FRUTO MALDITO - Conto de Horror - Manoel Tenório Jr.
FRUTO MALDITO
Manoel Tenório Jr.
(1961 – 2022)
O
Sol de verão descortinava a madrugada que aos poucos desfalecia em sua penumbra
e o dia ganhava cores. Revoada de pássaros, com cantos distintos, orquestrava
melodiosamente a sinfonia da natureza exuberante. No interior da mata, uma
névoa começava a se dissipar e a luminosidade entrava entre as folhas dos
cacaueiros, que agradeciam o calor do astro-rei. Era uma pequena plantação de cacau que, anos
após laborioso e incansável trabalho, dera sua primeira safra.
Tamanha
façanha rural fora praticada por dois sertanejos que fugiram da desdita de mais
uma seca inclemente, a qual sempre fustiga terras interioranas do Nordeste
brasileiro. Pedro Ambrósio da Silva e José Custódio de Jesus haviam se conhecido
na estação de trem de Água Preta, há alguns anos, e, em consórcio, decidiram
enfrentar as intempéries da hileia atlântica em busca de um destino melhor.
Pedro Ambrósio era um homem de estatura média e olhos azuis profundos. Tinha a
tez branca e o rosto marcado pela ação do tempo e pela grande exposição ao
inclemente Sol da caatinga. Era ambicioso e acostumado às dificuldades de um
meio hostil e agreste. Já José Custódio de Jesus tinha um ímpeto mais afetuoso
e era moreno, forte e alto, com mãos grandes e calejadas pelo labor em terras
alheias, na qualidade de cortador temporário de cana-de-açúcar na zona da mata
nordestina, local de grande absorção sazonal da mão-de-obra sertaneja.
Juntos, adentraram no interior da mata fechada, atingindo um
pequeno vale fértil esculpido pelo sulco do Ribeirão da Areia, tributário do
Rio Almada. Neste local, tomaram posse de uma área diminuta, não obstante muito
propícia ao cultivo do fruto amazônico. Logo de início, sofreram ameaças de
alguns posseiros próximos, que reclamaram as terras como suas, mas, como todos
os sertanejos, eram destemidos e corajosos, e não esmoreceram na árdua e longa
tarefa de plantar cacau nas matas virgens do Sul da Bahia.
A primeira safra já fora colhida e uma parte restante secava
em uma improvisada barcaça, que exalava um cheiro agridoce das amêndoas quase
secas. Possivelmente em dois ou três dias, com a ajuda do tórrido calor do Sol,
estariam prontas para ser ensacadas.
Pela quantidade de caixas colhidas, dariam aproximadamente umas
quinhentas arrobas que, vendidas ao preço que vigorava nas casas exportadoras,
somariam para eles quase que uma fortuna, tendo em vista o passado miserável
que viveram no sertão nordestino.
Após alguns dias, José Custódio foi a Água Preta para negociar
o cacau em uma casa comercial suíça, que pagava melhor preço que as outras, e
de lá trouxera sacos de linhagem suficientes para transportar toda a safra.
Acertara também com um tropeiro, que conduziria as mulas, para levarem o cacau
até o armazém ferroviário da casa compradora no distrito de Rio do Braço.
Retornando à roça, comentava com seu sócio toda a viagem em mínimos detalhes:
– Os gringos gostaram da amostra do cacau e
pagaram melhor! O cacau vai dar uma dinheirama, compadre! Vamos ficar ricos!
No que de imediato
Pedro Ambrósio retrucou:
– Amanhã, deixe que eu leve o cacau com o tropeiro. Existe
um caminho mais seguro por dentro da fazenda do Coronel Minervino Catalão.
Conheço os seus jagunços e peço pra eles me seguirem até a Estação de Rio do
Braço e de lá arribo no trem até Água Preta, junto com nosso tesouro.
A noite já estava se anunciando quando os dois foram
respectivamente para seus pobres casebres de pau-a-pique cobertos com palhas de
palmeiras nativas. José Custódio pensava no dia em que chegou a Ilhéus e lá
fora informado que aventureiros estavam desbravando as derradeiras terras
devolutas ainda existentes no vale do Rio Almada.
Recordava todo o sacrifício vivido na mata,
comendo caça e farinha seca, enfrentando a febre, cobras e feras selvagens,
como a temida onça que àquela época ainda habitava a selva tropical baiana.
