AMBIENTE ADEQUADO - Conto Clássico de Horror - Ambrose Bierce
AMBIENTE
ADEQUADO
Ambrose Bierce
(1842 – 1914?)
A Noite
Por
uma noite de verão, o filho de um camponês, que vivia a umas dez milhas da
cidade de Cincinnati, passava pela trilha que atravessa uma espessa floresta.
Perdera-se procurando umas vacas extraviadas e à meia-noite se encontrava muito
longe de casa, num lugar inteira mente desconhecido para ele.
Mas
era um rapaz corajoso e, sabendo da situação de sua residência, dirigia-se para
ele guiando-se pelas estrelas, sem titubear. Ao dar com a trilha e observar que
seguia na direção conveniente, tomou por ela.
A
noite estava clara, mas a floresta extremamente escura. O rapaz não se afastava
do caminho mais pelo sentido do tato do que pelo da vista. E seria difícil sair
dele, pois de um lado e de outro havia mato cerrado.
Andara
já uma milha quando lhe pareceu que à esquerda, entre as árvores, distinguia um
débil raio de lua. Aquela luz o alarmou e tornou perceptíveis a seus ouvidos as
pancadas de seu coração.
—
Por aqui fica a casa do velho Breede — disse. — Este deve ser o outro extremo
do caminho pelo qual chegamos a ela, saindo lá de casa. Uff! Que quererá dizer
uma luz por aqui?
No
entanto, continuou andando. Um momento depois saía da floresta para um pequeno
espaço aberto, cheio de mato rasteiro. Viam-se os restos de uma cerca pobre. A
poucos metros da trilha, no centro da clareira, se achava a casa de onde saía a
luz, pelo retângulo onde houvera uma janela. Esta havia sido completamente
destruída pelas pedradas daqueles que se aventuravam por ali, que assim punham à
prova a própria coragem e o desprezo pelo sobrenatural: pois a casa de Breede
gozava da reputação de mal-assombrada. Possivelmente não seria, mas assim mesmo
o mais cético teria que confessar que estava abandonada, o que nas regiões
rurais vem a ser quase o mesmo.
O
rapaz olhou a vaga luz que atravessava a janela e recordou, com apreensão, que
a sua mão também ajudara aquela destruição. Sentiu um pesar descabido e
absurdo, sendo tardio. Esperava quase que se desencadeassem sobre ele os espíritos
ultraterrenos e incorpóreos que havia ultrajado, auxiliando a destruir tanto a janela
como a paz de que os espíritos possivelmente gozavam. Assim mesmo, embora lhe
tremessem as pernas, não se afastou, teimoso. Circulava em suas artérias o
sangue pujante e rico de ferro de seus antepassados exploradores. Estava apenas
a duas gerações daquela que subjugara os índios. Pôs-se a caminho novamente,
tencionando passar em frente à casa.
Quando
se achava diante dela, olhou e lhe pareceu ver pela abertura da janela uma
visão estranha e apavorante: a figura de um homem sentado no meio da sala, a
uma mesa cujo tampo estava cheio de folhas soltas de papel. Os cotovelos do
homem se apoiavam na mesa, a cabeça descoberta estava segura entre as mãos.
Seus dedos se enterravam nos cabelos. O rosto era de um amarelado cadavérico,
iluminado pela luz de uma vela presa à mesa e um pouco inclinada. A chama iluminava
só um lado do rosto, o outro ficava mergulhado na escuridão. Os olhos do homem
estavam fixos no espaço aberto da janela, com uma expressão na qual um
observador mais velho e mais sereno descobriria uma certa apreensão, mas que
pareceu absolutamente impossível ao rapaz. Pensou que o homem estivesse morto.
Era
uma situação horrível, mas não sem uma certa fascinação. O rapaz estacou para
observar. Sentia-se barquejar, desmaiar, tremer; o sangue lhe fugiu do rosto.
Entretanto, cerrou os dentes e avançou resolutamente para a casa. Não o guiava
nenhuma intenção consciente. Enfiou o rosto alterado pela abertura iluminada. E
no mesmo momento o silencio da noite foi rompido por um grito agudo e
impressionante: o grito agoureiro de uma coruja. O homem se pôs de pé
bruscamente, derrubando a mesa e apagando a luz. O rapaz fugiu correndo.
