O VIOLINO DO ENFORCADO - Conto Clássico de Terror - Erckmann - Chatrian

 



O VIOLINO DO ENFORCADO

Émile Erckmann (1822–1899) e Alexandre Chatrian (1826–1890)

Tradução de Paulo Soriano

 

Karl Hâfitz passou seis anos mergulhado no método do contraponto. Estudou Haydn, Gluck, Mozart, Beethoven, Rossini.  Gozou de uma saúde florescente e de uma fortuna honesta, que lhe permitiu seguir a sua vocação artística. Em síntese, dispunha de tudo o que é preciso para compor uma grandiosa e bela música, salvo o essencial: a inspiração.

Todos os dias, cheio de nobre ardor, ele levava para seu digno mestre Albertus Kilian longas partituras muito ricas em harmonia, mas cada frase pertencia a Pierre, a Jacques, a Christophe.

Mestre Albertus, sentado em sua grande poltrona, com os pés repousados sobre os trasfogueiros, o cotovelo metido na quina da mesa, enquanto fumava seu cachimbo, começou a sublinhar, uma após a outra, as singulares descobertas de seu pupilo. Karl chorou de ódio, enfureceu-se, contestou... Mas o velho mestre abriu silenciosamente um de seus inúmeros cadernos e, com um dedo sobre a passagem, disse-lhe:

— Olhe, meu rapaz!

Então Karl abaixou a cabeça e se desesperou com o futuro.

Mas, numa bela manhã, quando apresentou, em seu próprio nome, ao Mestre Albertus, uma fantasia de Baccherini variada por Viotti, o homem, que, até então, se conservara impassível, se irritou:

— Karl — gritou o professor —, você acha mesmo que eu sou um néscio? Você acha que não percebi o seu indigno furto? Isso é demais! Deveras!

E, vendo-o consternado com sua apóstrofe, disse:

— Ouça. Estou disposto a admitir que a memória o enganou, que toma as próprias reminiscências como algo original. Mas você, definitivamente, está engordando demais! Bebe vinho em demasia! São cálices em excesso! Isto é o que obsta os caminhos de sua inteligência. Você precisa perder peso!

— Perder peso?

— Sim!... Ou desista da música. Conhecimentos teóricos não lhe faltam, mas lhe faltam as ideias. E isto é bem simples. Se você passasse a vida revestindo as cordas do seu violino com uma camada de graxa, como elas poderiam vibrar?

Estas palavras do Mestre Albertus foram um raio de luz para Hâfitz.

— Por um imperativo ético — exclamou Hâfitz —, não hei de me esquivar de qualquer sacrifício. Como é a matéria que oprime minha alma, emagrecerei!

Seu semblante, neste momento, expressava tanto heroísmo que Mestre Albertus ficou realmente tocado. Abraçou seu querido aluno e desejou-lhe boa sorte.

No dia seguinte, Karl Hâfitz, com bagagem e bengala à mão, deixou o Hôtel des Trois Pigeons e a cervejaria do Roi Gambrinus para embarcar numa longa jornada.

Seguiu para a Suíça.

Infelizmente, depois de seis semanas, malgrado a sua gordura tivesse diminuído sensivelmente, a inspiração não o revisitou.

— É possível ser mais infeliz do que eu? — disse Karl a si mesmo. — Nem o jejum, nem a boa comida, nem a água, nem o vinho, nem a cerveja podem conectar a minha mente ao sublime. O que eu fiz para merecer um destino tão triste? Enquanto uma multidão de ignorantes produz obras notáveis, eu, com toda a minha ciência, todo o meu trabalho, toda a minha coragem, nada consigo criar. Ah, o Céu não é justo! Não, não é justo!

Enquanto assim pensava, seguia ele pela estrada de Bruck a Freiburg. A noite chegava, ele arrastava as solas dos sapatos e sentia-se quase a cair, de tão cansado que estava.

Nesse momento, Karl percebeu, sob a luz do luar, um velho casebre escondido por detrás do caminho.  Tinha o telhado inclinado, a porta torta, as janelinhas quebradas, a chaminé em ruínas. Altas silvas e urtigas cresciam ao seu redor e a janela no outão, a duras penas, dominava as urzes do planalto, onde o vento soprava violentamente.

