O VASO MACABRO - Conto Clássico Sobrenatural e de Horror - Giovanni Boccaccio
O VASO MACABRO
Giovanni Boccaccio
(1313 – 1375)
Tradução de Paulo Soriano
Havia
em Messina três jovens irmãos, mercadores, que ficaram muito ricos depois da
morte do pai, este natural de São Geminiano. Tinham eles uma irmã chamada
Lisabetta, jovem muito bela e cortês, que eles mantinham ainda solteira, fosse
qual fosse a razão. Em um armazém, empregavam os irmãos um jovem de Pisa, de
nome Lorenzo, que dirigia e cuidava de todo os negócios dos jovens mercadores.
Sendo Lorenzo muito formoso e elegante, e vendo-o Lisabetta muitas vezes,
passou a gostar extraordinariamente do mancebo. Percebendo a inclinação da
moça, Lorenzo abandonou as namoradas, concentrando as suas esperanças em
Lisabetta. E de tal modo andavam as coisas que, amando-se um ao outro, em não
muito tempo atreveram-se a consumar o seu mais arrebatado desejo.
E
assim prosseguiram, passando muitos bons e prazerosos momentos. Não souberam,
porém, manter em segredo o que faziam, pois, certa noite, indo ela furtivamente
ao lugar onde Lorenzo dormia, o irmão mais velho apercebeu-se do encontro, sem
que Lisabetta o soubesse. Embora a descoberta lhe fosse dolorosa, o irmão era
um jovem prudente. Assim, movido por mui honesto propósito, e após meditar
bastante, perseverou no silêncio até a manhã seguinte.
Mais
tarde, ao raiar do dia, contou aos irmãos o que havia sucedido entre Lisabetta
e Lorenzo. Depois de uma longa reunião, os irmãos deliberaram que, para que não
caísse sobre a irmã qualquer infâmia, permaneceriam em silêncio, fingindo nada
haver visto ou sabido, até que fosse chegado o momento em que, sem prejuízo ou
desonra, pudessem lavar-se desta afronta, que não poderia, contudo, perdurar.
E
tendo assim decidido, brincando e rindo com Lorenzo, como era de costume,
deixaram a cidade, a pretexto de distrair-se, levando consigo o rapaz. Chegando
a um lugar muito afastado e ermo, e valendo-se da inocência de Lorenzo, que não
esperava o ataque, mataram-no, sepultando-o de tal maneira que ninguém pudesse
encontrá-lo. De volta a Messina, propalaram a notícia de que o haviam enviado a
algum lugar, do que as pessoas deram facilmente crédito, porque muitas vezes os
irmãos o punham a viajar a negócio. Mas Lorenzo não retornava. Lisabetta,
oprimida pela longa tardança, frequente e solicitamente indagava por ele. Certo
dia, perguntando Lisabetta insistentemente por Lorenzo, um de seus irmãos
respondeu:
–
O que isto significa? O que tens tu a ver com Lorenzo a ponto de perguntares
por ele com tanta frequência? Se voltares a perguntar, nós te daremos a
resposta que mereces.
Diante
de tal resposta, a jovem, melancólica e triste, temerosa sem saber por quê,
deixou de perguntar. Muitas vezes, à noite, dolorosamente clamava por ele, e
pedia que voltasse para ela. Outras, chorava e vertia lágrimas pela ausência
prolongada. E, lamentando-se, sem encontrar consolo, aguardava o retorno do
amante.
Certa
noite, havendo chorado muito a ausência de Lorenzo, sucumbiu ao sono. O rapaz
se lhe apareceu em sonho, lívido e desalinhado, com as vestes rasgadas e
podres, dizendo-lhe:
–
Oh, Lisabetta! Não te cansas de me chamar! Tu te entristeces, e com tuas lágrimas
tão duramente me acusas. No último dia em que me viste, os teus irmãos me
mataram. Por isto, não posso retornar.
E
descrevendo o lugar onde o haviam enterrado, o fantasma pediu que não mais o
chamasse ou aguardasse por ele, desvanecendo-se em seguida.
