O DIA DE FINADOS - Conto Clássico de Terror - Julia Asensi


 

O DIA DE FINADOS

Julia de Asensi

(1849 – 1921)

Tradução de Paulo Soriano

 

Vinte anos antes, ele ainda brilhava por sua aparência, por seu talento, por sua discrição. Todos o conheciam, pois era o encanto das mulheres, o terror dos maridos, o modelo perseguido pelos jovens dissolutos[1]. Tinha numerosos amigos, livre entrada em círculos; se ele não se fazia presente, não havia reunião amena ou passeio campestre. Era poeta, e seus versos, ainda que vulgares e incorretos, eram admirados e aplaudidos. Havia nascido com boa estrela, ninguém era mais feliz que ele, mas... Dom Juan não deve envelhecer; Dom Juan deve morrer jovem, seja em um duelo ou em uma emboscada.

Dom Felipe de Mendoza tinha completado sessenta anos e, em vão, evocara o espírito maligno para que o rejuvenescesse, como Mefistófeles fizera a Fausto. Há alguns meses, deixara de pintar o cabelo e a barba, convencido de que as mulheres já não poderiam amá-lo, nem o temeriam os maridos. Era pobre: o seu capital, herdado de seus honrados pais, fora esbanjado em inúmeras aventuras, e ele vivia num quarto miserável, sem criados, salvo um serviçal ainda mais velho do que ele, um homem bom e desinteressado. Dom Felipe jamais lhe pagava o salário, mas retribuía-lhe com a sua sincera afeição.

Mendoza já não mais se vestia com sua proverbial elegância e, no dia em que o encontramos — uma tarde fria e chuvosa de novembro —, tinha ele uma capa escura sobre o terno surrado, que já contava vários invernos, e sobre a cabeça um chapéu negro de abas largas, que lhe ocultava a fronte sulcada de rugas.

Pela primeira vez na vida, dirigia-se a um cemitério, e escolhera o Dia de Finados para aquela estranha visita.

O campo-santo, no qual se viam muitíssimas pessoas, não exibia, naquela tarde, o frequente aspecto triste e severo. Multidões de luzes e coroas adornavam os túmulos e mausoléus, memórias dedicadas aos mortos por pais, cônjuges ou filhos.

Mendoza curvou-se diante dos sepulcros. Contemplou alguns de seus antepassados com emoção; outros, com indiferença. Viu os túmulos que encerravam as cinzas de mulheres amadas ou de amigos vendidos ou ultrajados. Chegou ao último pátio, o mais pobre de todos. Nele, os arbustos eram mais escassos, as luzes mais débeis, a concorrência menos numerosa. Porque cansado, sentou-se num degrau de pedra. Lá, meditou por um momento, e seus olhos se fixaram mecanicamente numa pequena lousa fendida e empoeirada, que cobria uma modesta sepultura. Levantou-se, leu as letras e os números, que mal conseguia decifrar. Sentou-se novamente, pegou a caderneta e, numa de suas páginas, rabiscou a lápis os seguintes versos, sem cuidar-se de que alguém o observava — ou de que a noite se acercava—, nem se dar fiel conta do que fazia:

 

Quão solitária estás, quão triste, quão esquecida!

Hoje, a festa é a dos finados,

que tumbas, panteões, mausoléus,

de amor ou vaidade galante ostentam;

 

Todas têm coroas; todas têm

lâmpadas acesas, e delas

nenhuma adorna tua branca sepultura,

nenhuma te empresta a viva claridade.

 

Apenas se distinguem de teu nome

as já confusas ou apagadas letras,

mas sei que eras mulher, quase criança

conforme indicam as datas gravadas.

 

Não sentiste? Não amaste? Entre os homens

deixaste tão furtivo e leve rastro

que de teu triste passo pelo mundo

já ninguém se recorda?

 

Ou talvez seja que os seres que te amaram

choram a tua morte em terras distantes,

e em tua humilde e sombria sepultura

sem encontrar consolo acaso pensem?

 

Diz-lhes, se for assim — se algumas vezes, para mitigar seus males, 

tu a eles te apresentes —,

que há um ser que, ao ver tua tumba envolta em mistério,

 conhece o teu isolamento;

um ser que não achará quem dele se recorde

quando ascender-lhe o espírito à outra esfera.


Assinou os versos, pôs a data ao lado da assinatura e, quando foi guardar a caderneta, observou que ao seu lado havia uma mulher alta, magra, vestida de preto, com o rosto coberto por um espesso véu.

—Deve ser uma viúva disse a si mesmo —, que veio, por mera conveniência, visitar o túmulo do marido já esquecido.

A enlutada, porém, não olhava para qualquer sepulcro e parecia ter toda a atenção voltada para Dom Felipe. Este viu que a noite avançava e que só ele e a mulher permaneciam naquele pátio de cemitério. Então, intentou levantar-se. A dama velada estendeu-lhe a mão fina e delicada, que ele tomou mecanicamente. Ambos cruzaram o cemitério, de um extremo ao outro, sem que encontrassem a saída — ou vivalma — durante a caminhada.