No Dia Anterior
—Bom
dia, Colston. Parece que estou com sorte. Dizes sempre que os meus elogios aos
teus trabalhos literários são simples cortesias, e aqui me tens preso à leitura
do teu ultimo conto, publicado pelo "Mensageiro". Se não fosse a tua
mão no meu ombro, ainda não teria voltado a mim o prazer que dedico, ou poderia
derivar, do teu conto?
—
Numa grande medida. Permite-me que te pergunte se gostarias muito da tua
primeira refeição feita neste bonde em que estamos. Imagina que o fonógrafo
estivesse tão aperfeiçoado que pudesse te dar uma ópera inteira: o canto, a orquestração
e tudo. Achas que terias muito prazer se o pusesses a funcionar em teu
escritório nas horas de trabalho? Dás acaso importância à serenata de Schubert
quando a ouves tocada por um italiano andrajoso num ferry matinal? Estás
sempre pronto e disposto para o prazer? Conservas sempre todos os estados de espírito
para qualquer solicitação que te seja feita? Dás-me licença de que te observe
que o conto que me fizeste a honra de começar a ler, como simples meio de esquecerem
o desconforto da viagem, é um conto de assombrações?
—
Bem, e daí?
—Homem!
Não terão os leitores deveres que correspondam aos seus privilégios? Pagaste
cinco centavos por esse jornal. É teu. Tens o direito de lê-lo quando do e onde
te aprouver. A maioria da matéria que contém pode ser lida a qualquer hora, em
qualquer lugar, em qualquer estado de espírito. Muito do que há aí precisa ser
lido "quente", pelo sabor da novidade. Mas o meu conto, não. Não se
trata da última notícia sensacional da Espectrolândia. Ninguém necessita de
andar ao par do que acontece no mundo dos espectros. É uma leitura que pode
esperar que te ponhas em estado de espírito para apreciá-la, o que
respeitosamente sustento que não pode acontecer num bonde barulhento, ainda que
fosses o único passageiro. A solidão não é o único requisito a desejar. O autor
tem direitos que o leitor deve acatar.
—
Um exemplo específico?
—O
direito à atenção total do leitor. Negá-lo é imoral. Dividir a tua atenção
entre a obra, os ruídos do bonde e o aspecto das ruas é uma injustiça
grosseira. É um comportamento infame, por Deus!
O
homem que falava se pusera de pé e se mantinha em equilíbrio seguro a uma das
correias que pendiam do teto do bonde. O outro o observava com súbita atenção, pensando
como uma falta tão sem importância poderia justificar uma linguagem tão forte.
Notou que o rosto do amigo empalidecera de maneira insólita que seus olhos
pareciam dois carvões acesos.
—
Sabes o que quero dizer — prosseguir o escritor, falando com muito ímpeto, —
bem o sabes, Marsh. O meu trabalho hoje publicado no "Mensageiro" tem
um simples subtítulo que diz "Um conto de espíritos". É informação
suficiente para qualquer um. Qualquer leitor honrado compreenderá que essas
palavras prescrevem, implicitamente, em que condições o conto deve ser lido.
O
homem chamado Marsh pestanejou levemente e perguntou com um sorriso:
—
Mas quais são essas condições? Bem sabes que sou um simples homem de negócios,
que ninguém poderá supor que entenda dessas coisas. Como, quando e onde devo
ler o teu conto de fantasmas?
—
Sozinho, à noite, à luz de uma vela. Há certas emoções que o escritor pode
provocar com muita facilidade, como por exemplo a compaixão e a alegria.
Poderei fazer-te rir ou chorar em quaisquer circunstâncias. Mas quanto ao meu
conto de assombrações, para que tenha efeito, é necessário fazer-te sentir o medo,
pelo menos ter uma forte sensação do sobrenatural; e isso é difícil. Tenho o
direito de esperar que, se leres o que escrevi, me dês a oportunidade de
alcançar o meu objetivo, que te tornes acessível à emoção que procuro inspirar.
