O CHARUTO ROMANESCO - Conto Clássico de Mistério - Guillaume Apollinaire


 

O CHARUTO ROMANESCO

Guillaume Apollinaire

(1880 – 1918)

Tradução de Paulo Soriano

 

— Há alguns anos — disse-me o barão d'Ormesan —, um amigo me ofertou uma caixa de charutos cubanos, recomendando-me por ter a mesma qualidade daqueles consumidos pelo falecido rei da Inglaterra.

À noite, ao levantar-lhe a tampa, deveras regozijei-me com o aroma que exalavam aqueles maravilhosos charutos. Eu os comparei com os torpedos cuidadosamente arranjados em um arsenal. Pacífico arsenal! Torpedos inventados pelos sonhos para combater o tédio! Então, tomando delicadamente um dos charutos, descobri que minha comparação com os torpedos era imprecisa. Parecia mais o dedo de um homem negro, e o anel de papel dourado aumentava a ilusão que a bela cor marrom me sugeria. Perfurei o charuto com cuidado, acendi-o e comecei a dar boas e aromáticas baforadas.

Depois de alguns instantes, passei a sentir na boca um sabor desagradável; pareceu-me que a fumaça do charuto cheirava a papel queimado:

— O rei da Inglaterra parecia ter, quanto ao tabaco, gostos menos refinados do que eu poderia imaginar. É possível, afinal, que a fraude, tão prevalente nos nossos dias, não poupasse, sequer, o paladar e a garganta de Eduardo VII. Hoje, tudo se perde. Não há mais como fumar um bom charuto.

E, fazendo uma careta, parei de fumá-lo: definitivamente, o charuto recendia a papelão queimado. Olhei para ele por um momento, pensando:

— Desde que os americanos tomaram Cuba, a prosperidade da ilha pode ter aumentado, mas os charutos de Havana já não são fumáveis. Sem dúvida, os ianques aplicaram às plantações de tabaco os processos da cultura moderna; os fabricantes de charutos certamente foram substituídos por máquinas. Tudo isso pode ser econômico e rápido, mas quem perde muito com isso é o charuto. Sobretudo porque o que acabo de fumar me dá todas as razões para acreditar que os falsificadores se intrometem neste processo e que jornais velhos, embebidos em nicotina, agora substituem as folhas de tabaco dos fabricantes de Havana.

Neste ponto de minhas reflexões, abri o meu charuto para examinar os elementos que o compunham. Não fiquei sobremodo surpreso ao descobrir, disposto de maneira que não impedisse a tiragem do charuto, um rolo de papel que me apressei em desenrolar. Consistia em uma folha de papel envolvendo — como a protegê-lo — um pequeno envelope lacrado com este endereço:

 

Sen. Don José Hurtado y Barral,

Calle de los Ángeles

Habana.

 

Na folha de papel, cuja borda superior estava um pouco chamuscada, li, com espanto, escrito em caligrafia feminina, em espanhol, algumas linhas das quais aqui está a tradução:

 

“Trancada contra a minha vontade no convento de La Merced, rogo ao bom cristão, a quem ocorra a ideia de saber a composição desse horrível charuto, que envie a carta anexa ao destinatário.”

 

Surpreso e muito comovido, peguei meu chapéu e, depois de me registrar como remetente na parte de atrás do envelope — para que ele me fosse devolvido acaso caso não chegasse ao destinatário —, coloquei a carta no correio. Depois, voltei para casa e acendi um segundo charuto. Era excelente, assim como os demais. Meu amigo não se enganara. O rei da Inglaterra fora um notável conhecedor de tabacos de Havana.

*

Este incidente romanesco já havia desaparecido de minha memória quando, certo dia, fui informado da visita de um homem negro — acompanhado por uma senhora negra muito bem-vestida —, que, com insistência, me suplicava que o recebesse, acrescendo que eu não o conhecia, e que, provavelmente, o seus nome nada significava para mim.

E foi com muita curiosidade que entrei na sala onde esperava o exótico casal. O senhor negro apresentou-se com naturalidade, falando num francês muito inteligível:

—Sou — disse-me ele — Dom José Hurtado y Barral…

— Como? É o senhor? — exclamei espantado, lembrando-me subitamente da história do charuto. Mas devo confessar que nunca me teria ocorrido que o Romeu havanês e sua Julieta pudessem ser negros.

Dom José Hurtado y Barral retomou cortesmente:

— Sou eu.

E, apresentando-me a sua companheira, acrescentou:

—Esta é a minha esposa. Tornou-se a minha mulher graças à sua gentileza, porque pais impiedosos a tinham encerrado num convento, onde as freiras, durante todo o dia, fabricam charutos destinados exclusivamente à corte pontifícia e à da Inglaterra.

 

 



Eu não me podia restabelecer do assombro. Hurtado y Barral prosseguiu:

—Nós dois viemos de negras famílias ricas. Há várias assim em Cuba. Mas, acredite, o preconceito de cor existe tanto entre os negros quanto entre os brancos. Os pais da minha Dolores queriam, a todo custo, que ela se casasse com um homem branco. Acima de tudo, queriam um ianque como genro e, lamentando sua firme resolução de se casar comigo, mandaram trancá-la, mui secretamente, no convento de La Merced.

Não sabendo como encontrar Dolores, eu estava desesperado e prestes a me matar, quando a carta, que o senhor gentilmente postou, me restabeleceu o ânimo. Raptei a minha noiva e, logo depois, ela se tornou minha esposa...

“E certamente, senhor, teríamos sido muito ingratos se não tivéssemos feito de Paris o objetivo de nossa lua de mel, onde tínhamos o dever de vir-lhe agradecer.

“Atualmente, eu administro uma das fábricas de charutos mais importantes de Havana e, querendo compensá-lo pelo péssimo charuto que fumou por nossa culpa, enviarei ao senhor, duas vezes por ano, um suprimento de charutos da melhor qualidade, e só espero conhecer o seu gosto para realizar a primeira remessa".

Dom José aprendera francês em Nova Orleans e sua esposa falava sem sotaque porque havia sido educada na França...

*

Pouco depois, os jovens heróis desta aventura romanesca regressaram a Havana. Devo acrescentar que — talvez por ser ingrato, ou por estar insatisfeito com o seu casamento, não sei ao certo — dom José Hurtado y Barral nunca me fez segurar charutos que havia me prometido...

 

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