ALÉM DA MURALHA DA MORTE - Conto de Terror - Rogério SIlvério de Farias
ALÉM
DA MURALHA DA MORTE
Rogério
Silvério de Farias
“Os vivos são os
mortos de férias”.
Maurice
Maeterlinck
Formávamos um divertido quinteto.
Éramos quatro garotos de nove ou dez primaveras, mais uma menina de onze, certa
loirinha enxerida de cabelos cor de milho, presos em duas tranças. Naquele dia
longínquo de nossa infância, íamos todos alegres, cada um de nós montado numa
bicicleta, seguindo por uma estrada da cidade onde morávamos.
Pedalávamos alegremente. Nossas
bicicletas eram, em nossa imaginação infantil, corcéis mágicos, velozes e
indóceis, nos quais galopávamos pelas planícies da mais lampeira das
liberdades. Misturávamos a imaginação com a realidade. E se um dia tivéssemos
que morrer, pensávamos, certamente morreríamos montados em nossas bicicletas,
símbolos maiores de toda a nossa liberdade menina.
Mochila em nossas costas, cheia de mantimentos,
como dizia o Rolha-de-Poço, o gordinho da turma, coisas compradas na
venda azul do seu Quequé: garrafas de gasosa, balas de banana, balas 7
Belo, barras de arroz caramelado, pirulitos Zorro – ai, meu Deus, que delícia,
que saudade da infância saborosa!...
Estilingue pendurado no pescoço,
bolas de gude e pelotas de barro endurecidas ao sol devidamente guardadas numa
meia velha que servia de saquinho, guardadas como munição para a caça de
passarinhos no mato, lá nos sopés dos morros azuis que circundavam a cidade.
Era um dia ensolarado de estio, eu me
lembro. Uma brisa suave beijando nossos rostos, como se fosse uma fada bonita e
invisível, aliviando o calor. Seguíamos fazendo curvas, mofando um com o outro.
Passamos por um vendedor de laranjas,
numa barraquinha nas margens da estrada do bairro de Congonhas, o Negão das
Laranjas-cravo, um negro folgazão, sempre com um sorriso largo no rosto.
Gritamos a ele que queríamos algumas laranjas para chupar durante o passeio até
o rio onde iríamos nada, naquele ano de 1974, num tempo tão distante e que não
volta mais, a não ser em reprises inesquecíveis do cinema da memória. Laranjas
que devoraríamos todos juntos, durante o percurso, impregnando nossas mãos com
o cheiro forte da fruta, fazendo guerras de cascas, atirando-as uns nos outros
em batalhas memoráveis que não matavam nem feriam, apenas divertiam. O Negão
das Laranjas-cravo pegava nossas moedas, escondendo-as rapidamente no bolso
da calça. Depois catava as laranjas do grande balaio, colocando-as em saquinhos
amarelos, em forma de rede. Na volta pararíamos para conversar com mais vagar
com Negão das Laranjas-cravo, contando nossas histórias e ouvindo as
dele também, daquele pobre, porém honesto e alegre vendedor. Ouviríamos toda a
criatividade de suas mentiras abençoadas, mentiras que a nós soavam
verdadeiras, pois éramos crianças, e as crianças sabem muito bem que o mundo da
imaginação é muito mais real e bela do que a feia e ilusória realidade. Contaríamos
as nossas mentiras, também, evidentemente.
A nossa turminha era composta por um
certo mulatinho, o Salmonela, que ganhara este apelido durante uma aula
de Ciências, na escola básica Aderbal Ramos da Silva; Rapunzel, a loirinha
virago das tranças de ouro, sempre atrás da gurizada, mandando neles, na maior
parte do tempo; o Kung Fruta, um guri que tinha traços asiáticos; eu e,
finalmente, o gordinho Rolha-de-Poço. Todos tínhamos um bom apelido, é
claro. Eu também tinha o meu: por ser magro e pálido, chamavam-me de Dr.
Defunto.
No cinema da minha memória, a câmara
vem focalizando-os de frente, em movimento lento. A gente vem descendo uma
pequena e suave ladeira, borboletas e libélulas voando em nossa frente, como
pequenas fadas a nos acompanhar na doce alegria de viver. Estamos rindo e
galhofando um com o outro como pequenos anjos rebeldes. Logo adiante há uma
curva fechada. Depois dela, às margens da estrada, uma capoeira grande, onde
colheríamos amoras pretas e ingás maduros.