O
bonde chegou ao seu destino e parou. A viagem feita era a primeira do dia e a
conversa dos dois passageiros madrugadores não fora interrompido. As ruas ainda
estavam silenciosas e desertas; os telhados das casas acabavam de ser tocados
pelo Sol nascente. Quando começaram a andar lado a lado, Marsh observou de
perto o seu companheiro, que tinha fama, como a maioria dos homens de
habilidade literária pouco comum, de se entregar a diversos vícios
devastadores. É assim que se vingam as mentalidades obtusas das brilhantes, ressentidas
da superioridade das últimas. Colston gozava da reputação de ser um homem de
gênio. Há muita gente honrada que acredita que o gênio é uma fôrma de excesso.
Era notório que Colston não bebia, mas muitos afirmavam que ele fumava ópio.
Qualquer coisa em seu aspecto, naquela manhã — certo brilho no olhar, a palidez
insólita e a expressão exagerada da linguagem — pareceu a Marsh confirmar
aqueles rumores. No entanto, não quis abandonar um tema que lhe parecia
interessante, por mais que pudesse enervar o amigo.
—
Queres dizer, então — disse —, que se me der ao trabalho de observar as tuas
instruções, de me colocar nas condições que exiges — solidão, noite e uma vela
de espermacete —, poderás, com o teu conto de espectros, provocar em mim uma
aguda sensação do sobrenatural, como dizes? Conseguirás acelerar o ritmo do meu
coração quando eu ouvir ruídos súbitos, fazer-me sentir arrepios na espinha e
ficar com os cabelos de pé?
Colston
voltou-se para o amigo e fitou-o com firmeza, não parando nenhum dos dois de
andar.
—Não
terias coragem para tanto — disse, frisando as palavras com um tom de desprezo.
— Podes ler o meu conto num bonde, mas à noite, numa casa abandonada em plena
floresta... Qual! Tenho no bolso um manuscrito que te mataria.
Marsh
se irritou. Sabia-se valente e aquelas palavras o feriram a vivo.
—Se
sabes de um lugar assim — declarou —, leva-me para lá esta noite e deixa-me o
teu manuscrito e uma vela. Vai buscar-me quando houver passado o tempo
necessário para a leitura e eu te contarei o enredo todo, despachando-te depois
a pontapés... Verás.
E
assim foi que aconteceu que o filho do fazendeiro, ao olhar pela janela vazia
da casa de Breede, deu com um homem sentado à luz de uma vela.
No Dia Seguinte
Já
caíra a tarde do dia seguinte quando três homens maduros e um rapaz se aproximaram
da casa de Breede, da qual se acercara na noite anterior o rapaz, que havia ido
em busca das vacas. Os homens estavam de bom humor. Falavam alto e riam.
Atiravam ditos irônicos e jocosos ao rapaz, sobre a sua aventura, que
acreditavam ter sido puramente imaginária. O rapaz ouvia os gracejos
gravemente, sem replicar. Tinha noção da realidade dos fatos da vida e sabia
que quem afirma ter visto um morto levantar-se para apagar uma vela não merece
crédito.
Ao
chegar à casa de Breede e encontrar a porta aberta, o grupo de investigadores
entrou sem cerimônias, tomando para a esquerda, onde ficava o quarto da janela
destruída. E ali encontraram o cadáver de um homem.
Estava
caído de lado, com um braço sob o corpo e o rosto encostado ao chão. Tinha os
olhos desmesuradamente abertos; seu olhar era horrível de ver. O maxilar
inferior cedera; sob a boca aberta, no chão, formara-se uma poça de saliva. Uma
mesa tombada, uma vela meio consumida, uma cadeira e algumas folhas de papel
manuscritas era tudo o que continha a peça. Os homens examinaram o cadáver,
voltando-lhe o rosto um a um. O rapaz ficou do lado da cabeça do cadáver, em
atitude de proprietário. Era o momento mais feliz da sua vida. Um dos homens
lhe disse:
—
Tinha razão.
Essa
observação foi recebida pelos outros com gestos de aquiescência. Era o
ceticismo dando uma satisfação à Verdade. Depois um dos homens apanhou do chão
as folhas soltas e se acercou da janela, pois as sombras da tarde escureciam a
floresta. O canto agoirento de um pássaro se ouviu à distância e um escaravelho
monstruoso passou zumbindo pelo vão da janela, zumbido que foi morrendo aos poucos.