Através da névoa, Karl viu o galho de um pinheiro flutuando sobre a porta.

— Vamos — disse a si mesmo —, o recanto não é bonito. É, até, um pouco assustador. Mas não julgue as coisas pela aparência.

E, sem hesitar, bateu à porta com a bengala.

— Quem está aí?… O que quer?  — uma áspera voz veio de dentro.

— Abrigo e pão.

—Ah! Certo, certo!

A porta abriu-se abruptamente e Karl viu-se diante de um homem robusto, de cara quadrada, olhos cinzentos e ombros cobertos por um manto furado no cotovelo, com uma machadinha na mão.

Atrás dessa personagem brilhava a chama da lareira, iluminando a entrada de um sótão, os degraus de uma escada de madeira, as paredes decrépitas e, sob a luz da chama, havia uma jovem pálida e débil, coberta por um pobre vestido de algodão castanho com bolinhas brancas. A moça olhou para a porta com uma espécie de pavor. Seus negros olhos tinham uma expressão de indefinível tristeza e perplexidade.

Karl viu tudo de relance e, instintivamente, agarrou a bengala.

—Bem, entre! — disse o homem. — Não faz um bom tempo bom para negar-lhe abrigo.

Karl, julgando que seria estranho exibir qualquer receio, caminhou até o centro da sala e se sentou num banquinho em frente à lareira.

—Dê-me sua bengala e sua bolsa — disse o homem.

Pela primeira vez, o pupilo do Mestre Albertus estremeceu até a medula.  Mas a bolsa foi acomodada, o bastão colocado num canto, e o anfitrião sentou-se, calmamente, perto da lareira, antes que Karl se recuperasse da surpresa.

Essa circunstância restaurou-lhe um pouco de calma.

Herr wirth[1]  — disse ele sorrindo —, eu gostaria de jantar.

— O que o cavalheiro quer para o jantar? —  disse o outro, gravemente.

— Uma omelete de bacon, uma jarra de vinho, um pouco de queijo.

— Ora, ora, ora!  O cavalheiro tem um excelente apetite. Mas nossas provisões acabaram.

— Tudo?

— Sim.

— Tudo mesmo?

— Mesmo.

— O senhor não teria queijo?

 —Não.

— Nem manteiga?

— Não tenho.

— Nem pão... Nem leite?

— Nada.

— Mas, grande Deus! Qual é o problema?

— Tenho batatas assadas nas cinzas da lareira.

No mesmo instante, Karl viu, na escuridão, sobre os degraus da escada, todo um regimento de galinhas: brancas, pretas, avermelhadas. Estavam adormecidas, algumas com a cabeça sob as asas, outras com o pescoço sobre os ombros. Havia, contudo, uma galinha comprida, seca, magra, fatigada, que se bicava e se depenava despreocupadamente.

—Mas — disse Hâfitz, com a mão estendida — deve haver ovos...

— Nós os levamos ao mercado de Bruck esta manhã.

— Oh! Então, custe o que custar, coloque uma galinha no espeto!

Mal proferira tais palavras, a jovem pálida, de cabelos desgrenhados, correu à frente da escada, gritando:

— Não toque nas minhas galinhas! Não toque nas minhas galinhas!  Oh!  Deixe viver essas criaturas do bom Deus!

Havia algo de terrível no aspecto dessa jovem infeliz. Então, Hâfitz se apressou em responder:

— Não, não, não vamos matar as galinhas. Vejamos as batatas.  Gosto de batatas... Eu não vou deixá-los mais!  Neste momento, minha vocação está claramente emergindo. É aqui que eu fico, três meses... seis meses... Finalmente, terei o tempo necessário para ficar magro como um faquir!

Ele disse tudo aquilo com ânimo singular, e o anfitrião gritou para a jovem pálida:

— Génovéva!... Génovéva... Veja!  O Espírito o possui... É como o outro!