A
jovem despertou. Acreditando na visão que tivera, chorou amargamente. Depois,
levantando-se pela manhã, e não se atrevendo a dizer qualquer coisa a seus
irmãos, decidiu ir ao lugar que o espectro lhe indicara, a fim de conferir se
era verdade o que se lhe revelara em sonho. Obteve, dos irmãos, autorização
para sair um pouco além dos lindes da cidade, a passeio. Partiu, em companhia
de uma aia, que outrora já lhe servira, e que compartilhava de seus segredos, o
mais brevemente possível. Lá chegando, retirou as folhas secas que haviam caído
ao chão e, onde a terra lhe pareceu mais tenra, pôs-se a removê-la. Não
precisou cavar muito para encontrar o seu mísero amante, cujo cadáver não
apresentava sinais de estrago ou decomposição. Isto fê-la convencer-se de que
tudo era verdade em sua visão.
Malgrado
repleta de dor, sabia ela que aquele não era lugar para prantos. Se pudesse,
levaria consigo todo o corpo, para dar-lhe uma sepultura mais digna.
Considerou, todavia, que isto não seria possível. Sem que ninguém a visse,
separou, o melhor que pôde, com uma faca, a cabeça do tronco, envolvendo-a em
uma toalha. Atirou a terra sobre o resto do corpo e, em seguida, depositou a
cabeça decepada no regaço da criada. Isto feito, e afastando-se dali, retornou
a casa.
Lá,
trancada em sua alcova, agarrada à cabeça, chorou sobre ela, amarga e
demoradamente, até lavá-la completamente com suas lágrimas. Deu-lhe mil beijos,
em todas as partes. Depois, tomou um grande e belo vaso, desses em que se
planta a manjerona ou o manjericão, e pôs lá dentro a cabeça de Lorenzo,
envolta em rico pano; em seguida, lançou terra por cima. Ali, plantou alguns
pés de manjericão de Salemo, que era regado somente com água de rosas ou
laranjeiras, ou com suas próprias lágrimas. Tomou o hábito de estar sempre
junto ao vaso, cuidando dele com todo afã, como se nele houvesse escondido o
próprio Lorenzo. E depois de velá-lo por muito tempo, punha-se em pé, e dava-se
a chorar demoradamente, até deixar a planta completamente molhada. E o
manjericão, tanto pelo longo e contínuo desvelo, quanto pela fertilidade da
terra, decorrente da cabeça putrefeita que ela continha, tornou-se uma
belíssima e mui olorosa planta.
Procedendo
sempre assim, era a jovem frequentemente observada pelos vizinhos. Os irmãos,
ao virem que a beleza da moça se dissipava, e que os seus olhos pareciam
fugir-lhe da face, participaram aos vizinhos sua estranheza, e estes disseram:
–
Nós temos percebido que ela age assim todos os dias.
Diante
disto, os irmãos atinaram para com o que ocorria. Já a haviam repreendido pelo
comportamento incomum, mas sem êxito. Então, às escondidas, levaram o vaso
embora.
A
jovem, não encontrando o vaso, muitas vezes, e insistentemente, implorava que o
devolvessem. Insatisfeita em seus rogos, Lisabetta não cessou em suas lágrimas,
e adoeceu. No transcorrer de sua enfermidade, não pedia outra coisa senão que
lhe trouxessem de volta o vaso. Os rapazes ficaram muito admirados com a
insistência do pedido e, por isso, quiseram ver o que havia dentro dele.
Removida a terra, encontraram o pano e, sob ele, a cabeça. E, embora decomposta
a cabeça, os cabelos crespos permitiam reconhecer que ela pertencera a Lorenzo.
Surpresos, os irmãos temeram que descobrissem o que haviam feito. Enterraram-na
e, pondo em ordem os seus negócios, sem dizer palavra, cautelosamente
abandonaram Messina, fugindo para Nápoles.
Jamais
deixando de chorar, e sempre pedindo que lhe devolvessem o vaso, morreu
Lisbetta em prantos. Assim teve fim o seu desafortunado amor. Mas, depois de
certo tempo, o acontecimento foi por muitos conhecido. Então, alguém compôs
aquela canção que se canta ainda hoje:
Quem
seria o mau cristão
Que
o vaso me roubou etc.
Ilustrações de William
Holman Hunt (1827 - 1910) e de autor medieval desconhecido.
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