O homem leu:
O Manuscrito
“Antes
de cometer o ato que, com ou sem razão, resolvi pôr em prática e comparecer
ante o meu Criador para ser julgado, eu, James R. Colston, creio ser o meu
dever de jornalista fazer uma declaração ao público. Meu nome, se não me
engano, é suficientemente conhecido como o de um escritor de contos trágicos,
mas a mais sombria imaginação jamais concebeu algo tão trágico como a minha própria
vida e a minha história. Não em incidentes: minha vida foi desprovida
inteiramente de aventuras e de ação.
“Mas
a minha carreira mental foi fantástica em experiências de morte e de maldição.
Não vou narrá-los aqui. Algumas estão escritas e prontas para serem publicadas.
O objetivo destas linhas é explicar, a quem possa interessar, que a minha morte
é voluntária, um ato espontâneo. Morrerei à meia-noite em ponto do dia 15 de
julho, aniversário significativo para mim, porque foi nesse dia e a essa hora
que o meu amigo no tempo e na eternidade, Charles Breede, cumpriu o juramento
feito a mim de realizar o mesmo ato que a sua fidelidade ao nosso compromisso
me obriga agora a imitar. Suicidou-se na sua pequena casa da floresta de
Copeton. Sobre a sua morte foi feito o veredicto de um caso de ‘alienação
temporal’. Se houvesse declarado durante as investigações tudo quanto sabia,
teriam dito que eu estava louco".
Seguia-se
um trecho, evidentemente grande, que o homem que lia em voz alta passou a ler
para si. Mas leu o final para todos:
"No
entanto, resta-me uma semana de vida para resolver os meus assuntos temporais e
preparar-me para a grande transformação. É mais do que suficiente, pois tenho
pouco a fazer e há quatro anos a morte é para mim uma obrigação imperiosa. Encontrarão
este manuscrito com o meu cadáver. A quem o encontrar, peço que o entregue ao
juiz.
James R. Colston."
"P. S. — Willard Marsh:
Neste
dia fatal, 15 de julho, entrego-te o presente manuscrito para que o abras e
leias nas condições combinadas e no lugar por mim designado. Abandono a
intenção de conservá-lo comigo para explicar as circunstâncias da minha morte,
que não são importantes; servirá para explicar as circunstâncias da tua. Irei
te buscar durante a noite para ter a certeza de que leste o que escrevi.
Conheces-me o bastante para ter confiança. Mas, amigo, irei depois da
meia-noite em ponto."
J.R.C.".
À
leitura do manuscrito, uma vela fora trazida e acesa. Quando terminou de ler, o
homem levou, silenciosamente, o papel à chama e, apesar dos protestos dos demais,
segurou-o até que o manuscrito fosse reduzido a cinzas. Este homem — que posteriormente
suportou, placidamente, uma severa repreensão do juiz — era genro do falecido
Charles Breede. Não foi possível, no transcorrer do inquérito, apurar o
conteúdo do que estivera escrito no papel.
Do "The Times"
"Ontem, os comissários da Chefatura de
Insanidade encaminharam ao asilo o Sr. James R. Colston, um escritor de alguma
reputação local e colaborador do “Mensageiro”. Tenha-se em mente que, na noite
do último dia 15, o Sr. Colston foi colocado sob custódia policial por um de
seus companheiros de quarto, inquilino na Baine House, que o observou, numa
atitude muito suspeita, desnudando a garganta, afiando uma navalha e testando-a
ocasionalmente no braço etc. Ao ser entregue à polícia, o infeliz resistiu desesperadamente
e, desde então, tem estado tão violento que foi necessário mantê-lo encerrado
numa camisa de força. Os nossos outros estimados escritores contemporâneos
continuam, em sua maioria, à solta."
Tradução de autor
desconhecido do início do séc. XX. Adaptação textual de Paulo Soriano.
Fonte: “A Cigarra”/ SP,
edição de março de 1937.
Barão von Sorian, preciso ler este ainda hoje!
ResponderExcluirvou ler !
ResponderExcluir..."a uma mesa cujo tempo...", acho que é "tampo", erro digitação talvez...
ResponderExcluirIsto mesmo! Muito grato pela correção!!!!!
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