Como foi difícil e penoso lutar contra tudo e contra todos. Não conhecia
descanso e conforto em toda sua vida, apenas o labor imperioso que começava com
os primeiros raios de sol e terminava com o acaso do dia. Agora finalmente
desfrutaria do lado bom da vida. Poderia construir uma casa pequena de tijolos
com telhado cerâmico, comprar uma cama e deixar de dormir sobre varas com
cobertura de palhas. Quem sabe até casar
e pôr fim à solidão da vida na mata. Enfim amanhã seria, além de um novo dia,
uma nova vida para ele. Adormeceu profundamente com um sorriso no rosto e a
alma leve como uma pluma ao vento.
Em outro casebre, Pedro Ambrósio, bem mais ambicioso que seu
parceiro, sonhava com uma mula forte e bonita, equipada com sela de couro
talhado com arreios adornados de prata. Imaginava entrando no arruado de Água
Preta e sendo cumprimentado por outros fazendeiros e não mais pelos humildes
trabalhadores rurais.
Em um devaneio que parecia pura realidade, via-se descendo
da mula e pisando forte com sua bota lustrosa de esporas caras sobre o precário
calçamento de pedras. Deixaria o anonimato e se tornaria uma figura respeitada
e admirada pela nova condição social. Poderia agora botar mulher por conta na
rua para cair nos braços da ternura feminina, quando se cansasse do exílio na
roça. Compraria em Ilhéus um terno de linho branco e um chapéu como os que eram
usados pelos os coronéis ricos da cidade. Aumentaria a área plantada de cacau,
ganharia mais dinheiro, e no futuro, quem sabe, seria um próprio coronel
poderoso e respeitado.
Imaginou tantas coisas e de repente se deu conta que metade
da safra era de seu incansável parceiro. E agora como enxugar o orçamento dos
seus sonhos? O que faria se já sonhara com tudo e tudo já lhe pertencia? Como é maravilhoso sonhar acordado e se
livrar, mesmo que temporariamente, das angústias e das aflições da existência
humana! Diversamente, como é terrível acordar de um devaneio e enfrentar
realmente a vida como esta se oferece cotidianamente ao homem. Era como se seus
sonhos não coubessem mais na sua parte do quinhão. E se não houvesse ninguém
para dividir suas aspirações e quimeras? Aí, sim, seus planos poderiam se
concretizar definitivamente!
O seu olhar se tornara, de repente, terrivelmente estranho,
traduzindo um pensamento que, de tão ignóbil e sórdido, se refletia no espelho
da alma. Não havia outro jeito para escapar da divisão da safra, a não ser se
livrando do seu sócio. Neste momento, a ganância falou mais alto que qualquer
outro sentimento humano, e como a cupidez é fria como gelo e realizada com
obstinação quase cega, começou a traçar o abjeto caminho para aplicação da
execrável sentença de morte imposta por ele ao seu companheiro. Tal sentença
foi resultado do rápido julgamento diabólico que sua mente, já tomada de ódio
pelo antigo amigo, adimplia. A condenação já fora dada, faltando apenas os
detalhes técnicos para consecução da pena.
José Custódio tinha marcado com o tropeiro para descarregar
o cacau no Rio do Braço, que em seguida seria definitivamente entregue em Água
Preta pelo trem de ferro. O veículo a vapor chegava ao entroncamento férreo
perto do meio-dia. Então Pedro Ambrósio teria tempo de realizar o crime bem
cedo e daí seguir no vagão de carga para receber o pagamento que mudaria seu
destino para sempre. Durante a madrugada toda, não conseguira dormir, ansioso
de executar seu ambicioso e cruel plano de morte. Sua ansiedade era semelhante
à de uma serpente que espera o momento certo de cair sobre sua presa
indefesa.
Ao amanhecer, Pedro Ambrósio já estava
fincado na frente da tosca morada de seu sócio. Um cheiro forte de café saía
pelas frestas do casebre. Anunciou sua presença e, após sorver um gole do
líquido negro e fervente, foi logo articulando seu plano demoníaco.