Lá fora, a intensidade o vento Norte redobrou. O fogo rodopiava na lareira e contorcia massas de fumaça acinzentada sobre o teto. As galinhas, no reflexo da chama, pareciam dançar nas tábuas da escada, enquanto a louca cantava, com voz estridente, uma estranha e antiga melodia. O tronco de madeira verde, uivando no meio da chama, acompanhava-a com seus melancólicos suspiros.

Hâfitz entendeu que havia caído no covil do feiticeiro Hecker. Comeu duas batatas, ergueu a grande jarra vermelha cheia de água e, em prolongados goles, bebeu.  Então a calma retomou-lhe a alma. Percebeu que a moça se havia recolhido e que o homem, sozinho, permanecia à frente da lareira.

Herr wirth — disse ele —, eu gostaria de dormir.

O anfitrião, acendendo uma lamparina, subiu lentamente a escada carcomida. Sobre a sua cabeça grisalha, ergueu um alçapão pesado e conduziu Karl ao sótão, debaixo do colmo.

— Eis aqui a sua cama — disse ele, pousando a lamparina no chão. — Durma bem e, acima de tudo, cuidado com o fogo!

Depois, desceu as escadas, e Hâfitz ficou sozinho, com as costas dobradas, diante de um amplo colchão, sobre o qual havia um grande travesseiro de penas.

Ele dormitava há alguns segundos, e se perguntava se seria prudente realmente dormir, já que a cara do velho homem lhe parecera assaz sinistra, sobremodo quando rememorava aqueles olhos cinza-claros, aquela boca azulada — rodeada da de grandes rugas —, aquela testa larga e ossuda, aquela pele amarelada... De repente, Karl se lembrou de que, em Golgenberg, houvera três homens enforcados, e de que um deles parecia singularmente com seu anfitrião... Que o enforcado, também, tinha olhos fundos, jaqueta com cotovelos perfurados e o dedão do pé esquerdo saindo de um sapato rachado pela chuva.

Lembrou-se, ademais, de que aquele miserável, chamado Melchior, fora músico no passado e de que havia sido enforcado por ter derruído, com um jarro, o estalajadeiro da Mouton d'Or, que dele exigira, conforme o costume, uma moeda adicional...

Certa feita, a música de tão pobre diabo o comovera imensamente. Ela era maravilhosa. A pupila do mestre Albertus indicava um quê de inveja ao pobre o boêmio. Mas, neste momento, vendo a face da forca, os trapos do infeliz, agitados pelo vento noturno, e os corvos voando ao redor, em gritos estridentes, Karl sentiu-se estremecer. E o seu medo cumulou de intensidade quando, nos confins do sótão, encostado à parede, vislumbrou um violino, coberto por duas palmas murchas.

Quando cogitou em fugir, chegou-lhe aos ouvidos a voz áspera do anfitrião:

— Apague a luz!  Deite-se! Eu lhe disse que tomasse cuidado com o fogo!

Essas palavras encheram Karl de um terror glacial. Então, deitou-se e apagou a luz.

Depois, tudo ficou em silêncio.

Apesar de resoluto a não fechar os olhos, enquanto ouvisse o gemido do vento, os pássaros da noite, chamando uns aos outros, na penumbra, os ratos trotando nas tábuas carcomidas do assoalho, Hâfitz, por volta de uma hora da manhã, dormia profundamente. Foi quando um soluço amargo, comovente e doloroso, fê-lo despertar, num sobressalto. Um suor frio inundou-lhe a face.

Olhou para cima. Viu, no canto do telhado, um homem agachado: era Melchior, o Enforcado! Seu cabelo escuro escorria sobre os ombros. Exibia, nus, o peito e o pescoço.  E era tão ressequido que se assemelhava ao esqueleto de um imenso gafanhoto. Um belo feixe de luar, esgueirando-se pela pequena claraboia, iluminava-o, suavemente, com um azulado esplendor, e, ao redor do enforcado, pendiam longas teias de aranha.

