AS PUPILAS FALANTES - Conto Clássico Fantástico - Pu Songling
AS PUPILAS FALANTES
Pu Songling
(1640 – 1715)
Vivia
em Ch'ang-ngan um erudito, chamado Fang Tung, que, embora não fosse destituído
de talento, era um libertino sem princípios e tinha por costume de seguir e conversar
com qualquer mulher que, por acaso, encontrasse.
Um
dia antes do Festival de Primavera de Tempo Limpo, passeava ele fora da cidade,
quando viu uma pequena carruagem com cortinas vermelhas e toldo bordado,
seguida de muitas criadas, montadas a cavalo. Dente elas, havia uma jovem
imensamente bela, que seguia num pequeno palafrém.
O
Sr. Fang, acercando-se para obter uma melhor visão, percebeu que a cortina da
carruagem estava parcialmente aberta; lá dentro, o erudito contemplou uma jovem
mulher, lindamente vestida, de cerca de dezesseis anos. A moça parecia-lhe a
coisa mais adorável que já teria visto.
Deslumbrado
com aquela visão, Fang não conseguia tirar os olhos da mulher; e, ora na
frente, ora atrás, ele seguiu a carruagem por muitas milhas.
Fang
ouviu a jovem chamar a sua criada e, quando esta se aproximou, disse-lhe:
—Abaixe
a cortina para mim. Quem é o rude sujeito que fica a me olhar assim?
A
empregada abaixou a cortina e, dirigindo um olhar colérico ao Sr. Fang, disse-lhe:
—
Esta é a noiva do Sétimo Príncipe na Cidade dos Imortais. Ela segue à casa de
sua família para visitar os pais, e nem mesmo uma moça da aldeia deveria olhá-la
assim!
Fang
esfregou os olhos e olhou em volta, mas a carruagem e os cavalos haviam sumido.
O incidente o assustou deveras. Correu para a casa, sentindo um grande incômodo
nos olhos. Mandou chamar um médico, que, examinando-o, percebeu nas pupilas uma
pequena película.
Na
manhã seguinte, a película crescera e os seus olhos não paravam de lacrimejar
A
película proliferou, e, em poucos dias, estava espessa como uma moeda.
Surgiu,
na pupila direita, uma espécie de espiral, mas, como nenhum remédio a debelava,
Fang, cheio de sofrimento, entregou-se à dor e desejou a morte. Ocorreu-lhe
arrepender-se de seus erros e, tendo ouvido que o sutra Kuang-ming poderia
aliviar-lhe o tormento, obteve uma cópia e contratou um homem para ensinar-lhe
as lições.
A
princípio, era uma atividade muito tediosa, mas, aos poucos, ele se acostumou a
ela, e passava todas as noites, assumindo uma postura de devoção, a rezar.
Ao
final de um ano, quando chegara a um estado perfeita calma, ouviu uma vozinha,
tão baixa quanto um zunido, vinda de seu olho esquerdo.
—
Está terrivelmente escuro aqui — Fang ouviu.
Em
seguida, escutou uma resposta vinda de seu olho direito:
—
Vamos dar um passeio e nos divertir um pouco.
Fang
sentiu, depois, uma comichão no nariz, como se algo estivesse saindo de cada
uma das narinas. Passado algum tempo, voltou a senti-la, como se, agora, aquilo
lhe penetrasse as ventas.
Depois,
ouviu uma voz, vinda de um dos olhos, dizer:
—
Eu não via o jardim há muito tempo: os epidendros estão murchos e mortos.
Ora,
o Sr. Fang gostava muito desses epidendros, dos quais havia plantado um grande
número, e costumava regá-los pessoalmente; mas, desde que perdera a visão,
esquecera-se deles.
Ouvindo,
no entanto, aquelas palavras, imediatamente perguntou à esposa por que ela
havia deixado os epidendros morrerem. Ela, então, perguntou-lhe como poderia
saber se as flores estavam mortas. Após a resposta de Fang, a mulher saiu para
examinar os epidendros e os encontrou realmente murchos. Isto causou a ambos
imensa surpresa.
Tendo
a mulher escondido-se no quarto, observou dois entes minúsculos, do tamanho de
um feijão, descerem do nariz de seu marido e correrem porta afora, mas os
perdeu de vista.
Pouco
tempo depois, voltaram e voaram até o rosto do marido, como abelhas ou besouros
procurando os seus ninhos.
Isso
continuou por alguns dias, até que o Sr. Fang ouviu a voz vinda de seu olho
esquerdo:
—Este
caminho rotundo não é nada conveniente. Seria bom fazermos uma porta.
A
isso, o olho direito respondeu:
—
Minha parede é muito grossa; não seria nada fácil.
—
Vou tentar abrir a minha — disse o olho esquerdo. — A abertura que eu fizer servirá, então, para
nós dois.
Em
seguida, Fang sentiu uma dor no olho esquerdo, como se algo se rompesse, e, em segundo,
descobriu que podia ver as mesas e cadeiras da sala.
Fang
ficou encantado com isso e relatou o sucedido à esposa, que examinou seu olho e
descobriu uma abertura na película, através da qual ela podia ver a pupila
negra brilhando. O próprio globo ocular parecia-lhe um grão de pimenta rachado.
Na
manhã seguinte, a película havia desaparecido e, quando o olho de Fang foi
examinado de perto, observou-se que continha duas pupilas. De sua feita, a
espiral no olho direito permanecia como antes. Eles, então, concluíram que os
dois intrusos haviam se estabelecido em um só olho. Além disso, embora o Sr.
Fang ainda fosse cego de um olho, a visão do outro era melhor do que a dos dois
juntos. Desde então, Fang assumiu um comportamento mais cuidadoso e adquiriu,
em sua região, a reputação de homem virtuoso.
Versão em português de
Paulo Soriano a partir da tradução inglesa de Hebert Giles (1845 – 1935).
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