesa augusta e
piedosa. De fato, Stubenrauch tentou mais de uma vez segurar a tampa com uma
das mãos, para, com a outra, apalpar os tesouros que imaginava ali escondidos,
mas, no instante em que ele removeu uma das mãos, a tampa desabou.
Frustrado
em suas expectativas, Stubenrauch recolocou a tampa e começou a pensar em como
poderia escapar dali. Mas, agora — e apenas agora —, ele descobriu que não lhe
era possível sair da cripta em que havia caído. O galho em que ele depositava
sua confiança era muito curto para alcançar a abertura acima. Todos os esforços
despendidos por Stubenrauch para escapar foram em vão. Ele foi pego em uma
armadilha — e que armadilha! Nêmesis caiu sobre o rufião de vez, na cena de seu
crime, e o condenou a se trair.
Agora,
pela primeira vez, um medo mortal apoderou-se dele — como afirmou mais tarde.
Sentia medo porque previa a punição dos homens. Não o afligia o simples temor
da ira dos espíritos daqueles cujos domínios que ele havia violado. Quando se
convenceu de que a fuga era totalmente impossível, ele se submeteu ao
inevitável; deitou-se entre os dois caixões e tentou dormir. Mas, como ele
mesmo admitiu, não conseguiu dormir profundamente.
Chegou
a manhã. Era domingo e havia uma especial festividade em Coburg, pois era o
vigésimo quinto aniversário da ascensão do duque, de modo que a cidade estava
em grande comoção, e o parque e o palácio também estavam agitados.
Stubenrauch
sentou-se e esperou. Alimentava-o a esperança de ouvir alguém se aproximar,
alguém que pudesse libertá-lo. Por volta das nove horas da manhã, ouviu passos
no cascalho e, imediatamente, começou a gritar por socorro.
A
pessoa que se aproximou saiu correndo, alarmada, declarando que ruídos
estranhos e sobrenaturais vinham do mausoléu ducal. O guarda foi avisado, mas,
a princípio, não acreditou na história. Por fim, uma das sentinelas foi
despachada para o local, e ela voltou rapidamente com a notícia de que,
certamente, havia um homem na cripta. Ele espiou pela grade da entrada: viu a porta arrombada, um pé-de-cabra e outros
utensílios espalhados.
O
portão foi aberto e Stubenrauch removido em meio a uma multidão furiosa e
espectadores consternados. Foi conduzido à prisão, julgado e condenado a
dezoito meses de trabalhos forçados.
Esse
não é o fim da história. Após sua soltura, Stubenrauch nunca se apegou a um trabalho
regular. Em 1836, ele foi preso por roubo e, novamente, sob a mesma acusação,
em 1844. No ano de 1854, ele foi encontrado morto num pequeno bosque perto de
sua casa. Entre os dedos da mão direita havia uma pitada de rapé e, na mão
esquerda, uma pistola com a qual ele havia estourado os miolos. Em seus bolsos
foram encontrados uma bolsa e uma garrafa de conhaque, ambas vazias.
A presente narrativa é
uma versão condensada de “The Coburg Mausoleum”, de 1891.
Tradução e adaptação de
Paulo Soriano.
[1] Na verdade, aos
74 anos. Augusta era avó materna da rainha Vitória do Reino Unido e mãe de
Leopoldo I da Bélgica.
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