Comunicou ao ex-amigo que vira uma toca de tatu no pé de uma
barriguda e que, com sua ajuda imprescindível, poderia pegar o bicho antes
mesmo que chegasse o tropeiro para transportar a carga preciosa. José Custódio
ainda relutou, argumentando que poderiam fazer a tal tarefa depois. No entanto,
com um ardiloso argumento, seu algoz conseguiu convencê-lo. Então foram os dois
a caminhar pela mata adentro e, quando avistaram a frondosa árvore, se
dirigiram ao local. Parando em frente à barriguda, José Custódio estranhou a
ausência de qualquer vestígio que lembrasse uma toca de animal. Enquanto isto,
seu sócio vinha logo atrás com uma enxada em mãos, ferramenta necessária para
cavar e desentocar a caça. Virando-se para falar com seu executor, viu-o já com
o instrumento brandindo no ar! Ainda teve tempo de fixar-lhe os olhos e
observar sua expressão sobre-humana!
Um baque abafado traduziu o impacto da lâmina da enxada
desferido pelo golpe mortal que lhe atingiu a fronte! Uma cascata rubra
desceu-lhe pela face antes que o corpo caísse ao solo. Seus olhos abertos já
não tinham mais o brilho da vida e se assemelhavam, agora, aos olhos opacos de
um peixe exposto em um tabuleiro em meio à feira. Se, antes de morrer, a vítima
desse a volta na árvore, viria sua cova cavada de véspera pelo executor de sua
pena de morte. Após sepultar seu estorvo, Pedro Ambrósio ouviu um chamado que
ecoou pela selva. Era o esperado tropeiro que chegava para transportar a carga
de amêndoas preciosas como ouro.
Tudo saiu como planejado e, voltando da casa exportadora com
a pequena fortuna dentro de um alforje de caça, se dirigiu a um prostíbulo,
onde, após bebedeira homérica, comprou uma mula digna de verdadeiro coronel do
cacau, equipada com os sonhados arreios enfeitados de prata.
Já era quase noite
quando, retornando inteiramente trôpego no lombo da mula, ouviu uma voz
conhecida ecoando dentro da mata! Parecia ser a voz de José Custódio! Mas isto
era impossível! Como um morto poderia falar? Decidiu seguir, ignorando a voz
que ressoava pelas árvores e caminhos. No entanto, observou que não era uma voz
normal que entrava em seus ouvidos, mas
que fazia um caminho inverso, ou seja, saía de seus ouvidos, vinda do interior de sua cabeça atordoada!
Sua consciência agora ardia em agonia e o fazia se lembrar
do ato covarde e abominável que praticara. Um sentimento de remoço insuportável
invadiu sua alma por completo. Como poderia fazer uma verdadeira iniquidade com
uma pessoa que em vida só o ajudara! Lembrou-se dos dias ao lado do parceiro,
derrubando árvores centenárias, e fazendo aceiros para realizar queimadas no
interior da mata. Viu seu sorriso
sempre que era solicitado a realizar em conjunto alguma tarefa rural,
recordou-se do seu comportamento fraternal, agora tudo vinha à tona em sua
mente, e um turbilhão de imagens desconexas criou um peso insuportável sobre
seus ombros arqueados. Sua mente ficou totalmente atônita e à mercê de sua
culpa sem fim.
Não
suportando mais o arrependimento incomensurável que o dominava, avistou a
árvore e a cova rasa onde sepultara seu companheiro. Neste momento, começou a
cair da barriguda uma espécie de lã semelhante a algodão silvestre que despenca
quando frutifica. Uma camada de grossos fios brancos cobria-lhe a face! Parece
que até a árvore desaprovava sua conduta! Não poderia mais viver com uma
recordação execrável, que lhe aviltava espessamente a alma, e torturava
amarguradamente sua mente desequilibrada. Sua respiração acelerou! Seus
pensamentos o dominavam e todos confluíam para a realização do último ato.
Ainda montado, tirou mecanicamente o cabresto da mula e o
passou por um galho forte. Após enlaçar o pescoço com o rico material de couro
adornado em reluzente metal, esporou o animal que, de súbito, partiu, deixando
o corpo sem vida balançando como um pêndulo sobre a sepultura de sua vítima. Na
mata, tudo continuava como antes, e um fruto de cacau, esquecido na colheita,
pendia de um cacaueiro, observando a grotesca cena.
A republicação de “Fruto
Maldito”, que veio a lume em 08 de maio de 2013, é uma homenagem ao autor,
recentemente falecido. Manoel Tenório
Jr. era primo e grande amigo do editor de Contos de Terror.
ótimo
ResponderExcluirComo poderia fazer para expor contos de minha autoria aqui?
ResponderExcluirEscreva para paulo.soriano@gmail.com
Excluir