Não percebemos o velho caminhão vindo
em velocidade, como um gigantesco dinossauro de metal. A trilha sonora deste
meu filme mental recordativo é a nona sinfonia de Beethoven.
Num close-up de minha memória, vejo o
rosto suarento de Rolha, a boca aberta sem um dente na frente, gritando
“Cuidado, uma porcaria de caminhão!”.
O velho caminhão desviando da gente.
Rude como um diabo, o motorista põe a
cabeça para fora da janela do caminhão. Grita alto, enfezado mesmo:
— Seus moleques vadios! Onde vocês
pensam que estão, seus filhos de uma vadia? No pátio da escola de vocês?
O caminhão prossegue em frente, como
um trem do inferno.
Mas o Rolha-de-Poço ainda tem
tempo de berrar, no seu jeito irritadiço de ser:
— Vai se danar, seu porco suado!
E gritamos então todos juntos para o
motorista:
— Vai-te embora, bicho feio! Bolo
fecal! Saco de bosta podre!...
E rimos com toda a alegria sacana da
infância. Rimos do motorista e de nós mesmos. Rimos do medo que sentíramos.
Continuamos pedalando, porque pedalar
era preciso.
Uma outra curva, agora. Ficamos
atentos.
Vimos, com um friozinho na barriga,
um fusca preto surgindo em nossa direção, como um touro bravo. O carro vinha
numa velocidade irresponsável, o motorista acelerando, acelerando, acelerando.
O ronco do motor era como o urro de uma fera de metal que iria nos pegar.
Eu vi. O motorista estava bêbado. Os
olhos vermelhos. Estava bêbado, sim senhor, meu Deus.
E como um cometa da morte, o fusca
nos apanhou em cheio.
Nossas bicicletas voaram. Nós mesmos
voamos. Nossos gritos de dor e medo também voaram nos ares; ainda hoje ecoam
dentro de mim, como sirenes sinistras no meu inferno de solidão e saudade,
agora que estou escrevendo essas lembranças melancólicas que vão sendo marcadas
como carimbos de tristeza no branco da tela do editor de textos do meu velho
computador.
Lembro que tudo escureceu como uma
noite. Vista e mente. Corpo e alma. Parece que dormíamos estranhamente num mar
de nuvens brancas, densas, tépidas, etéreas.
* * *
O verão de 1974 ainda não havia
acabado. Indicado pelo presidente Médici
no ano anterior, o general Ernesto Geisel é eleito pelo Congresso Nacional
presidente da República, em 15 de janeiro. Tomaria posse em março, dando
prosseguimento à ditadura. As coisas haviam mudado. Eu havia mudado. O Brasil
havia mudado. Para pior. Tudo mudara para pior. As coisas nunca iriam
melhorar. Nunca mais. O país continuaria nas mãos dos canalhocratas e
dos demagogos. Até quando, meu Deus? Quando este país vai ter juízo?...
* * *
Agora o outono chegara com suas
sombras, com suas folhas mortas cobrindo o chão dos jardins da vida tal como
uma mortalha de tristeza. As flores da alegria de viver haviam emurchecido,
pisadas pelos cascos negros dos cavalos da morte.
* * *
Quando abri os olhos, saindo da
placidez do coma, a primeira coisa que vi foi o branco das paredes. Estaria no
céu? Não. Mas, e aquele anjo, ali? Havia um anjo: minha mãe. Ali estava ela, ao
lado do meu leito, como o meu nume tutelar. Ela me olhava com aquele olhar de
eterna preocupação típica das mães.
—
Meu filho...
— Cadê a minha turminha, mãe?...
Houve uma pausa terrível.
— Filho...seus amigos...eles...
Ela não conseguiu responder. Eles se
foram, eu sabia. Eles não estavam dormindo. Eles não estavam no hospital de
minha cidade. Eles não estavam em casa. Eles não estavam mais conosco. Meu
Deus, onde eles estavam?
* *
*
Alguns dias depois, em casa, numa
cadeira de rodas, as pernas amputadas, as esperanças amputadas, foi que pude
compreender com amargura. Sim, agora eu sabia.
Agora eu sabia onde meus amigos
estavam. Estavam no cemitério da cidade, lá no alto da colina onde o vento sul
sopra como um titã invisível e mal-humorado. Estavam todos mortos, os meus
amigos.
Mortos. Mortos.