Mudo, Hâfitz, com olhos arregalados e a boca escancarada, observava aquele ser bizarro. Fazia-o como quem contempla a morte erguida, por detrás das cortinas de cama, quando a hora fatídica se aproxima.

De repente, o esqueleto estendeu sua longa e ressequida mão e agarrou o violino da parede. Encostou o instrumento ao ombro e, depois de um instante de silêncio, começou a tocar.

Havia, naquela música, notas fúnebres, como o ruído da terra caindo sobre o caixão de um ente querido.  Algo havia, no som, de solene, como os ribombar das cachoeiras, arrastado pelos ecos montanheses. E havia sonoridades majestosas, como as rajadas imensas do vento do outono, de entremeio às de florestas repletas de melodias. E, era, às vezes, triste... Triste como um desespero incurável, como um bando de alegres pintassilgos esvoaçando sobre os arbustos floridos... Estes graciosos trinados rodopiavam com um inefável estremecimento de descuido e felicidade, mas apenas para, de repente, lançarem-se em adejos terríveis, assustados pela melodia…  E o faziam cheio de loucura, de emoção, de desespero.  Amor, alegria, desespero… Tudo cantava… Tudo clamava… Tudo fluía desordenadamente sob aquele arco vibrante…

E Karl, apesar de seu inexprimível terror, estendeu os braços e gritou:

— Ó grande… grande… grande artista! Ó gênio sublime!  Oh, como me apiedo do seu triste destino! Padecer enforcado por haver matado um rude estalajadeiro, que não sabia, sequer, uma nota musical! Vagando na floresta ao luar, sem corpo algum, mas dotado de um talento tão impressionante… Oh, Deus!

Mas, quando assim exclamava, a voz áspera do anfitrião o interrompeu:

— Ei! Aí em cima! Vai, finalmente, calar a boca? Você está doente ou a casa está em chamas?

E passos pesados rangeram a escada de madeira. Uma luz profunda iluminou as frestas da porta, que se abriu com um empurrão de ombro, revelando o dono da casa.

— Oh, herr wirth! — gritou Hâfitz. — Herr wirth, o que acontece? Primeiro, a música celestial me desperta e me encanta nas esferas invisíveis... Depois, tudo se desvanece como num sonho.

O rosto do anfitrião, imediatamente, conformou-se numa expressão meditativa.

— Sim, sim! — sussurrou, como se sonhasse. — Eu deveria ter sabido! Melchior voltou a perturbar o nosso sono… Ele sempre volta! Agora, perdemos nós o sono. Não mais pense em dormir... Vamos, camarada, levante-se... Venha fumar um cachimbo comigo.

Aquele convite era desnecessário. Karl ansiava por sair dali.  Quando desceu, e vendo que a noite ainda era profunda, ficou, com a cabeça nas mãos e os cotovelos sobre os joelhos, por muito, muito tempo, imerso num abismo de dolorosas meditações.

O anfitrião acabara de reacender o fogo e de retomar o seu lugar na cadeira, posta no canto da lareira. Fumava em silêncio.

Finalmente, o dia cinzento apareceu.  Karl olhou pelas janelinhas monótonas. O galo cantou e as galinhas pularam de degrau em degrau.

— Quanto eu te devo? — perguntou, levando a mochila aos ombros e tomando na mão a bengala.

— Você nos deve uma oração na capela da Abadia de Saint-Blaise — disse o homem, com uma estranha entonação. —  Uma oração pela alma de meu filho Melchior, o Enforcado. E outra por sua noiva Génovéva, a Louca!

— Isso é tudo?

— Isso é tudo.

— Então adeus.  Não me esquecerei de seu pedido.

De fato, a primeira coisa que Karl fez, ao chegar a Friburg, foi rezar a Deus pelo pobre boêmio e por aquela a quem ele amara. Depois, foi à casa de Mestre Kiliam, o anfitrião do Grappe, espalhou o papel de pauta musical sobre a mesa, e, tendo trazido uma garrafa de rikevi, escreveu no topo da primeira página: “O Violino do Enforcado”. Compôs, de chofre, a sua primeira partitura verdadeiramente original.

 



[1] Senhor anfitrião. 





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