— Já fecharam o cemitério — disse a mulher, falando pela primeira vez, com uma entonação doce e melodiosa. —Voltemos, agora, para onde tu estavas. Lá, quero contar-te a minha história.

Entraram novamente no pátio derradeiro. Dom Felipe viu, com estranheza, que a laje — a que lhe inspirara os versos — havia sido levantada, exibindo um buraco negro e profundo. Sentaram-se, e a mulher de luto, sem levantar o véu, assim lhe falou:

— Há trinta, eu tinha dezesseis anos. Diziam que eu era bela, linda, simples, apaixonada. Órfão e pobre, morava com um irmão militar, que me adorava, e com uma empregada idosa. Eu desconhecia o amor quando conheci o cavalheiro mais valente, mais belo e mais temido daquele tempo. Saía eu da igreja ao anoitecer — pois havia começado a rezar uma novena —, quando o encontrei conversando acaloradamente com diversos amigos. Ao passar, ele me olhou fixamente; de repente, deixou os seus companheiros e me seguiu. Falou-me pouco, mas o bastante a acender o fogo do amor em meu coração. Por ele, soube que eu era bela e poderia ser amada; e, desde então, o meu espelho me repetiu aquelas palavras todos os dias. Dando dinheiro à minha empregada, ele conseguiu que a velha ama o introduzisse em minha casa, quando meu irmão lá não estava, e ali me declarou seu amor, sendo assim correspondido, porque eu o queria desde que o vi. Quanto tempo durou minha felicidade? Segundo ele, nossas relações foram as mais longas que ele já tivera; para mim, foram uma única gota do cálice da felicidade, que estaria sempre cheio, porque não haveria mortal capaz de esvaziá-lo.

“Algo me deixou triste, desesperada. O meu irmão — ignoro como ele descobriu o nosso amor —, desafiou o meu amante. Eu tive a imensa fatalidade de saber que o meu irmão morrera, em duelo, por minha causa. Sozinha no mundo, quis retirar-me para um claustro, mas as minhas lembranças me perseguiam. Compreendi que não podia consagrar-me a Deus. Caí gravemente enferma e, apesar dos cuidados de minha velha criada, adveio o meu fim prematuro, sem que ninguém chorasse por mim ou me guardasse na memória. A criada foi ver meu antigo amante, contou-lhe sobre minha morte e pediu-lhe um contributo para meu enterro. Ele a deu. Graças ao meu amado, tenho eu este sepulcro, cuja lápide o tempo destruiu, a mesma lápide que te inspirou os últimos versos que haverias de escrever.”

A enlutada terminara a sua narrativa. Alçou o véu e Dom Felipe reconheceu naquela mulher uma das menos queridas entre todas as jovens que formaram o livro de sua existência.

Entrementes, sombras confusas, igualmente vestidas de preto, de mãos dadas, avançaram em direção a Mendoza. Formaram um círculo ao redor do velho dissoluto[2], e a elas uniu-se a narradora. Ouviu-se uma estranha música. Ao mesmo tempo, as damas alçaram todos os seus véus, deixando a descoberto seus repugnantes rostos de sinistra e repulsiva expressão.

— Nós somos as mulheres que seduziste, mas que não vivem mais — disseram.

— As que seduzi eram todas lindas — murmurou Dom Felipe.

— É que então vias apenas o invólucro; agora, contempla-lhes a alma. Escolhe a quem queiras por companheira para depois de tua morte.

Mendoza estendeu os braços à única beldade: a de puro coração e doces sentimentos, a outrora menos amada, mas, agora, adorada. Encantada, ela juntou-se a Dom Felipe e o conduziu a uma frondosa e desconhecida alameda, cujo fim não se via.

 

* * *

 

No dia seguinte, quando o guarda do cemitério passeava, distraído, pelos pátios, chamou-lhe a atenção, no mais afastado, uma massa inerte. Aproximou-se e nela reconheceu o cadáver de Mendoza. Tinha o rosto voltado para a terra, como se beijasse a humilde pedra que inspirara os seus versos. O juiz foi, depois, proceder ao levantamento do corpo, e um médico, chamado para certificar aquela morte, declarou que Mendoza havia morrido duma morte natural e repentina. O ancião foi enterrado no último pátio, no mesmo lugar onde seu corpo havia sido encontrado, ao lado da sepultura esquecida. Apenas o velho criado visitou a sua tumba e lamentou a sua morte.



[1] No original, “calaveras”. No português, emprega-se, no Rio Grande do Sul/Brasil, o termo “calaveira”, de sentido pejorativo, um tanto similar.

[2] Vide nota anterior. 

Comentários

  1. Li todos os contos do Blog, por favor, não deixem de postar...

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