Rapunzel, Rolha de Poço, Salmonela, Kung Fruta, ossos sonhos, nossas
esperanças de um país melhor e mais justo, tudo morto, morto, morto. Todos e
tudo sepultado, morto, enterrado. Meu Deus, porque não me deixaste ir com eles?
Por que me abandonaste aqui, neste mundo da dor e da crucificação? Neste mundo
onde a solução para tudo é a morte, é a morte.
Nunca mais iria encontrar amigos de
verdade, eu sabia. Eles estavam além das muralhas da morte. Os meus verdadeiros
e únicos amigos agora estavam além do sono e dos sonhos... Aguardavam-me com a
paciência assustadora que só os espectros têm.
Na Terra, com a chegada da idade
adulta, os homens perdem a capacidade de fazer amizades verdadeiras. Eu nunca
mais teria amigos no mundo. Nunca mais.
Vocês querem saber do motorista
irresponsável do fusca negro, não é mesmo? O irresponsável fugiu. Jamais foi
preso. Filhinho de papai. Sobrinho de um imbecil que era juiz da cidade. Costas
quentes, sabem como é? Aquele filho da mãe!
* * *
O tempo passou como uma grande mão
virando as páginas do livro do destino. Ontem sonhei com meus amigos. Salmonela,
Rolha, Rapunzel, Kung Fruta. Até com Negão das Laranjas-cravo, que morrera
com uma faca enterrada no pescoço ao tentar apartar uma briga de dois bêbados
na vendinha azul do seu Quequé, que também se foi logo depois, numa
parada cardíaca, seu coração bondoso parando de sonhar para sempre, para
sempre. Todos eles estavam vestidos de branco, sorridentes como anjos, felizes.
Estariam mortos realmente? E eu? Estarei vivo, realmente? Quem está vivo
e quem está morto, afinal de contas? Quando meus amigos morreram, uma parte do
meu ser morreu também. Hoje, estou vivo, sim, mas aguardando a minha vez,
aguardando os meus amiguinhos, para pedalarmos juntos outra vez por outras
estradas, as estradas azuis da felicidade, da alegria e da liberdade eternas.
Sim, estou com oitenta outonos, agora. Há rancor e amargura dentro de mim. Mas
aquele menino que eu era ainda existe em algum lugar recôndito do meu ser, como
um anjo do bem.
* * *
Anoitece. É o fim do inverno. A
porcaria do câncer apertou o cerco e eu voltei para o hospital. Estou num beco
sem saída. Estou à beira da morte. Estou de volta ao hospital. As paredes ainda
estão branquinhas, branquinhas. Aquela pequena rachadura em forma de raio ainda
está ali. Contudo minha mãe não mais
está ali para me consolar. Ela se fora, para sempre, para sempre. Adormeço por
um instante.
* * *
Estou quase nas vascas da agonia. Meu
espírito deseja a libertação. Um anseio de saber o que há além da muralha da
morte. Estou no fim? Quem apagou a luz? Deus, não me deixe no escuro, ainda
tenho medo do Bicho-papão. De repente um raio de luz cobre meu espírito de
esperança como um manto cálido. Agora eu posso vê-los. Ali estão eles, todos
eles. Minha mãe está ali também. Minha vó Idalina está ali. Meu vô Laurindo
também. O sorridente Negão das Laranjas-cravo. Seu Quequé da Vendinha Azul.
Até meu cachorrinho Duque, morto quando eu tinha sete anos. Rapunzel, Kung
Fruta, Salmonela, Rolha-de-Poço, estão todos ali. Eles conseguiram
atravessar a muralha da morte. Não há mais dor, física ou moral. Agora eu tenho
pernas novamente. Há só a aura da felicidade, da alegria, da paz, do amor.
Estou feliz outra vez, ao lado deles, dos meus amigos verdadeiros, os mortos.
Era o primeiro dia de primavera no
mundo dos vivos. E era também um novo amanhecer.
Eu estava inspirado quando escrevi este. Hoje, não sei se porque a vida se tornou mais cheias de problemas pra resolver, eu meio que perdi essa inspiração. Modéstia à parte, ficou um conto interessante. Ass. Roger
ResponderExcluirTá, não tem nada de assustador no conto. Apenas uma triste realidade simulada.
ResponderExcluirA rigor, um conto fantático, no domínio do terror ou do sobrenatural, não precisa ser "assustador" para constituir-se em uma obra apreciável. Edgar Alan Pöe bem o sabia. Veja, por exemplo, "O Barril de Amotillado". O domínio cultivado por este sítio tanscende, necessariamente, o mero "susto".
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